Dossiê Inácio Araújo
Filme Demência
Direação: Carlos Reichenbach
Co-roteiro, co-diálogos: Inácio Araújo
Brasil, 1986.
Por Filipe Chamy
Alice no País das Maravilhas é icônico, entre outras razões, porque é uma leitura fascinante de qualquer maneira que seja feita: ou tendo tudo como verdade, real, acontecido daquele jeito narrado por Lewis Carroll, ou sendo tudo símbolos, representações, enigmas, jogos. Filme demência também é uma obra cuja chave pode estar em sua decodificação, mas que impressiona também por seus choques de sentidos. Ou seja: no final das contas, as coisas valem por elas mesmas, e, ainda que não entendamos suas reais dimensões, suas características estão todas lá para serem notadas, conscientemente ou não.
Num dos primeiros minutos do filme de Carlos Reichenbach, a mulher com quem o protagonista está diz a ele, após ser acordada por um delírio de representação: “Fausto, enlouquecer não adianta”. Uma de tantas cenas que podem explicar ou não o filme, essa passagem vem bem a mostrar o grande conflito que permeia o filme: o fantástico e o mundano. A todo instante, Fausto tenta não ser literal, mas o mundo cotidiano o esmaga, com suas percepções brutas. Então é comum vermos Fausto com o olhar perdido, incapaz de reagir, solto num mundo de alegorias, fantasmas, visões. E da mesma maneira é cada vez mais gritante e violenta a rejeição que as personagens fazem a essas idiossincrasias.
O hoje crítico “em tempo integral” Inácio Araújo e o próprio diretor Carlos Reichenbach assinam a história do filme. Então quando dois cinéfilos se juntam, é fácil perceber as referências, sutis ou não, a filmes e artistas que eles admiram ou por quem foram influenciados. Alguns exemplos: o expositor chamado E. V. Stroheim, os pôsteres de filmes de Fuller (ídolo dos dois roteiristas) e outros cineastas, certas cenas burlescas ou trágicas ou engraçadas que fazem menção à obra de mil diretores ou dramaturgos ou o que seja, pois aqui realmente se passeia com desenvoltura de poesia à política, passando pelo cinema e outras formas de expressão.
Então nessa miscelânea talvez pareça fácil se perder, mas o único perdido, entre a ideia e a imagem, é o protagonista, feito com grande intensidade por Ênio Gonçalves. É ele que não saberá que sonho seguir (ou perseguir), que se deterá ante o real, desabando sem forças quando ninguém o ampara em seus confrontos lúcidos com seus tormentos íntimos, que entenderá afinal que a pior insanidade é a da intranquilidade consigo mesmo.
Trata-se de uma jornada de reparação ou de descoberta? De desilusão ou de serenidade? Ao longo de sua jornada, Fausto (o nome, outra referência) deparar-se-á com os mais estranhos tipos: uma moça libidinosa, um fumante inveterado, uma velha caronista. Mas serão todas essas pessoas avatares de Mefisto, o estranho ser sem gênero interpretado com força e presença por Emílio Di Biasi? Novamente retomamos o estribilho: não importa saber a verdade. Porque a verdade de Filme demência é a verdade do cinema, é o que está e não está na tela, não é uma questão de interpretação e sim de observação.
De qualquer modo, segue Fausto em sua busca. O filme tem uma galeria de personagens bizarros que podem ser vistos como distorções dos caracteres de seu protagonista: temos o amigo malandro que no fundo é medroso — uma constante na vida de Fausto é não saber se impor —, o homem que procura cigarros na fábrica fechada — a fábrica de Fausto, negócio que tinha e no qual fracassou, talvez se ele retirar os cigarros dali ele retire sua indignidade —, a moça que gosta dele e que ele julga provavelmente muito simplória. E, evidentemente, temos a paradisíaca paisagem que ele tenta achar (o que espera encontrar lá?) e a menina que o segue como uma lembrança de morte. Mas e se a morte para ele é vida? Nessa gama de onirismo culpado e caos da sociedade contemporânea, Fausto acha enfim seu rumo em seus próprios medos.