Cinema of Transgression
Por William Alves, especialmente para a Zingu!*
A guerra é inveja menstrual
Nova Iorque vai bem, obrigado. A cidade mais populosa dos Estados Unidos não sofre um ataque terrorista há pouco mais de oito anos e os teatros da Broadway ainda resplandecem. O Brooklyn não cansa de jorrar bandas para o resto do mundo (algumas são o Yeasayer; outras, infelizmente, são o Yeah Yeah Yeahs) e o tempo anda meio frio. Em alguma acomodação precária estabelecida dentro dos limites dessa metrópole, é bem capaz que Nick Zedd esteja dirigindo ou atuando em mais uma de suas produções cinematográficas de custo e repercussão nulas.
Zedd é uma figura estranhíssima, uma esfinge moderna cuja data de nascimento os biógrafos e cinéfilos não conseguem estabelecer com precisão. Sabe-se (mais ou menos) que ele nasceu no estado de Maryland, em algum dia entre 1958 e 1959. O próprio website do cineasta não se esforça em esclarecer o mistério, preferindo a exibição de diversos artigos assinados por Zedd, com títulos cândidos como Listen up, americunt.
Mas o que realmente importa aqui é um de seus textos de 1985, redigido quando Nick editava o Underground Film Bulletin, periódico de curta existência, compreendida entre 1984 e 1990. Ele apresentava ao mundo – ou pelo menos a quem estivesse lendo – o Cinema of Transgression. O manifesto continha trechos rudes como “Nós propomos que todas escolas de cinema sejam asfixiadas e os filmes tediosos nunca sejam feitos de novo” ou “Nós renunciamos e rejeitamos à intrínseca vaidade acadêmica”. O primeiro filme do movimento já havia sido feito em 1979 e atende por They Eat Scum. Dirigido, obviamente, por Nick Zedd. O punk rock ainda estava em plena evidência na época e o filme não deixou escapar o frisson, parodiando o estilo de vida que alguns dos jovens entusiastas do novo estilo de música juravam levar. A narrativa do longa é absolutamente anti-linear e, sim, tem gente realmente comendo lixo, além de felações em poodles.
Mas o “nós” do manifesto se referia a outros dementes residentes em Nova Iorque, como Richard Kern, Lydia Lunch, Tessa-Hughes Freeland e Lung Leg. Tessa, inclusive, havia dado uma mão ao seu amigo Nick, divulgando o (não) movimento cinematográfico em outros zines da cidade. Richard Kern, um graduado em Belas Artes na Carolina do Norte, foi o que mais se aprofundou na exploração da degradação. Lydia Lunch, além da carreira cinematográfica, fazia parte da banda Teenage Jesus & The Jerks, que compartilhava os mesmos palcos e guetos malcheirosos com outras bandas alternativas locais, como o Contortions (de James Chance) e o Mars. Todas essas personagens do Cinema of Transgression detinham como ferramentas de trabalho apenas algumas precárias câmeras de 8 mm e um perverso senso de humor.
Kern declarou, certa vez, que “o que fizemos foi juntar o que o Warhol já fazia e que o Dadaísmo sustentava, e misturamos com um pouco de Punk”. O primeiro trabalho de Richard é Goodbye 42nd Street (1983), um agradável passeio por uma rua repleta de atividades e ativistas do cinema pornô. Essas imagens são intercaladas por outras fora das ruas, em que indivíduos se suicidam e apagam um cigarro em suas próprias faces, tudo isso focado por um equipamento de paupérrima qualidade. Depois veio Stray Dogs, de 1985, em que o ator David Wojnarowicz interpretava um pitoresco e perseguidor fã de um artista famoso. Wojnarowics veio a falecer em 1992, decorrente do HIV que ele contraiu após 38 anos vagando pelo mundo underground nova-iorquino.
Ele também atuou em outra das obras de Richard Kern, You Killed Me First. Nesse, a personagem vivida por Lung Leg se cansa de sua opressora família e descarrega um pente de balas em todos os outros três integrantes da linhagem. Lung Leg é mais famosa pela aparição na capa de Evol, disco de 1986 do grupo de rock alternativo Sonic Youth, também de Nova Iorque. A ligação da banda com os transgressores é estreita. Richard Kern dirigiu o clipe de Death Valley ’69, música que também conta com Lydia Lunch nos vocais.
Lunch é, talvez, a figura mais famosa da turma. Multiprofissional, já que se aventura, além do cinema, na literatura e na música, Lydia também se notabilizou por afanar os almoços de seus colegas de pensão (daí vem o “Lunch” do nome, almoço). Ela se tornou amiga de diversas bandas da efervescente cena local, tendo freqüentado compulsivamente o lendário clube roqueiro Max’s Kansas City. Em sua carreira musical solo, contou com colaboradores como Nick Cave, Omar-Rodriguez-Lopez, Einstürzende Neubauten, além da já citada galera do Sonic Youth. Teve seus hábitos excêntricos esmiuçados em The Wild World of Lydia Lunch, filme dirigido por Zedd em 1983. No entanto, o mais estapafúrdio de seus filmes foi realizado pelo onipresente Richard Kern.
O experimento se chama Fingered e data de 1986. Já no primeiro segundo de exibição, um aviso na tela já nos alerta para o grotesco exercício que virá a seguir, ressaltando palavras pouco quistas como “violento”, “sexista” e “repugnante”. Em pouco mais de 23 minutos de ação em preto e branco, Lydia nos apresenta toda a graça e agilidade do seu bumbum – dentre outros atributos. A cada dez palavras proferidas, onze são “fuck”. Fingered também conta com Lung Leg.
War Is Menstrual Envy, de Nick Zedd, é uma das poucas obras com mais de 60 minutos de duração. Embalado por uma trilha tremendamente dissonante, que lembra um daqueles momentos que precediam a quebra de instrumentos deflagrada por gente como Kurt Cobain, algo parecido com uma mulher extraterrestre se esfregando em algo parecido com tentáculos de polvo. Um homem completamente nu se corta com lâmina de barbear, formando iniciais em seu peitoral. Ao som de Gangsta Rap, uma figura mascarada varre o chão. Uma personagem azul pulula ao lado de um oficial de polícia. Entre outras coisas, que transcorrem no mesmo nível de surrealismo. E uma putaria aqui e ali, pra não escapar muito da proposta do manifesto.
Mesmo com as obras um pouco mais longilíneas de Nick Zedd, o trabalho mais perturbador do Cinema of Trasngression tem pouco menos de nove minutos e é assinado por Tessa Hughes-Freeland. Utilizando-se de mitos pagãos conhecidos e de uma trilha sonora erudita, ela arquitetou um dos mais bizarros curtas de todos os tempos. Uma ninfa – trajando uma fantasia até bem caprichada para os padrões do filme – vai dançando pela floresta, exibindo toda a sua sensualidade sobrenatural e pueril. Acontece que toda a cena é assistida de perto por um Pã, de pênis exageradamente grande, e a volúpia vai tomando conta dele a cada novo movimento da ninfa, aparentemente casta. Desnecessário revelar que a história não acaba bem para a doce criatura.
O Cinema of Transgression foi um fenômeno que se espalhou por uma grande cidade norte-americana, disseminado por figuras pouco proeminentes entre os diversos artistas locais. Devido aos temas escabrosos envolvidos, é um movimento low profile por excelência, criado e visto por poucos. Há focos de influência em lugares como a Austrália, onde cineastas como Mark and Colin Savage se esmeram em produzir trabalhos naturalmente obscuros, munidos de câmeras Super-8.
Nick Zedd ainda dirige. Richard Kern dedica-se a outras paixões, como a fotografia. Lydia ainda grava diversos álbuns com diversos colaboradores, enquanto Lung Leg ainda atua. Um documentário sobre essa controversa cena nova-iorquina foi produzido em 2009, e se chama Blank City, dirigido por uma moça de beleza estupenda que atende por Celine Danhier. Conta com depoimentos de todos os citados, mais o de Tessa-Hughes. Surpreendemente, todos eles continuam vivos.
Abaixo, uma mini (e lacônica e esquisita) entrevista que fiz com Nick Zedd, por e-mail:
Zingu! – Nick, você está trabalhando em um novo filme? É um trabalho para o Cinema of Transgression?
Nick Zedd – No momento, não. Um box de quatro discos da minha série de TV está saindo este ano, e será uma revelação para quem estiver esperando algo parecido com os meus trabalhos mais antigos.
Z – Você ainda conversa com os outros caras do movimento, como Kern & Lunch?
NZ – Em raras ocasiões, Kern e Tommy Turner (que deveria estar empalhando o meu gato morto), Richard Klemann, Casandra Stark e Tessa Hughes Freeland, não importa a hora em que eu corra até eles.
Z – Qual é o seu filme favorito do movimento?
NZ – Eu não poderia escolher um favorito. Há muitos para escolher. Cineastas são vampiros silenciosos. Nós sugamos a energia dos atores, tornando-os imortais. Isso é uma coisa boa. É baseada em amor. O melhor ator aprecia a tentativa que o diretor precisa seguir para manifestar este amor. Atores são crianças em busca de atenção, e é meu trabalho dar-lhes humor, fomentar os seus egos e sugar performances que valham o tempo que eu despender. Como diretor, sou o autor de tudo que dirigi, mesmo agradecido a quem escreveu o roteiro. O mesmo se aplica ao diálogo improvisado.
Z – Em 2009, foi lançado um documentário sobre a No Wave. Você está surpreso com a repercussão do Cinema of Transgression?
NZ – Não.
Z – Em Thrust In Me, de Richard Kern, há uma cena onde você esfrega o seu pênis em um jovem cadáver, algo pesado até mesmo para os seus trabalhos. Houve alguma hesitação da sua parte ou foi como “vamos logo fazer essa merda”?
NZ – Já que foi minha ideia, não hesitei nem um pouco em fazer o meu trabalho, co-dirigindo e editando.
Z – Você é amigo do pessoal do Sonic Youth, Thurston Moore, Kim Gordon?
NZ – Naturalmente.
Z – Por favor, fale sobre o Underground Film Bulletin. Você ainda tem algumas cópias?
NZ – Esse foi um zine que publiquei para subverter a censura corporativa, que tenta omitir a verdade de nós. Focando em linhas mais experimentais, não-lineares, narrativas e não-narrativas de filmes (e qualquer coisa entre isso), e os criadores do passado, presente e futuro. História é aquilo que qualquer um põe no papel ou digita primeiro. Ao invés de consumir passivamente a distorcida e comum versão da História, eu fiz a minha própria, com ajuda dos meus parceiros de crime. E eu tenho todas as cópias originais. Alguém deveria reimprimi-las como um livro.
Z – Há, em especial, algum artista alternativo da atualidade em Nova Iorque de que você goste?
NZ – Não.
P.S.: Já mencionei que a data de aniversário do rapaz é um mistério. Em todas as fontes que consultei (IMDB, site pessoal, diversas matérias na web), não constava uma data exata. E eu achei mal educado perguntar, né? No entanto, a página no facebook de Nick informa que o seu aniversário é no dia 26 de janeiro, tendo ele completado cinco décadas em 2010. Mistério resolvido, missão cumprida.
*William Alves, 24 anos, belorizontino e eterno postulante a jornalista, queria ter visto os Stones em 68 e pego a Ava Gardner em 46. Mantém o blog Sleepwalk Capsule.