Especial Anselmo Duarte
Santo de casa não faz milagre
Por Lafayette Vilella, especialmente para a Zingu!
Laureado com o prêmio máximo de um festival como o de Cannes, onde competem filmes de todos os países do mundo, O Pagador de Promessas permanece como um clássico do nosso cinema. Apesar das restrições que sofreu aqui por ser linear e acadêmico – sobretudo de grande parte dos cinemanovistas que sonhavam com a projeção do Brasil através de filmes mais vanguardistas -, o filme se impôs com sua simplicidade e seu texto emocionante (da autoria de Dias Gomes, autor da peça que lhe deu origem) a todas as platéias e espectadores até os dias atuais. Seu diretor, o recentemente falecido Anselmo Duarte, vinha de uma carreira de galã em chanchadas e de outras fitas modestas, só tendo experimentado a direção uma única vez, com a comédia popular Absolutamente Certo! (1957), quando fora muito bem aceito e, achavam, do nicho de que nunca deveria ter saído.
É a história de Zé do Burro (Leonardo Villar, admirável), um sertanejo simplório e ignorante, que chega com uma pesada cruz nas costas, em companhia de sua mulher (Glória Menezes), à cidade de Salvador, a fim de cumprir a promessa que fizera a Iansã (correspondente a Santa Bárbara no sincretismo religioso) pela cura de seu amado burrico. A enorme repercussão de sua presença às portas da igreja do Nosso Senhor do Bonfim agita a população de crentes, atrai a imprensa e o coloca em conflito com um influente padre local (Dionísio Azevedo), que acha inadmissível a sua entrada na igreja, enquanto sua mulher é assediada por um gigolô (Geraldo Del Rey).
Eu acredito na sinceridade de Anselmo Duarte quando dizia que “se tivesse que realizar O Pagador de Promessas hoje, não mexeria em nada”. Como está e com o retrato central de um homem humilde do interior em contato com a cidade grande, me parece um filme muito íntegro na forma e na força com que narra o desenvolvimento de sua história. Soaria incomunicável e pretensioso, quem sabe algo ridículo, se procurasse uma linguagem mais sofisticada e de acordo com os parâmetros do modernismo a la mode que já propunham seus colegas de um movimento jovem a que não pertencia e nem era íntimo. Se seu filme demonstrava uma característica naïf, por sinal, coerente com o tema que abordava, por que não aceitá-lo e aplaudi-lo como se aplaudem os pintores, compositores e outros artistas considerados, sem desdém, de “primitivos”?
É claro que a conquista da Palma de Ouro em Cannes afetou o orgulho dos novos cineastas rivais e dos baluartes da imprensa a estes simpatizantes, que se transformaram em detratores do filme, nem mesmo reconhecendo que era um trabalho sério e muito acima da média a que se costumava ver no cinema nacional. Era imperfeito? Sim, concordo, não são nem tão bem resolvidas as situações que envolvem outros personagens de destaque que se cruzam, como a mulher às voltas com o gigolô da ciumenta prostituta (Norma Bengell, em pequena, mas marcante participação). Por outro lado, tem momentos sublimes, como o que consegue Leonardo Villar não só no filme inteiro, mas principalmente com o seu olhar de encantamento e veneração à passagem de sua santa de devoção no andor – a câmera alternando o rosto iluminado de Zé do Burro com a imagem de Santa Bárbara, que segue lentamente na procissão – e as culminâncias dramáticas do notável desfecho. Seriam essas não só, mas duas razões mais que suficientes para que se atestasse o talento de Anselmo Duarte, que, “sutilmente” sabotado adiante, não mais teve meios ou obteve recursos para nos dar o melhor de si como realizador. Morreu ressentido.