Filme Demência

Dossiê Carlos Reichenbach

Filme Demência

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 1986.

Por Vebis Jr., especialmente para a Zingu!*

Da Demência ao Labirinto criativo.

Parar para se pensar num texto que descreva Filme Demência é sofrer das mesmas aflições do protagonista do filme. O tempo afunila, e por mais que se caminhe, não se acha uma saída. O protagonista, quando abre a boca no filme, é pra assumir: “Eu falhei!” Isso, pelo menos, no âmbito de se sentir pressionado, devido ao fato de que se sabe que jamais se conseguirá trazer para o signo das palavras, tamanha carga que o filme traz condensando a criatividade explosiva de Carlos Reichenbach e as atuações na medida exemplar de Ênio Gonçalves, Emilio di Biase e Orlando Parolini. Sem contar que o filme foi um dos que saiu por último do galpão da Embrafilme, que, por sua vez, complicou o financiamento em ano de superinflação, obrigando ao criador repensar o projeto tantas outras vezes, atitude tipicamente comum, levando-se em consideração que Reichenbach sempre recita Roberto dos Santos: “transforma precariedade em elemento de criação”, pois vivia fazendo milagres financeiros para que seus filmes nascessem.

Um parto longo e doloroso. E nele entrou muito do que foi doloroso para o diretor, como por exemplo, a falência da empresa de seu pai, momento crucial que, depois de passar por uma transposição para diegese, transformou-se num pesadelo que permeia o filme inteiro. Não é à toa que Fausto inicia o filme depois que adormece frente à TV.

Essa viagem durante o dia, na pele de Ênio, é, na verdade, do alter ego do diretor (que sempre elogia o ator e o classifica como alter ego), que caminha sem explicações para uma busca de si mesmo desde que sua empresa de cigarros Fênix abre falência (o termo falência também pode se compreender como quebra de tradição familiar). Isso fica claro ao pesquisarmos a vida do criador e ao notarmos que o primeiro tratamento do argumento de Filme Demência foi feito em parceria com Inácio Araújo, parceiro de longa data, e com J. C Ismael, que criou uma excelente obra literária baseada em Thomas Merton – que, coincidentemente, procurava a si mesmo em sua jornada.

Lembro-me inclusive de um dito popular que afirma que “o mais importante de uma jornada não seria o destino final, mas o percurso” e nesse filme a frase se torna clara. Decidido a achar o paraíso perdido ou imaginário chamado Mira-Celi (referência clara ao poema de Jorge de Lima), Fausto caminha pela cidade de São Paulo guiado pelo Mefisto e uma figura infantil que nos remete a uma espécie de inocência perdida. A caminhada por São Paulo traz, para mim, uma das visões mais ricas do filme. Apontado como um dos cineastas que melhor sabe filmar São Paulo como um personagem no filme, Carlos Reichenbach, em Filme Demência, chega a cerne dos perdedores, das prostitutas, dos cafetões, dos místicos de esquina e de toda espécie de escória metropolitana que transita e se tromba, dotados de forte credibilidade que acrescenta, à mise-en-scène do filme, um fundo de redenção.

São tais ingredientes que tornam o cinema de Reichenbach um cinema honesto, pois, praticamente em todos seus filmes, algumas situações tomam uma nova roupagem, sempre usando uma narrativa circular, em que o indivíduo passa por uma viagem pessoal e volta ao ponto de origem – mas, diferente: evoluído, um dos princípios básicos do anarquismo, forma política com que o diretor mais se simpatiza, mas sempre de maneira utópica.

A complexidade que o filme traz nos permite analisar todas as seqüências – não apenas pela carga pessoal do criador, mas também pela carga de sua formação literária cinéfila. Filme Demência, um anagrama de ‘filme de cinema’, contém muitas “situações-homenagem”, como a velha cigana que lembra muito A velha a fiar, de Humberto Mauro, surgindo num momento fenomenal em que Fausto, num boteco de estrada, para entre Deus e o Diabo – através de uma decupagem em que Mefisto trajado de velha está de um lado e um retrato de Cristo do outro. Há muitos outros momentos que trariam a este pequeno texto um desejo imenso de teses e procuras, porém, o que vale a pena citar e deixar em aberto nesta procura é que se o diretor tinha acertos de contas com seu pai, de maneira cinematográfica no painel histórico do cinema nacional, o acerto se tornou fato e o filme é seu testamento.

*Vebis Jr. é professor, pesquisador e diretor de curtas-metragens.

Falsa Loura

Dossiê Carlos Reichenbach

Falsa Loura

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 2007.

Por Filipe Chamy

Falsa loura é um filme sobre ilusões. Em muitos sentidos. Na superfície, um elenco que muitos espectadores preconceituosos apontarão como intérpretes de novelas, necessariamente vinculando o filme a um subproduto televisivo; coisa que não poderia ser mais absurda quando falamos de um filme de Reichenbach, um dos mais autorais (e anti-televisivos!) diretores do cinema brasileiro das últimas décadas.  

Ainda na superfície: um filme pobre, de história reles, música brega. A música não é brega; trata-se de um artifício cinematográfico de tornar extradiegético aquilo que é, em princípio, apenas diegético; as escapistas canções que a deslumbrante Rosanne Mulholland (Silmara) escuta passam também a compor a trilha. Mas não é nisso que reside a eficácia desse recurso, mas em mesclá-lo com a erudição de Nelson Ayres ou com outros tipos de melodia quando a ocasião assim se faz propícia. Seria absurdo esperar que uma operária de classe média baixa ouvisse em seus momentos de lazer Camille Saint-Säens. É possível, mas extremamente pouco provável. Um filme não necessita de “lógica” (não no sentido lamentavelmente formal com que ela é procurada em arte), mas se esse é justamente um aspecto da coerência interna do filme, qual exatamente é o problema na utilização da música? Voltamos à velha questão do preconceito, que parece ser a única resposta. É um impasse: Maurício Mattar e Cauã Reymond são bregas, mas se Shostakovich fosse o instrumental da jovem operária Silmara não seria igualmente levantado um coro de depreciação contra o filme? Qual é a saída? Não filmar a vida humilde? Parece ser a exigência implícita.

Também a acusação de que o filme é simplório não procede; isso é devido à (sábia) persistência de Reichenbach em filmar, sinceramente, o que lhe preocupa e inspira. Ele poderia comodamente se vender à idéia de fazer um filme sobre os “temas importantes”, uma convencional fita sobre ditadura, ou judeus, ou drogas. Mas não, ele fala sobre uma moça comum, sua vida cotidiana, seus amores, esperanças e fracassos. Isso não é o bastante? Para muita gente, a complexidade está no “intangível”; não se elogia o pôr-do-sol porque é um fenômeno corriqueiro, banal – a graça está em lasers, explosões, o movimento estilizado que é a tônica do (mau) cinema comercial majoritariamente praticado hoje.

Falsa loura discute todas essas questões, ou pelo menos as expõe sem desonestidade (o que já é em si um mérito), incluindo referências e insights aparentemente desconexos (como a garota de calcinha recitando Platão), recorrentes no cinema de Carlos Reichenbach, ardoroso admirador de citações e homenagens aos seus ídolos das artes e cultura. Falsa loura se propõe a ser o quê? Um filme. E isso, para Reichenbach e para quem gosta de cinema, não é tarefa fácil, mas sim um delicadíssimo trabalho a ser tecido com empenho. Uma obra de arte não é um trabalho sociológico e nem se sujeita a empurrar verdades aos seus espectadores. Mas isso não torna o filme ridículo ou dispensável; é necessário, sobretudo aos cineastas brasileiros atuais, entender que o cinema não deve se prestar apenas a ser registro de um acontecimento ou de um fato social qualquer. Olhando no passado, os filmes que marcaram e ainda marcam, é necessário também entender de beleza, de extrair beleza das coisas que ficam, da música, da nudez da atriz, do plano felliniano. Falsa loura é um filme sobre cinema, como o são todos os bons filmes.

Daí dizer que o filme é sobre aparências, pois retrata muito sagazmente esses estereótipos do engano e da transitoriedade, as falsas percepções e certezas. Aliás: Falsa loura é uma pequena saga dramática sobre a desilusão e os falsos paliativos da vida contemporânea.

Extremos do Prazer

Dossiê Carlos Reichenbach

Extremos do Prazer

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 1983.

Por Sergio Andrade

Conflitos entre sete (ou oito) personagens reunidos num único espaço físico: esse foi o desafio enfrentado por Carlão Reichenbach em Extremos do Prazer.

O cenário é uma bela casa de campo onde vive isolado, depois de ter voltado de um auto-exílio em Paris, o professor universitário Luís Antônio (Luiz Carlos Braga). Um dia ele recebe a visita da sobrinha Natércia (Rosa Maria Pestana) com o marido Felipe (Rubens Pignatari) e dois amigos do casal, Marcela (Taya Fatoon, ex-Fátima Maluf) e Ricardo (Roberto Miranda).

O perfil dos personagens é delineado em poucos minutos: Felipe e Natércia formam o casal burguês, acomodado em sua rotina; Marcela, pesquisadora, está saindo de um casamento com um psiquiatra, e tem problemas com a própria sexualidade; Ricardo é agente da bolsa, machão e reacionário. Já Luís é uma pessoa calada, introspectiva, convivendo com o fantasma da esposa Ruth (Sandra Graffi), militante de esquerda que se matou por medo de ser torturada, e com a lembrança de seu aluno Carlos (o próprio diretor Reichenbach), primeiro namorado e mentor político de Ruth. Do lado de fora da casa dois sujeitos mal-encarados os vigiarão o tempo todo, instalando um mal-estar.

Passado algum tempo, Natércia e Felipe vão embora, na esperança de que Ricardo e Marcela iniciem um romance.

A presença dos dois e seus jogos de atração e repulsa dão um novo ânimo para Luís, que volta a escrever artigo para o jornal em que trabalha e se abre sobre seu relacionamento com Ruth e Carlos, atraindo o interesse de Marcela por ele. Mas a chegada de dois novos personagens, a filha de 18 anos de Luís, Ana Marina (Vanessa Alves), e seu amigo Sérgio Calvino (Eudes Carvalho), autor de teatro que acaba de escrever uma nova peça, com seus comportamentos libertários em relação a sexo e política, irão colocar em xeque suas forças e fraquezas, dúvidas e convicções.

Nesse ato final é que as intenções do cineasta ficarão mais claras, abordando o conflito de gerações. Assim, o machão boçal acostumado a conquistar tudo na base da força, inclusive a posse da mulher, admitirá, pela primeira vez na vida, que broxou com a garota liberada e plena de consciência de seu desejo; a mulher reprimida não conseguirá vencer seus medos e recusará o ménage à trois; e o intelectual, que procurou consolo nos braços do bissexual Sérgio, perceberá ser impossível viver sem sua amada Ruth.

O que Carlão propõe é um jogo de espelhos, no qual o próprio cineasta será refletido.

O filme é repleto de citações de autores como Kierkegaard, Italo Svevo, Camus, T.S. Elliot, William Blake, Marcuse, etc., que estranhamente combinam muito bem com o clima libertário vivido no sitio e com os diálogos muito francos, com direito a várias palavras de baixo calão ditas pelos atores.

Temas como repressão, terrorismo, tortura, exílio, marxismo, socialismo, sexualidade, desejo, utopia são abordados sem que pareçam didáticos, o que com certeza colaborou para que o filme se tornasse um grande sucesso de bilheteria.

Além da influência admitida de Eric Rohmer, percebemos também algo do estilo de Douglas Sirk (reparem na importância dos reflexos nos espelhos em várias cenas).

É triste notar que, com exceção de Vanessa Alves, esse foi o último trabalho de praticamente todo o elenco que incluía atores ótimos como Braga e Miranda e atrizes belas e talentosas como Sandra, Taya e Rosa.

A premiada montagem (pela APCA, que também premiou o roteiro do Carlão) é do excelente Eder Mazini. Outros prêmios: Menção Especial do 12º Festival de Gramado para Reichenbach pela integridade da obra e Prêmio Governador do Estado de São Paulo de melhor diretor.

A continuidade ficou a cargo do amigo e colaborador da Zingu! Eduardo Aguilar.

Disse, acima, que o filme foi um desafio para o Carlão. Pois bem, o desafio foi vencido e Extremos do Prazer continua a ser, para mim, desde que o vi pela primeira vez em fevereiro de 1984, há 25 anos portanto, sua obra máxima.

Esta Rua Tão Augusta

Dossiê Carlos Reichenbach

Esta Rua Tão Augusta

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 1966/68.

Por Filipe Chamy

Apesar de essa estréia do diretor desagradar ao próprio cineasta, Esta rua tão Augusta apresenta várias pequenas sementes de seu cinema futuro. Se é verdade que François Truffaut exagerou ao comentar que toda a obra de um autor de cinema está em seu primeiro filme, não é menos verdade que o trabalho inicial de um artista apresenta, sim, inúmeras características que o distinguem na força e na percepção: geralmente são obras mais audaciosas, ousadas e escancaradamente polêmicas e radicais.

Esta rua tão Augusta não chega a ser tudo isso, mas já dá o tom de próximas criações de Carlos Reichenbach: a originalidade dos personagens, as citações e referências que estruturam a obra, o respeito aos seres humanos, a reverência aos lugares que conhece e admira. São Paulo mudou após quatro décadas, mas a rua Augusta continua uma efervescente mistura de paisagens e caracteres. É possível encontrar na mesma rua o melhor da cultura cinematográfica e literária, eventos, exposições, bem como não é raro encontrar profissionais de atividades mais duvidosas, prostitutas, criminosos, gente perdida na vida e que não surpreendentemente se volta à marginalidade e às drogas.

O filme é um pequeno relato sobre esses contrastes da famosa localidade, enfocando principalmente um certo pintor Waldomiro de Deus, ele mesmo uma criatura ímpar, por vezes afeminado, por vezes agressivo, ora iconoclasta, ora ingênuo. Suas telas acompanham seus paradoxos, denunciam uma mudança de comportamento (e pensamento) social que a Ditadura não conseguiria barrar.

Carlos Reichenbach rejeita este seu primeiro passo, mas ele nada mais é que o embrião de suas obsessões pela vida, arte e cultura urbana, constantes em seus trabalhos mais relevantes. Ainda que uma produção evidentemente marcada pela inexperiência e pelo baixo orçamento, Esta rua tão Augusta é honesta o suficiente para que passe pelo crivo também de quem não vê o filme apenas pelo saudosismo de morador paulistano. O esboço inicial de quem já intuía caminhos próprios para a viabilização de suas idéias cinematográficas, conseguindo também com isso um pouco de renovação no combalido cinema brasileiro.

Dois Córregos – Verdades Submersas no Tempo

Dossiê Carlos Reichenbach

Dois Córregos – Verdades Submersas no Tempo

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 1999.

Por Gabriel Carneiro

(desabafo) É difícil saber como começar um texto sobre Dois Córregos, porque o filme de Reichenbach tem um impacto muito grande em mim. Foi o filme que me despertou para o cinema brasileiro, que me encantou desde a primeira vez que o vi, e que melhora a cada revisão. Talvez não exista película que cause tanta comoção em mim quanto esse longa-metragem de Carlão.

***

O que guia Dois Córregos é a música. Assim como a composição de Ivan Lins abre o longa, são as músicas tocadas no piano por Luciana Brasil que dão a tônica do filme. Assim como as peças, a película possui uma fluência narrativa – como se Reichenbach, ao filmar, estivesse embalado pela beleza dos temas sonoros. A câmera passeia, descobre lugares. Nunca Reichenbach havia usado tão bem os travellings em sua construção dramática. A abertura de Dois Córregos é mais uma vez sintomática (e belíssima): enquanto a lente vislumbra os rios e seu encontro, ouve-se a música instrumental e cantada em balbucios. O espectador é acompanhado àquele lugar chamado Dois Córregos. O passeio inicial é a forma que o cineasta encontrou para adentrarmos esse mundo, o da memória de Ana Paula – que muito se confunde com a do cineasta.

Ana Paula volta à cidade do interior de São Paulo depois de muitos anos. Com a morte dos pais, foi retomar a propriedade, então na posse de grileiros. A viagem é a chance que a personagem encontrou para reviver aqueles quatro dias que passou lá no fim dos anos 60. Foi, ao lado de sua amiga, filha de general, visitar o tio clandestino e exilado, Hermes, perseguido pelo Regime Militar.

O uso de Dois Córregos é a forma que Reichenbach encontrou para materializar sua paixão pela cidade e incorporar sua adolescência na história. Não poderia ter sido mais acertado. Configura-se assim um filme de memória. A memória nostálgica de Ana Paula, que após muitos anos, só quer entender o que ocorreu, quer compreender a intensidade do encontro com Hermes, e a memória reflexiva do tio, que quer entender sua situação.

A memória para Reichenbach é uma angústia – não algo necessariamente ruim, mas é através da angústia que relê o passado, que relê a história. Hermes mostra-se um personagem fantástico. Contra o regime, furta-se às matas e à guerrilha para acompanhar um amigo querido, largando a família. Hermes, enquanto lutou pelo destino do país, passou a viver em seu próprio calvário: não lembra mais do rosto dos filhos – borrões, imagens perdidas em uma fotografia. É um personagem libertário, que condena a mesquinhez e o egoísmo, mas que se tornou amargurado. Sua presença é ritualística. Representa a passagem para a vida adulta de Ana Paula e de Lydia, assim como a feminilidade de Teresa.

No fluxo do córrego, Ana Paula, já mais velha, conversa com Hermes. O passado novamente não tem rosto. Não vemos Hermes de frente, quase como se o passado não largasse, mas se mantivesse fugidio na memória, a serviço de motivar seu futuro. A não-lembrança completa dos filhos é simbólica nesse aspecto, assim como só após muito tempo Ana Paula conseguirá confrontar Hermes. Era algo que precisava exorcizar, retomar, entender seu passado.

A personagem, ingênua quando jovem, com leve paixão platônica por aquele homem misterioso, foi se tornando mulher. Sua compreensão mudou, mas dúvidas permaneceram. Hermes também quer compreender. Por isso Dois Córregos parece tão acertado. No caos urbano, ninguém consegue pensar – trabalho e mais trabalho, problemas de diversas ordens. Dois Córregos é o paraíso proibido de Carlão não à toa. Quase como se apenas lá, encantados pela beleza do encontro dos rios, pelo céu azul, lugar calmo e resplandecente, aquilo pudesse vir à tona. Refletir sobre esse passado só poderia acontecer em ambiente próprio.

Nisso, parece que Dois Córregos inverte o papel da música, como se a imagem passasse a dar tônica à música, como se daquele lugar brotasse tão belas melodias. Visto com certo Romantismo, é essa maneira de olhar o mundo que cria a mais bela seqüência do filme: perdidos entre angústias e lembranças, Teresa e Hermes se entregam. Num travelling circular, como só Carlão sabe fazer – e dele, surge a música-tema -, olhamos com graça para a paixão dos dois, até, hipnoticamente, entrarmos no filme. Aí, não temos mais como voltar à superfície.

Outros Curtas

Dossiê Carlos Reichenbach

Murilolendo

Outros Curtas

Por Filipe Chamy

Murilolendo

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 1997.

Murilolendo é um curta-metragem de três minutos que Carlos Reichenbach fez a convite da TV Cultura. A idéia era fazer um pequeno filme sobre um tema caro a cada diretor do projeto, e Reichenbach aproveitou o pequeno espaço para homenagear seu poeta preferido, Murilo Mendes.

Filmado em Super-8, é uma coleta de pequenas coisas que lhe são importantes: poesia, família, amigos. Depoimentos (inclusive pessoal), versos, sons, pensamentos. É uma pequena demonstração de como as obras artísticas às vezes podem mudar nossas mentes e espíritos. Um espaço de singeleza, embalado por cortes suaves que remetem às coisas simples da vida do diretor, seus livros, seus cães, seus amores. A ênfase nos pequenos movimentos dos lábios, soltando as palavras tão queridas.

E ainda a provável última aparição do célebre crítico de cinema Jairo Ferreira, amigo pessoal do cineasta, o que por si só já garante a espiadela neste pequenino trabalho – que pode ser conferido aqui: http://www.youtube.com/watch?v=jQxb3GF_fBA

***

3 haikais

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 2007.

Radicalizando (se é possível) suas controversas mas nunca escondidas tendências políticas, Carlos Reichenbach expõe neste pequeno curta-metragem algumas preferências sociais e ideológicas, contrastando idéias tão aparentemente díspares quanto a morte do líder russo Lênin e imagens de arquivo de obras da conhecida cineasta “nazista” Leni Riefenstahl.

É talvez sintomático perceber que, como todo autor, o diretor se desnuda mais claramente quando “disfarça” a autobiografia. Portanto, nesse sentido, 3 haikais, não é tão ácido quanto talvez tenha sido concebido.

No final das contas, vale mais como um pequeno comentário do cineasta, que poderia talvez ser encaixado futuramente em um longa mais ambicioso. Ou como um exercício de montagem, pois a edição é cuidadosa e eficaz.

Fique registrado também como é louvável, por parte do realizador, apostar sempre em novos formatos de expressão, diferentes maneiras de viabilizar uma idéia. Ainda que, parece, nem todas sejam extremamente memoráveis, a busca é sempre mais do que válida; lutar contra o comodismo é sempre uma das opções mais nobres em arte. Então que se veja Carlos Reichenbach com o devido respeito a um contestador, um sensato e apaixonado contestador.

Curtas em 35mm

Dossiê Carlos Reichenbach

Curtas em 35mm

Por Filipe Chamy

Sonhos de vida

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 1979.

Esse curta-metragem de Carlos Reichenbach é um despretensioso trabalho filmado em apenas dois dias, mas que nem por isso é uma obra inútil ou irrelevante; antes de mais nada, é uma espécie de resumo do que filmara até então, com uma evidente preocupação pelo destaque da figura feminina (uma das principais marcas do diretor) e pelo registro sem glamour de uma realidade que não busca exatamente combater ou denunciar, mas mostrar, com intenções narrativas de desenvolver os personagens, e não de tecer um comentário social para fins duvidosos ou inócuos. Em outras palavras, Sonhos de vida é um exercício de estilo.

É a história simples de duas moças mais simples ainda, que empreendem juntas uma viagem, de ônibus, para uma terra de águas. No caminho, impressões e vivências são compartilhadas e a relação entre elas cresce consideravelmente, de maneira bastante perceptível ao espectador. Antes de marcar um clichê, essa opção estrutural é uma maneira de cadenciar as mudanças das personagens e inserir os comentários do cineasta, sobre o amor, a vida, o cotidiano. O dia-a-dia está muito presente na sujeira do realismo retratado no curta. Também é possível observar a graça da figura feminina, que se impõe sempre sobre a masculina. Uma das tônicas, aliás, do cinema de Carlos Reichenbach, mesmo quando o diretor não faz declaradamente essa confissão.

De um lado, o cinema-esteta, dos planos bem fotografados, que interessava cada vez mais ao cineasta; de outro, o cinema-narração, prender o espectador, fazê-lo amar as pessoas que “pertencem” ao filme, motivá-lo a seguir seus dramas e a compreender suas ações. O humanismo é a chave desta pequena trama, e, como não poderia deixar de ser, as moças retratadas em Sonhos de vida não são tipos de caricatura ou marionetes vazias. São pessoas que têm aspirações, projetos, frustrações e alegrias.

O cinema captura e universaliza esses sentimentos de gente vizinha, emoções que são profundas na medida da grandeza da existência pequena, de “gente à toa”. Não as ignoremos.

***

Olhar e sensação

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 1994.

Esse curta-metragem conceitual é uma das muitas declarações de amor de Carlos Reichenbach à cidade que o acolheu e que ele tanto ama, São Paulo. Paisagens, imagens um tanto distorcidas pelo deliberado desejo de homenagear a fase experimental de Jean-Luc Godard, a beleza pictórica do som; tudo no caldeirão entusiasmado do diretor, que brinca com o projeto que lhe foi confiado e realiza uma obra estranhamente autoral, como prova o eco de sua relação com seu pai, evocada por meio de uma fotografia em que aparece pequeno junto a ele.

Esse anseio a uma sinestesia cinematográfica é um plano antigo do cineasta, e neste pequeno espaço ele pode se abandonar à liberdade da experiência. É aquele tipo de trabalho de valor sentimental ao artista, e mesmo assim a paixão e o empenho são tamanhos que o espectador pode extrair prazer dessa sinceridade pulsante.

***

Equilíbrio e graça

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 2002.

Outro curta conceitual de Reichenbach, feito a convite da Petrobrás, e que mais uma vez duela com o jogo de sentidos versus imagens. Música, luz, som, características que afloram no curta pela percepção do belo.

Também temos o encontro do pensamento ocidental com o oriental, choque de culturas do qual se extrai a reflexão. A nobreza do entendimento, da ponderação, da filosofia, tema sempre implícito nas obras do diretor, notadamente como uma referência irreverente, vide a empolgada groupie de Falsa loura, que desfila apenas de calcinha declamando passagens do Platão que tem nas mãos.

Porque para Reichenbach o equilíbrio e a graça não estão nas solenidades, burocracias e intelectualismos. A importância e grandeza das coisas está nesses pequenos momentos de indefinição, como neste filme.

Corrida em Busca do Amor

Dossiê Carlos Reichenbach

Corrida em Busca do Amor

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 1971.

Por Matheus Trunk

O crítico, ensaísta e professor Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977) tinha como máxima que “o pior filme brasileiro nos diz mais que do que o melhor filme estrangeiro”. Esta frase é bastante polêmica e é sempre objeto de discussão no meio cinematográfico. Paulo Emílio se referia à impossibilidade do cinema nacional em se igualar ao modelo estrangeiro.

No caso de Corrida Em Busca do Amor, esta impossibilidade foi extremamente positiva. Ao invés de termos um filme ingênuo sobre a juventude transviada, Carlão realizou uma comédia bastante criativa.

O argumento é aparentemente banal: integrantes de duas equipes disputam uma corrida de carros usados. Das duas escuderias, uma é rica e a outra é pobre. Tudo indica que teríamos mais um daqueles filmes bobos sobre adolescentes e seus carros. Porém, isso não acontece quando este trabalho é assinado por um realizador como Carlos Reichenbach.

O inusitado personagem doutor Ivã – feito pelo próprio Carlão – e a participação especial do crítico Jairo Ferreira dão um tom de deboche no filme. A dupla de cômicos feita por Gibe e Carlos Bucka também é impagável. A mistura de gêneros e o uso da música como um personagem são pontos a serem destacados. O filme se encerra tendo a canção My Sweet Lord, do ex- Beatles George Harrison, como trilha sonora.

Segundo Reichenbach, um dos grandes triunfos de seu primeiro longa-metragem é a montagem certeira de Sylvio Renoldi. A maioria do filme foi filmada sem uma seqüência lógica. Renoldi conseguiu fazer um belo trabalho e concluiu a película de uma maneira bastante eficiente.

Fitas como Anjos do Arrabalde, Filme Demência e Alma Corsária são mais lembrados como exemplos do universo do “nosso Fassbinder”. Mesmo tendo sido feito com grandes dificuldades e sem grandes nomes, Corrida Em Busca do Amor é um legítimo filme de seu realizador.         

City Life

Dossiê Carlos Reichenbach

City Life (ep. Desordem em progresso)

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil/Holanda, 1990.

Por Filipe Chamy

Desordem em progresso é um curta-metragem que Carlos Reichenbach realizou para um filme coletivo, co-produção holandesa, que tem em seus créditos nomes como Béla Tarr e Krzyzstof Kieslowski. O episódio de Reichenbach é, basicamente, a história de vida de quatro rapazes, que se conhecem mas são diferentes nas existências, sonhos, ações, comportamentos. É, como o próprio cineasta reconhece, um pouco didático, mas isso não tira o valor da experiência.

É o fato de o filme possuir alguns momentos intercalados com depoimentos relatando fatos reais que acrescenta ao trabalho o sabor da vivência de quatro olhares distintos. São pessoas singulares em sua normalidade, e não é de se estranhar que sejam tão amigas, consagrando à obra uma inusitada e forte impressão de road movie, mesmo com o final da viagem sendo um ácido comentário sobre os imprevistos e fatalidades no caminho. A vida sem planejamento dá esses pulos, mas mesmo quem a planifica pode ter surpresas.

Homossexualismo, traição, alegria, melancolia, esses ingredientes agradaram tanto a Reichenbach que o próprio realizador é o primeiro que aponta um caminho a ser utilizado futuramente em um longa-metragem. O material é de fato promissor, talvez porque a desordem ainda está em progresso, neste país que é tudo e nada ao mesmo tempo.

Bens Confiscados

Dossiê Carlos Reichenbach

Bens Confiscados

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 2004.

Por Vlademir Lazo Correa

O diretor Carlos Reichenbach abre Bens Confiscados com um belíssimo plano, tendo edifícios, ao fundo, que mostram a figura elegante de uma mulher com a expressão melancólica, e intercala com rápidas passagens que ilustram prédios de uma grande metrópole, para, em um relance num movimento de câmera sinuoso e sutil, cortar do subjetivo para o objetivo, revelando a verdadeira condição da personagem naquele determinado momento: ela está parada na cobertura de um apartamento, contemplando o abismo lá de baixo, pronta para se jogar. É uma cena que dura poucos segundos, porém o suficiente para ilustrar o quanto Reichenbach preza o seu ofício, visto que muitos de nossos cineastas optariam por um modo mais prosaico e banal na decupagem dessa sequência (e certamente esticando-a para torná-la mais melodramática); no entanto, Reichenbach opta por uma solução visual mais inteligente, simples até, porém de uma concepção bastante elaborada e admirável para o que vai servir de estopim à história que pretende contar.

Há um pano de fundo político em Bens Confiscados, que serve de palco ao drama dos personagens, sem esmagar o interesse que essas figuras humanas despertam. O filme trata de situações que nossos políticos tendem a conservar como sempre atual: a corrupção, os escândalos e falcatruas de senadores, no caso um congressista que atende pelo nome de Américo Baldini (um personagem oculto à moda Rebecca, de Hitchcock, citado o tempo todo e propulsor de quase todos os acontecimentos, sem jamais aparecer em cena), denunciado pela ex-esposa (Beth Goulart) que torna pública as suas irregularidades no poder, em depoimentos com ares de comédia. O suicídio da amante do senador é que desencadeará os acontecimentos em torno do filho ilegítimo do político, que manda seqüestrá-lo para evitar que seja descoberto e usado pela grande mídia para denegrir ainda mais sua imagem pública, que começa a se desgastar. O adolescente é levado para uma chácara de uma cidade balneária nos confins do Rio Grande do Sul, onde deverá permanecer escondido, sob os cuidados de uma antiga amante do senador, a dedicada enfermeira Serena (Betty Faria), e os dois viverão por um tempo em contato apenas com o violento caseiro (Werner Schünemann) e a menina que o serve como esposa (Márcia Oliveira), em um recurso semelhante a outros filmes de Reichenbach, o de isolar os personagens num único local, e trabalhar a ação e o drama em torno dessa circunstância, dos conflitos que explodem desse convívio, e também o envolvimento e auto-descoberta nesse ritual de transformação e amadurecimento pelo qual passam a enfermeira, o rapaz e a esposa oprimida e submissa, que recusa o dinheiro que a personagem de Betty Faria lhe oferece para ir embora dali, encarando cheia de fatalismo um firmamento imenso com a resignação dos que acreditam que o que está escrito não pode ser modificado.

Por falar em cores, Bens Confiscados tem um trabalho de iluminação sem igual no cinema brasileiro recente, com inúmeras matizes de azul experimentadas pelo fotógrafo Jacob Solitrenick. Antes das filmagens, ele assistiu, sob recomendação do diretor, os clássicos Palavras ao Vento (de Douglas Sirk) e Martha (de R.W. Fassbinder), para que servissem de influência ao seu trabalho – que utiliza a cor como um elemento dos mais dramáticos, reforçando o fortíssimo tom melancólico e intimista ao mesmo tempo. Dessa forma, as paisagens frias do sul quase que são absorvidas pelo filme como um todo, seja na câmera ou na condução da narrativa e dos atores, especialmente de Betty Faria, que está fantástica num daqueles papéis femininos que Reichenbach é especialista em inventar, e numa entrega da atriz ao seu trabalho que chega a ser comovente.

Mas se o olhar de Reichenbach às suas figuras femininas é o de um mestre privilegiado, o mesmo nem sempre acontece com os personagens masculinos. Por vezes, eles arranham o brilho do filme, como o do zelador – que exagera em sua truculência a ponto de quase se tornar um estereótipo de violência -, ou mesmo o do filho do político (também prejudicado pela inexperiência do seu interprete), que raramente desperta a empatia do público, pouco convincente nas ocasiões em que tenta defender a esposa do caseiro. Se o filme seguinte de Reichenbach, Falsa Loura, é bem mais resolvido, um dos motivos é que, se a parte masculina também deixa a desejar, isso não interfere em nada, visto que Falsa Loura gira completamente em órbita de sua protagonista, na forma de como uma personagem pode se impor sobre todo um espaço e no ambiente a sua volta, ao contrário de Bens Confiscados, que depende muito dos personagens e atores masculinos.

O filme ganha um fôlego novo perto do final quando Serena e o adolescente se deslocam para um hotel à beira-mar, com momentos que realçam a solidão e fragilidade dos personagens. O romance que se insinua entre os dois não impressiona tanto, mas serve para acentuar as suas reflexões e suas angústias. Em particular, o beijo entre Serena e o rapaz deslumbra mais pela forma como é filmado, com fusões dos telhados. Não poderia deixar de ser citada outra sequência memorável nesse sentido, o quase ménage à trois no cais entre o adolescente e as duas pedagogas que o perseguem. A cena, noturna, dura poucos segundos e não mostra nada de nudez ou de sexo. Restringem-se a toques, gestos e carícias, o que torna a sequência mais bonita e nos impressiona pela delicadeza e pelos cortes suaves, em mais um exemplo brilhante de decupagem no cinema de Carlos Reichenbach.  

Ao final, todos os personagens de um modo ou de outro tomam o seu rumo e seguem os seus caminhos, permanece Serena, antes uma mulher resolvida e independente, agora com sua alma dilacerada e suas convicções estremecidas, num close implacável ao qual Reichenbach (um cineasta comumente generoso com os seus personagens, mas sobretudo fiel ao seu cinema) não foge ao dever de prolongar o máximo possível para encerrar a cadeia de eventos que, por fim, arruína as certezas de Serena que se dissolvem diante de nós.