Dossiê Carlos Reichenbach

Filme Demência
Direção: Carlos Reichenbach
Brasil, 1986.
Por Vebis Jr., especialmente para a Zingu!*
Da Demência ao Labirinto criativo.
Parar para se pensar num texto que descreva Filme Demência é sofrer das mesmas aflições do protagonista do filme. O tempo afunila, e por mais que se caminhe, não se acha uma saída. O protagonista, quando abre a boca no filme, é pra assumir: “Eu falhei!” Isso, pelo menos, no âmbito de se sentir pressionado, devido ao fato de que se sabe que jamais se conseguirá trazer para o signo das palavras, tamanha carga que o filme traz condensando a criatividade explosiva de Carlos Reichenbach e as atuações na medida exemplar de Ênio Gonçalves, Emilio di Biase e Orlando Parolini. Sem contar que o filme foi um dos que saiu por último do galpão da Embrafilme, que, por sua vez, complicou o financiamento em ano de superinflação, obrigando ao criador repensar o projeto tantas outras vezes, atitude tipicamente comum, levando-se em consideração que Reichenbach sempre recita Roberto dos Santos: “transforma precariedade em elemento de criação”, pois vivia fazendo milagres financeiros para que seus filmes nascessem.
Um parto longo e doloroso. E nele entrou muito do que foi doloroso para o diretor, como por exemplo, a falência da empresa de seu pai, momento crucial que, depois de passar por uma transposição para diegese, transformou-se num pesadelo que permeia o filme inteiro. Não é à toa que Fausto inicia o filme depois que adormece frente à TV.
Essa viagem durante o dia, na pele de Ênio, é, na verdade, do alter ego do diretor (que sempre elogia o ator e o classifica como alter ego), que caminha sem explicações para uma busca de si mesmo desde que sua empresa de cigarros Fênix abre falência (o termo falência também pode se compreender como quebra de tradição familiar). Isso fica claro ao pesquisarmos a vida do criador e ao notarmos que o primeiro tratamento do argumento de Filme Demência foi feito em parceria com Inácio Araújo, parceiro de longa data, e com J. C Ismael, que criou uma excelente obra literária baseada em Thomas Merton – que, coincidentemente, procurava a si mesmo em sua jornada.
Lembro-me inclusive de um dito popular que afirma que “o mais importante de uma jornada não seria o destino final, mas o percurso” e nesse filme a frase se torna clara. Decidido a achar o paraíso perdido ou imaginário chamado Mira-Celi (referência clara ao poema de Jorge de Lima), Fausto caminha pela cidade de São Paulo guiado pelo Mefisto e uma figura infantil que nos remete a uma espécie de inocência perdida. A caminhada por São Paulo traz, para mim, uma das visões mais ricas do filme. Apontado como um dos cineastas que melhor sabe filmar São Paulo como um personagem no filme, Carlos Reichenbach, em Filme Demência, chega a cerne dos perdedores, das prostitutas, dos cafetões, dos místicos de esquina e de toda espécie de escória metropolitana que transita e se tromba, dotados de forte credibilidade que acrescenta, à mise-en-scène do filme, um fundo de redenção.
São tais ingredientes que tornam o cinema de Reichenbach um cinema honesto, pois, praticamente em todos seus filmes, algumas situações tomam uma nova roupagem, sempre usando uma narrativa circular, em que o indivíduo passa por uma viagem pessoal e volta ao ponto de origem – mas, diferente: evoluído, um dos princípios básicos do anarquismo, forma política com que o diretor mais se simpatiza, mas sempre de maneira utópica.
A complexidade que o filme traz nos permite analisar todas as seqüências – não apenas pela carga pessoal do criador, mas também pela carga de sua formação literária cinéfila. Filme Demência, um anagrama de ‘filme de cinema’, contém muitas “situações-homenagem”, como a velha cigana que lembra muito A velha a fiar, de Humberto Mauro, surgindo num momento fenomenal em que Fausto, num boteco de estrada, para entre Deus e o Diabo – através de uma decupagem em que Mefisto trajado de velha está de um lado e um retrato de Cristo do outro. Há muitos outros momentos que trariam a este pequeno texto um desejo imenso de teses e procuras, porém, o que vale a pena citar e deixar em aberto nesta procura é que se o diretor tinha acertos de contas com seu pai, de maneira cinematográfica no painel histórico do cinema nacional, o acerto se tornou fato e o filme é seu testamento.
*Vebis Jr. é professor, pesquisador e diretor de curtas-metragens.