A Sessão do Comodoro e a Cinefilia dos Extremos

Dossiê Carlos Reichenbach

Por Marcelo Carrard

É inacreditável, para mim, que já se passaram cinco longos anos desde que ocorreu pela primeira vez a já lendária Sessão do Comodoro. Idealizada pelo cineasta Carlos Reichenbach, inicialmente era dupla – dois filmes eram exibidos em uma mesma noite em um dos templos da cinefilia paulistana, o Cinesesc, na Rua Augusta. Lembro-me claramente da primeira Sessão Dupla do Comodoro, quando foram exibidos os clássicos: Santa Sangre, de Alejandro Jodorowsky, e Canibal Holocausto, de Ruggero Deodato. Como sempre costumo chegar cedo aos meus compromissos, a fila ainda era pequena, mas quando entrei no Cinesesc percebi que a sessão estaria lotada, o que se confirmou em seguida. Todas as poltronas estavam ocupadas e as pessoas se acomodavam, se amontoavam pelo chão, foi muito forte e inesperado, mas, aos poucos, todos mergulharam no filme e na sessão seguinte algumas pessoas deixaram a sala de exibição revoltadas com os extremos do filme de Deodato. Recordo-me de o Carlão Reichenbach apresentando o seu blog, o Reduto do Comodoro, e então decidi fazer o meu próprio, o Mondo Paura. Com o passar dos meses e das sessões, fui conhecendo novos amigos cinéfilos, entre eles, Eduardo Aguilar, Leandro Caraça, André ZP e depois da noite gloriosa do Troféu Quepe do Comodoro, minha amizade com o Carlão se tornou mais sólida. Sessões inesquecíveis foram muitas: Incubus e Audition, O Homem de Palha e Eraserhead, sempre filmes raros e com uma grande capacidade de gerar discussões acaloradas entre os espectadores, sem importar se o público aprovava ou não os filmes, mas, a discussão sobre eles que passava posteriormente pelos blogs, com discussões longas e passionais, a favor e contra.

Autores clássicos do cinema extremo tiveram suas obras exibidas na Sessão do Comodoro. Joe D’Amato, com Buio Omega e A Alcova; David Cronenberg com Os Filhos do Medo; Jesus Franco com Macumba Sexual; Arrabal e o belíssimo Viva La Muerte, exibido ao lado de Fando & Lis; Dario Argento em uma exibição histórica de Prelúdio para Matar; Russ Meyer com seu Beneath the Valley of the Ultravixens; sem esquecer da noite em que foram exibidos Onibaba, de Kaneto Shindo, e Dellamorte Dellamore, de Michele Soavi; Voices From Beyond, de Lucio Fulci; Schramm, de Jorg Buttgereit; e toda uma galeria de filmes que tivemos o privilégio de ver em uma tela grande, em um cinema confortável, que registrou imagens de rara beleza como na noite em que a Sessão do Comodoro exibiu As Filhas de Eva, uma pérola do cinema vinda das Filipinas, e que o olhar sensível do Carlão Reichenbach percebeu que era digno de dividir com os amigos da sessão, difundindo o espírito da troca de filmes, de idéias e informações entre cinéfilos amigos que se encontraram nesses cinco anos de Sessão do Comodoro.

Dos momentos sublimes da Sessão, destacam-se a noite em que viajamos inebriados pelas imagens de A Morta-Viva, de Jacques Tourneur, uma verdadeira aula de cinema, e a noite em que foi exibido A Garota, de Luis Buñuel, dois momentos realmente inesquecíveis. O acesso aos filmes, a atmosfera de amizade e mútuo amor por um cinema que estava oculto pelos tolos preconceitos da crítica oficial são alguns dos desdobramentos iniciados pela Sessão do Comodoro. Foi em uma dessas sessões que eu conheci um menino que parecia uma enciclopédia ambulante do cinema da Boca do Lixo, chamado Matheus Trunk, que pouco tempo depois me chamou para participar de uma tal Revista Zingu!… Pois é, mais um desdobramento da sessão e seu espírito de congregar amigos, que vai muito além do tradicional cineclubismo. Cinco anos passam muito rápido mesmo. O interessante é que além da infinidade de filmes preciosos, vimos curtas-metragens feitos por amigos freqüentadores das sessões do Comodoro, uma oportunidade de ouro para esses novos realizadores. Longa vida para a Sessão do Comodoro, e que mais desdobramentos surjam, mais filmes raros sejam descobertos, amados e odiados: é assim que se configura a verdadeira e genuína cinefilia!

Os filmes de Reichenbach em VHS/DVD

Dossiê Carlos Reichenbach

Por Vlademir Lazo Correa

Fazer uma listagem dos filmes de Carlos Reichenbach lançados em VHS ou DVD é de dar um nó no peito, visto a quantidade de lacunas que nos impedem de conhecer mais a fundo a carreira do cineasta em questão. O que reflete uma circunstância que atinge a obra de centenas de outros diretores brasileiros, dos quais é um tanto quanto difícil para o cinéfilo mais empenhado fazer uma reflexão mais geral e ter um conhecimento mais abrangente de diretores nacionais que admira. O mercado da indústria de DVDs é muito deficiente nesse sentido e são muitos poucos os diretores tupiniquins que possuem o privilégio e a sorte de ter a sua obra completa disponível no formato digital (a questão já foi levantada aqui mesmo na Zingu! em texto do editor Gabriel Carneiro). Com raras e honrosas exceções, a tendência é lançar no máximo dois ou três filmes mais antigos de nossos cineastas, quase sempre as suas obras mais reconhecidas (o que nem sempre corresponde exatamente aos melhores feitos pelos respectivos diretores), ao mesmo tempo em que lançando os novos filmes dos que vêm sendo produzido recentemente (como no caso do Carlão Reichenbach, do qual apenas está disponível em dvd os seus últimos três longas-metragens). O que acaba fomentando (e até justificando) o acesso aos filmes pelos meios mais escusos (internet, emule, downloads em geral, etc.).

A situação não era muito diferente na época do videocassete, cujo mercado de fitas VHS explodiu no começo da década de oitenta, propiciando aos amantes do cinema uma forma mais acessível de se tornar um colecionador de seus filmes preferidos, ou de simplesmente ir até a videolocadora e escolher o que de novidade ou de mais raro alugaria para assistir no conforto de sua casa (sem contar que o processo de ir até a locadora e passear entre as prateleiras, contemplando e manuseando as fitas de vídeo era um ritual dos mais lúdicos). Na época, o acesso aos filmes brasileiros era igualmente complicado, porque eram lançados os cânones de sempre (Limite, Ganga Bruta, Vera Cruz, Mazzaropi, Atlântida, Cinema Novo e do Cinema Marginal apenas alguns do Sganzerla e do Bressane), enquanto que eram relegados ao esquecimento e ostracismo absolutos (o próprio Canal Brasil somente surgiria anos depois para resgatar muitas dessas produções fílmicas perdidas no tempo).

Entretanto, no decorrer da década de oitenta ainda era forte o ciclo da pornochanchada, que arrastam multidões aos cinemas e possuíam um retorno financeiro garantido. As videolocadoras sempre faturaram com fitas de apelo erótico, e consequentemente um grande número de pornochanchadas foram despejadas nas locadoras. Foi nessa circunstância que dois dos primeiros longas de Reichenbach, produzidos pela Boca do Lixo, puderam ser lançados em VHS: A Ilha dos Prazeres Proibidos, distribuído pela extinta Poletel, e O Império do Desejo, lançado pela Look Vídeo, numa edição em vídeo bem melhor acabada do que a de outras pornochanchadas da época (e cuja capinha sugeria se tratar de um filme com sexo explícito, o que não era verdade). São dois filmes muito acima da média do que era catalogado como filme erótico nas locadoras, e o próprio Antônio Polo Galante, o lendário produtor da Boca do Lixo, definia: “Nos filmes do Carlão, os personagens falam coisas esquisitas, mas o público vai ver”. Enquanto isso, outros longas dessa primeira fase do diretor (Corrida em Busca do Amor, Lilian M., Sede de Amar, Amor Palavra Prostituta, O Paraíso Proibido, Extremos do Prazer e o cultuado Filme Demência) foram completamente ignorados pelo mercado de vídeo na época, situação que perdura até os dias de hoje, em que a grande maioria ainda não teve a devida oportunidade de conhecê-los.

As coisas melhoram significativamente a partir do grande Anjos do Arrabalde, definido pelo próprio Carlão como o seu filme mais popular, o mais premiado e bem recebido pela crítica em geral e o mais facilmente entendido pelo público. Foi a produção que passou a dar uma visibilidade maior ao cineasta, e que naturalmente foi lançado em VHS pela distribuidora Transvídeo. A partir daí, todos os longas que Reichenbach realizou desde então foram lançados em algum dos formatos de vídeo. Em VHS, ainda foram disponibilizados Alma Corsária (lançado pela Sagres), verdadeiro marco da retomada do cinema brasileiro dos anos 90, e o posterior Dois Córregos, pela Versátil, que também o lançou em DVD, junto com o curta Olhar e Sensação – hoje, fora de catálogo. No formato digital, também foram lançados todos os longas que Reichenbach dirigiu nessa presente década: Garotas do ABC (pela Europa Filmes, numa edição que inclui nos extras o belo curta Equilíbrio e Graça), Bens Confiscados, pela Imovision, que também lançou agora em 2009 o recente Falsa Loura, até o momento o último filme do diretor.

Enquanto isso, todos os outros filmes do cineasta esperam a sua vez no formato digital, incluindo aqueles mais antigos que no momento não nos é possível assistir e que no ostracismo em que se encontram vão se mantendo em uma cortina de fumaça especialmente densa, muito por conta de empecilhos burocráticos como o que está dificultando o lançamento de Lilian M. – Relatório Confidencial pela Lume Produções Cinematográficas, dentro da coleção dedicada ao Cinema Marginal. Entraves que certamente desanimam o realizador, mas que esperamos que sejam solucionados dentre o mais breve possível, por maior que as dificuldades que se apresentam.

A Cara do Brasil – Os atores no cinema de Carlos Reichenbach

Dossiê Carlos Reichenbach

Por Adilson Marcelino

O cinema de Carlos Reichenbach é humanista na mais alta acepção da palavra. Fotógrafo inspirado de alguns de seus filmes e de muitos outros cineastas, ele é um diretor que construiu sua estética sem alijar os personagens do centro de um olhar rigoroso, político, poético e afetuoso. Carlão ama seus personagens, e, conseqüentemente, ama seus atores. A prova está em cada fotograma de sua notável filmografia.

Por amar seus personagens e seus atores, o cinema reichenbachiano é o mais particular quando se pensa em elenco na cinematografia nacional. Generoso, mas sem abrir mão do que quer – pois o mestre sabe exatamente o que quer -, ele proporciona possibilidades para a mais variada gama de intérpretes, e não só em papéis de segundo, terceiro ou quarto escalão – e isso sem carregar qualquer valor diminutivo, pois o cinema é equipe, e por isso todos os escalões são essenciais. A distinção é no sentido de que Carlão não titubeia em apostar no seu elenco, seja de nomes conhecidos ou não, seja de atores veteranos ou iniciantes.

Foi assim com Célia Olga Benvenutti com a personagem-mítica em Lilian M. – Relatório Confidencial. Foi assim também com Vanessa Alves, que alçou a uma de suas atrizes-fetiches e uma das amadas musas da Boca Lixo, já a partir do segundo filme da atriz, O Paraíso Proibido (1981) – e com quem voltaria a trabalhar em Extremos do Prazer, Filme Demência, Anjos do Arrabalde e Garotas do ABC. E foi assim com Michelle Valle, a belíssima Aurélia Schwarzenega, protagonista de Garotas do ABC. Sem falar no coroamento da deusa Rosanne Mulholland em Falsa Loura.

No cinema de Carlos Reichenbach, existem momentos marcantes de atores típicos da Boca do Lixo, como Roberto Miranda, David Cardoso, Luiz Carlos Braga, Sérgio Hingst, Genésio de Carvalho, Carlos Bucka, Carlos Casan, Benjamin Cattan e Fernando Benini. Já com as atrizes do pedaço é um capítulo à parte, pois filmou muita das mais deslumbrantes musas da Rua do Triumpho: Selma Egrei, Patrícia Scalvi, Ana Maria Kreisler, Meire Vieira, Neide Ribeiro, Zilda Mayo, Misaki Tanaka, Fátima Porto, Teca Klaus, Márcia Fraga, Nádia Destro, Aldine Muller, Alvamar Taddei, Zaira Bueno, Taya Fatoon, Sandra Graffi, Rosa Maria Pestana, Nicole Puzzi.

Na sua paleta, tem também atores que trafegam pela televisão, como astros e estrelas do porte de Sandra Bréa e Luiz Gustavo, ou futuros como Ney Latorraca e Teresinha Sodré, todos eles com trabalhos marcantes na Boca do Lixo, seja no cinema de Carlão ou de outros cineastas. E continuou fazendo isso fora da Boca, nos últimos filmes, como com Carolina Ferraz e Andrea Richa em Alma Corsária, e com Maurício Mattar e Cauã Reymond em Falsa Loura. Isso porque Carlão sabe que todos esses atores são muito maiores que qualquer rótulo apressado, além de todos eles serem também gente de cinema.

Carlos Reichenbach participou de filmes de colegas como ator, como em No Rancho Fundo, de Oswaldo de Oliveira, e em Noite em Chamas, de Jean Garret. É curioso constatar que ele também recrutou vários de seus companheiros para participar de seus filmes, atuando ou como eles mesmos: Maurice Capovilla, Ozualdo Candeias, Rogério Sganzerla, José Mojica Marins, Edward Freund, Luiz Castellini, John Doo, Jairo Ferreira.

Tem também aqueles que são espelhos do cinema de Carlão: a citada Vanessa Alves; Ênio Gonçalves, ator-fetiche do cineasta; Roberto Miranda, Emílio Di Biase, Orlando Parolini e Bertrand Duarte; além de um lugar especial para Betty Faria, também parceira de produção em Bens Confiscados.

Por fim, uma característica toda própria. Basta olhar a filmografia do diretor mais de perto que uma particularidade salta ainda mais aos olhos: a escalação inesperada de nomes das mais diferentes áreas. Quais? Flor em Alma Corsária; Fafá de Belém em Garotas do ABC; Eduardo Dusek e Marina Person em Bens Confiscados; Susana Alves, a inesquecível Tiazinha, e Léo Aquila em Falsa Loura.

Ver o cinema de Carlos Reichenbach por qualquer ângulo, como o do elenco aqui explorado, é ver o cinema nacional por inteiro. É ver a cara de um país.

O Regime Militar pela ótica de Carlos Reichenbach

Dossiê Carlos Reichenbach

Por Gabriel Carneiro

Nos anos 90, o cineasta Carlos Reichenbach realizou dois longas-metragens, Alma Corsária (1993) e Dois Córregos – Verdades Submersas no Tempo (1999). Foi um período de reconstrução do cinema brasileiro, que enfrentava uma enorme crise financeira: não havia mais quem produzisse nos primeiros anos da década. A Embrafilme deixou de existir com o Collor e os produtores da Boca, principais patrocinadores dos filmes de Reichenbach, haviam se voltado para os filmes de sexo explícito. Não parece à toa então, que na década em que chegava à meia idade – Carlão nasceu em 1944 – e com um cinema natimorto no país, um dos principais diretores paulistas se voltasse ao cinema de memória.

Alma Corsária foi feito, como diz o título, de maneira corsária, independente, e como parâmetro de reflexão para a vida mundana de seu passado. A reflexão é sobre a sua própria vida, tanto que há várias participações afetivas, como amigos pessoais do diretor. Ao seu início, ele nos conta que as personagens e situações vividas no filmes foram baseadas em diversas pessoas que passaram por sua vida. Enquanto Torres e Xavier lançam o livro Sentimento Ocidental na Pastelaria Espiritual, a memória toma lugar, especialmente para Torres. Nascido na pobreza, não completou seus estudos, mas teve contato com a riqueza (seu amigo Xavier), e tornou-se escritor e jornalista.

Dois Córregos – Verdades Submersas no Tempo é a memória nostálgica. Também baseado em casos verídicos presenciados por Reichenbach, o filme se inicia com Ana Paula indo retomar o terreno da família de um grileiro, na cidade do interior paulista que dá título ao longa. Ela não visitava a casa desde o final dos anos 60, quando passou quatro dias.

Tanto Alma Corsária quanto Dois Córregos voltam-se para a memória de um passado que ainda está presente na vida atual de seus personagens.

Em Alma Corsária, por exemplo, Torres rememora sua vida desde os anos 50, quando tinha 14 anos. Porém, é só a partir dos 60 que os flash-backs adquirem cor. O p&b tem uma conotação de passado, do que ficou para trás, diferentemente da cor, viva e fulgaz, mas ainda retumbante. Entre os anos de 1966 e 1969, há a ascensão e queda da representação do regime militar em sua vida. Em 1966, vive num albergue comunista, em que os habitantes pregam o liberalismo sexual e político, clamando pelo fim do autoritarismo militar, através de leituras incessantes de teóricos da esquerda e na esperança de servir o país nas lutas armadas. Torres é também contra o autoritarismo militar, mas não é devoto dos métodos. Não lê e não se engaja em debates inflamados sobre política, não se importa com o comunismo cubano e chinês. Cansado da vida clandestina, num momento simbólico, Torres larga tudo – e largar tudo, é tirar do corpo as diversas camisetas marketeiras de esquerda que seus colegas vestem (Che, Malcolm X…), e lhe resta uma apenas, com o símbolo do anarquismo.

Em 1968/69, é novamente afrontado pelo regime militar. Está morando na casa de um colega jornalista, com um enorme acervo de discos e livros. Primeiro, vemo-lo sendo “achacado pelos homens”: alguns militares o têm como subversivo na rua, e além de revistá-lo, insultam-no, chamando de “gay” e de “operário”. Nesse momento, algumas pérolas: “ainda bem que largou os estudos, porque todo estudante é comunista” e “eu vou te prender porque você é viado, e fica por aqui procurando homem”. Depois ele se vê obrigado a abrigar um antigo colega de albergue, que está fugindo dos militares e à espera de sua nova missão. Segundo esse colega, seria sua forma de contribuir com a causa. Nisso, ele leva uma mulher, nas mesmas condições, por quem ele se apaixona.

Por último, ele se confronta com Xavier. Nesse conflito, vemos o desenrolar da relação do protagonista com o regime militar. Cansado de tudo, após abandonar a vida de fora da lei, ele entra de cabeça na erudição em sua nova vida na casa do amigo jornalista. Xavier, inconformado, chama-o para participar da luta, para acabar com o autoritarismo – indigna-se: “como você pode ficar enfurnado nesses livros quando as coisas estão acontecendo lá fora?” Isso serve apenas para Torres expor a memória do regime militar no cinema brasileiro dos anos 90: para ele, Xavier é um burguesinho com sentimento de culpa pelas desgraças que sua classe social alavancou ao poder; ir ao combate seria a redenção. Como Torres não tem esse complexo de classe – porque, invariavelmente, a memória mostra que os opositores o regime militar são sempre de esquerda, em seus mais diversos graus -, para ele tanto faz a luta social, tudo que quer é levar sua vida árdua e complicada.

Em Dois Córregos, há duas memórias do regime militar. A memória de Ana Paula, que vê o regime militar de forma romantizada, pois o seu contato com o governo foi os quatro dias na cidade – para ela, uma época marcante, em que se deparou com a realidade angustiante de um homem, e por ele “se apaixonou”. E a memória de Hermes, tio de Ana Paula, que está escondido no sítio de Dois Córregos, nos anos 60, tentando legalizar a volta ao Brasil.

Para Ana Paula, o regime militar representava o passado que a transformou, pois entrou em contato com seu tio Hermes, um subversivo, que estava escondido, e a quem via com orgulho e admiração. Para Hermes, o passado recente foi necessário, porém suas conseqüências são dolorosas. Em algum momento do filme, ele diz que “o exílio é o pior castigo que se pode submeter um homem”. O exílio, no seu caso, é da sua família e principalmente de seus filhos, cujos rostos ele não se lembra.

 O olhar de Reichenbach, em Dois Córregos, é um tanto clínico: ele assume as duas memórias como verdadeiras e aceitáveis. O romantismo do passado, a nostalgia, porém não ligada aos movimentos esquerdistas ou à luta armada – nesse casso, a memória de Hermes é sóbria, pois ele é um pacifista que se juntou por um ideal (e uma mulher), mas contrário os métodos utilizados; Hermes crê num mundo brando e justo, mas sem ideologias políticas. O romantismo de Ana Paula é pela adolescência, da descoberta do novo, do diferente, do saudoso. A sensação de “bons tempos são aqueles que se foram”, do final do filme, que desconstrói as imagens dos personagens daquela memória, só serve para reforçar o nostálgico – mas nunca no âmbito político. Talvez a frase proferida por Hermes dê o tom da película: “os momentos mais marcantes são os efêmeros”.

O diretor viveu sob o regime e sempre teve convicções anarquistas. Por isso, todo militar é um estereótipo. Para ele, todos os militares eram iguais, pessoas sem identidade. Sejam os militares que abordam Torres, em Alma Corsária, sejam os militares que pedem a identidade de todos que desembarcam na estação de trem, e, principalmente, personificados no namorado de Tereza, em Dois Córregos. Uma pessoa machista, sem índole ou apresso pela família, conhecido no quartel como “arranca lágrimas”.

Quanto aos opositores, há um maior aprofundamento, mesmo que ele não descarte o estereótipo nos casos mais extremos, de pessoas que creiam que mudariam o mundo – e dessa forma distanciavam-se da realidade, para viver o sonho da revolução. Em Alma Corsária, um dos alberguistas grita: “eu vou embora, vou lutar, vou fazer história”. De qualquer forma, Reichenbach se aprofunda em personagens que passaram por isso (Torres e Hermes) e de alguma forma assumem o período como uma fase. Tudo parte da própria crença de Reichenbach num anarquismo pacífico.

Os finais de Alma Corsária e de Dois Córregos afirmam a identidade dos anos 60 no Brasil militar: a morte releva o passado e constrói o mito. Hermes foi dado como mártir e virou mártir, mesmo nunca tendo matado ninguém ou ter realmente se engajado. Torres é levado pela morte personificada e torna-se emblemático em seu universo. Para Reichenbach, o sonho dos anos 60, da resistência militar, era utopia pura e era para isso que lutaram – mas nem por isso é uma época para mitificações (os mortos simbolizam a utopia) ou romantismos.

Carlos Reichenbach – uma obra à vida toda

Dossiê Carlos Reichenbach

Carlos Reichenbach – O cinema como razão de viver, por Marcelo Lyra

Coleção Aplauso Cinema Brasil – Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Por Madson Hudson Moares

15 longas-metragens, reconhecido internacionalmente, ganhador de prêmios importantes de cinema, professor, fotógrafo, produtor, crítico, ensaísta, cinéfilo, Carlão é tudo isso e um pouco mais. E esse pouco só descobre-se quando se tem uma prosa com ele. Carlão começou cedo: despertou seu gosto para o cinema aos dez anos de idade. O mais curioso foi que fez o caminho inverso: em vez de um filme, o que o inspirou foi um roteiro cinematográfico (Jovita, de Oswaldo Sampaio, que não chegou a ser filmado). Tendo formação essencialmente literária – o pai era editor de livros – Carlão viu ali a fagulha do cinema. E dele não iria largar até hoje, tornando-se um dos maiores cineastas brasileiros. Mas, sem fugir dos clichês cinematográficos, vamos por parte.

Carlão é Carlos Oscar Reichenbach Filho. Apesar do Oscar no nome, Carlão nunca ganhou um, como se isso mudasse seu prestígio e importância dentro da cinematografia mundial. Carlão é uma daquelas raridades como diretor: pode-se encontrá-lo no meio da rua, abordá-lo diante de uma banca de jornais e, se o assunto for cinema, a conversa vai longe. Uma prosa com Carlão vale por toda uma faculdade de cinema.

Carlão está presente na Coleção Aplauso, publicada pela Imprensa Oficial, exclusivamente dedicada a resgatar nomes importantes dentro do cinema paulista. Não seria bem uma biografia, mas um livro-depoimento, escrito pelo jornalista Marcelo Lyra. A obra, em si, já possui uma história curiosa. Começou a surgir em meados de 2001 quando Hermes Leal, editor da Revista de Cinema, convidou Marcelo para participar de uma coleção de biografias de dez dos principais cineastas tupiniquins. De uma lista, Marcelo logo escolheu Carlão, sem hesitar. A partir de uma intensa pesquisa, foi destrinchando os detalhes da vida de Carlão, seja pelas entrevistas dadas, seja por seus filmes. Infelizmente, no meio do caminho apareceu uma pedra: o patrocinador que iria bancar a coleção de biografias desistiu na última hora e o projeto foi arquivado. Marcelo, apesar da adversidade, resolveu seguir com sua pesquisa mesmo sem perspectiva de uma publicação. Isso até que Rubens Ewald Filho, no Festival de Gramado de 2003, ofereceu a Marcelo uma preciosidade: estava coordenando uma coleção de livros sobre atores e diretores paulistas e ficou sabendo da pesquisa que Marcelo empreendera. Pronto: ganhava o jornalista e ganhavam os cinéfilos com aquele livro-depoimento sobre o diretor paulistano. Dividido em três partes, o livro sobre Carlão é generoso em informações: num primeiro momento Marcelo expõe sua pesquisa e admiração pelo cineasta, depois vem o próprio e expõe suas entranhas cinematográficas e, ao final, toda a filmografia é exposta com comentários dos autores. Uma introdução ao universo de Reichenbach.

O único problema é que Carlos Reichenbach e sua obra não cabem dentro de um livro-depoimento. Como se já disse aqui, Carlão vale por todo um curso de cinema. E é por essa razão que ele, como bem aponta Marcelo no livro, ‘é um personagem extremamente complexo’. Imenso devorador de livros, o cineasta herdou do pai a gigante biblioteca e, aos 15 anos, já havia lido quase todos os clássicos. Poesia, filosofia, música erudita, cinema, nada deixou passar e por isso adquiriu uma sólida formação cultural. Estando no lugar certo com as pessoas certas, aos 21 anos, Carlão resolveu estudar cinema na (hoje extinta) Escola Superior de Cinema de São Luís, onde, por dois anos, desenvolveu laços com futuros parceiros, como João Callegaro. Lá teve oportunidade de estar com os grandes do cinema nacional, como Paulo Emílio Salles Gomes, Mário Chamie, Roberto Santos e Luís Sérgio Person, este decisivo em sua carreira como diretor. O caso é que Carlão, entusiasmado com a narrativa de um roteiro para cinema, queria ser roteirista cinematográfico profissional. Prontamente foi aconselhado por Person: ‘se você quiser ter seus filmes rodados, vire diretor de seus próprios roteiros’. Dado o recado, Carlão aprendeu bem a prenda e hoje tem clássicos em sua cinematografia como Lilian M, relatório confidencial (1975), Filme Demência (1986), Dois Córregos (1999), entre outros. Mas a São Luís, responsável pelo primeiro curso de cinema em nível universitário, também possuía ao seu redor nomes importantíssimos como Rogério Sganzerla, José Mojica Marins, Ozualdo Candeias, etc. Toda a patota do cinema e seus respectivos gênios. Junte isso às primeiras leituras e realizações críticas, à produção cinematográfica japonesa exibida no bairro da Liberdade na época, a falta de recursos para produzir, tudo que levou Reichenbach e outros realizadores às distribuidoras da Boca do Lixo, únicas capazes de porem em película as ideias de realizadores tão transgressivos.

Por que Carlos Reichenbach, repetidamente, é uma escola cinematográfica ambulante? Porque cada filme é uma aula, tal a quantidade de citações literárias, filosóficas e existenciais, bem como a diversidade musical nas trilhas. Desde Corrida em Busca do Amor (1971) até a fase pornochanchada com A Ilha dos Prazeres Proibidos (1979) e O Império do Desejo (1980), Carlão sempre foi uma espécie de muambeiro da cultura erudita à cultura popular. Reichenbach começou dirigindo Alice, episódio do longa As Libertinas, realizado em parceria com Callegaro e com o crítico mineiro Antonio Lima. Aboliram o conceito de cinema revolucionário de suas cabeças e passaram a fazer um cinema mais cafajeste, mais debochado e antiestético seguindo as lições do ‘quanto pior, melhor’. Chegou a dirigir mais outro episódio com Antonio Lima, aproximou-se de um núcleo de produção que começava surgir na Rua do Triumpho, produziu até Lilian M, relatório confidencial, que o considera seu primeiro filme na linha do Cinema da Alma. Anarquia em todos os sentidos, misto de vários gêneros cinematográficos, linguagem subvertida a cada plano: estava delineado o jeito Reichenbach de fazer cinema.

Um dos achados importantes de Marcelo em seu livro-depoimento é perceber o quanto os personagens dos filmes de Carlão são interligados. Ou seja, sempre nomes diferentes mas ‘reconhecíveis pela alma corsária’. Por exemplo, em A Ilha dos Prazeres Proibidos, existe o profeta maluco que mata citando Fernando Pessoa. Em Filme Demência surge algo idêntico, quando um aluno mata o professor declamando citações. Similaridades surgem também em Dois Córregos e Alma Corsária: respectivamente, o personagem de Riccelli tem algo em comum com Bertrand Duarte: ativistas políticos, sentem-se perdidos na busca do amor, na busca da esperança. Outro achado é revelar o universo íntimo-cinematográfico de Carlão: pessoas como a amiga e produtora Sara Silveira, fundamentais na carreira do cineasta.

A Coleção Aplauso conseguiu suprir a falta que fazia um roteiro detalhado sobre a vida de Reichenbach, ainda que insuficiente. Sobrevivente de três infartos, a obra de Carlão sobrevive ao tempo e com certeza será os clássicos de uma nova geração de amantes do cinema.

Cineasta de alma corsária

Dossiê Carlos Reichenbach

Por Marcelo Lyra, especialmente para a Zingu!*

O convite da Zingu!, para uma reflexão sobre o cinema marginal de Carlos Reichenbach, caiu como uma luva para rever a obra de um dos cineastas brasileiros que mais admiro. Desde que terminei nosso livro Cinema Como Razão de Viver, em 2004, eu não fazia isso.

Carlão é mesmo um dos autores mais coerentes. De certa forma, está sempre refazendo o mesmo filme, buscando outras formas, quase sempre interessado no homem (ou mulher) que não pode viver no seu meio, que tem que sair dele. Da mesma forma, o olhar para o perdedor, para o fracasso, está presente desde seu primeiro longa-metragem, Corrida em Busca do Amor (1971), aquele que é, sem dúvida, o menos autoral de todos. Isso porque foi um filme de encomenda, filme de produtor para um público juvenil. Mesmo assim, os garotos pobres, quase sem chances diante de um mundo rico e adverso, são uma perfeita síntese do que viria a ser a obra do diretor. Também é emblemático que o filme ficasse sem verba na metade das filmagens, e Carlão fosse obrigado a reescrever o roteiro, criando toques de humor anárquico e fazendo os heróis terminarem a corrida a pé. Qualquer semelhança com a frase d’O Bandido Luz Vermelha: “Quando não se pode fazer o melhor, a gente avacalha!”, não é mera coincidência.

A pessoa que não se adequa, que não se acomoda ou que não é aceita pelo mundo em que vive, é um aspecto ainda mais constante. Perpassa Lilian M. (1975), a mulher que não consegue a felicidade, por mais mundos que freqüente; está nos exilados políticos, arrancados à força de seu mundo, em A Ilha dos Prazeres Proibidos (um filme político produzido para o mercado erótico da Boca do Lixo em 1979); no hippie que vaga sem rumo em Império do Desejo (1980); no idealista cético que vai se isolar no litoral de Paraíso Proibido (1981); no professor desiludido que vai encontrar forças na tragédia de uma nova amiga em Amor, Palavra Prostituta (1981); no professor militante político desiludido com o desaparecimento (nas mãos da ditadura militar) da mulher que se isola numa casa de férias em Extremos do Prazer (1983), filme próximo a Amor Palavra Prostituta; no ativista político frustrado pelos rumos da esquerda e de seu país em Alma Corsária(1993), e que vaga entre vários universos (quase uma versão masculina de Lilian M.); nas professoras que sofrem a miséria da periferia enquanto sonham um mundo melhor para si e as crianças em Anjos do Arrabalde (1987); no industrial oprimido pela pressão da sociedade em Filme Demência (1986); na enfermeira que sofre por um amor frustrado e tenta uma vida melhor para o filho do ex-amante em Bens Confiscados(2004); no ativista político isolado num mundo bucólico de Dois Córregos (1999), herdeiro direto, quase somatória, de diversos personagens, seja de A Ilha…, Alma e Anjos; na garota do ABC que sonha com um mundo melhor mas é tragada pelo pai e pelo namorado problemáticos.

Nos anos 70, quando aproxima-se dos produtores da Boca do Lixo, aproveita-se do fato deles preocuparem-se apenas com que os filmes tenham cenas eróticas e faz filmes que queria fazer, ou seja, políticos permeados de reflexões filosóficas, sempre conseguindo seu objetivo, a despeito da pobreza de recursos.

Se unirmos as duas pontas, há muitos pontos em comum: o sonho da garota pobre, em Falsa Loura, seu filme mais recente, com a ascensão social ao aproximar-se de ricos e famosos, e os sonhos de sucesso dos garotos de Corrida em Busca do Amor. Mas, na maneira de filmar, a distância é proporcional aos mais de quarenta anos que separam os dois trabalhos. Este se alinha no mesmo grid de Lilian M., de A Ilha dos Prazeres Proibidos e outros filmes da fase inicial, em que a escassez de recursos orientava a encenação, da duração dos planos, do posicionamento da câmera etc., sempre no sentido de aproveitar ao máximo o pouco que se dispunha; dos anos 90 para cá, a partir do encontro com a produtora Sara Silveira, Carlão perde boa parte dos vínculos estéticos com esse que se convencionou chamar de Cinema Marginal, mas que veste melhor o rótulo de Cinema de Invenção. Passa a poder dar asas à sua criatividade, sem se preocupar tanto com orçamento. Se precisar de uma grua, pode colocar na escaleta que a Sara arruma. Assistente de produção em Filme Demência, ela impressionou por sua eficiência e rapidez, sendo contratada como produtora executiva em Anjos do Arrabalde. A partir daí, não se separaram mais.

Apesar da “fartura” atual, não há desperdício. Carlão só pede uma grua se ela for essencial à dramaturgia. Na cena inicial de Bens Confiscados, por exemplo, a esposa do senador, sufocada pela da pressão moral e psicológica imposta por ele, vai se suicidar. Mas, inicialmente, vemos apenas a amplidão de São Paulo, quase em tom de cartão postal, e a atriz. Há uma beleza latente que o movimento de câmera irá desmistificar. Assim que notamos que ela está à beira de um abismo (que representa o abismo psicológico da personagem), há uma guinada brusca no espectador e o filme ganha ares de pesadelo que norteará toda encenação à partir daí.

Em Dois Córregos, a câmera gira em torno do casal de amantes formado pelo exilado e pela governanta (Carlos Alberto Ricelli e Ingra Liberato). É um erotismo de uma beleza estética rara na fase de escassez, mas que também flerta com o brega, flerte que ele irá desenvolver melhor em Falsa Loura. Mas é uma movimentação cuidadosamente estudada e absolutamente necessária para criar a ambientação daquele amor impossível, encurralado, que surge em meio a uma situação política de repressão, em que não há liberdade para o amor. É um momento de sonho, de felicidade e de entrega, que irá desaparecer como uma bolha de sabão pouco depois.

Carlão abre Garotas do ABC com um inesquecível streaptease invertido. Em um momento de sonho, a garota Aurélia começa nua e vai se vestindo aos poucos, enquanto a câmera parece flutuar. Tudo milimetricamente estudado para criar uma falsa impressão de paz e alegria. O universo das tecelãs, como se verá a seguir, não tem nada de alegre.

Em resumo, é uma obra coesa, ainda que construída a maior parte dela na adversidade, sem recursos, tendo que improvisar cenas e reescrever roteiros diante de inesperadas faltas de recursos. Mesmo na segunda fase, com a disponibilidade de recursos, não perde o rumo. Na riqueza ou na pobreza, Reichenbach está sempre interessado no cinema da alma. É um autor seguindo seu rumo, uma alma corsária nesse paraíso proibido que é o cinema.

*Marcelo Lyra é jornalista e crítico de cinema, autor do livro Carlos Reichenbach – O Cinema como Razão de Viver

Artigos

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As Nobres Influências Cinematográficas de Carlos Reichenbach

Dossiê Carlos Reichenbach

As Nobres Influências Cinematográficas de Carlos Reichenbach

Por Marcelo Carrard

Existe uma categoria de diretores de cinema que pode ser classificada com ‘diretores cinéfilos’, cuja paixão pela sétima arte se mistura de tal forma em sua criação artística, que transforma seus filmes em verdadeiras declarações de amor aos mestres do cinema formadores de sua cinefilia nas mais diversas fases da vida. Não apenas citações, mas atmosferas, olhares, onipresenças espirituais do cinema desses diretores aparecem explicitamente ou com uma sutileza elegante. Entre esses cineastas temos: Martin Scorsese, Pedro Almodovar, Tsai Ming Liang, Quentin Tarantino e muitos outros, das mais diversas formações e estilos cinematográficos. Um de nossos maiores e mais sensíveis ‘diretores cinéfilos’ é, sem dúvida, Carlos Reichenbach. Formado em um tempo em que o cinema tinha mitos, um poder revolucionário de transformação, e, principalmente, em que existia uma infinidade de cinemas tanto no centro, quanto nos bairros das grandes cidades, o fascínio que a grande tela exercia sobre os corações e as mentes daquela geração era um forte incentivador para que surgissem diretores, tudo aliado ao ambiente intelectual, ao discurso político revolucionário, à utopia, à literatura e ao desejo de expressar em imagens a inquietude daquele mundo em turbulência.

Creio que além do cinema clássico de Hollywood, de seus heróis e musas eternas, as rupturas estéticas da Nouvelle Vague francesa e japonesa surgem como um dos grandes mananciais de influências para o então jovem Carlão Reichenbach e seus colegas de geração. O privilégio que ele teve de ter visto os filmes japoneses nos cinemas do bairro da Liberdade, antes de muitos cineastas europeus, foi um elemento muito impactante para aquele grupo de cineastas. O cinema de Oshima, Yoshida e principalmente Imamura são claras influências para Carlão, que o acompanham até hoje. Mas, para organizar tudo, foi necessário um mestre, vital para a formação dele enquanto diretor: Luis Sérgio Person, mais que um professor, foi uma espécie de ‘pai espiritual’, que incentivou Reichenbach perseguir a carreira de diretor. A ligação dele com o pessoal da Boca do Lixo o fez um inspirado diretor de fotografia e a relação com o produtor A. P. Galante o influenciou na escritura dos roteiros até hoje. Seu incontrolável desejo por conhecer novos autores, lhe levou a cineastas como Samuel Fuller, que é citado explicitamente em Alma Corsária – na cena em que Eduardo Aguilar entrega um Oscar para Fuller, interpretado por Maurice Legeard. O fascínio e a profunda sensibilidade que o Carlão tem pelas mulheres em seus filmes remetem a Truffaut, mas ao desnudá-las, faz como um Tinto Brass, como um Joe D’Amato, como um Jesus Franco em momentos de grande inspiração. Existem os que afirmam que Reichenbach é um diretor feminista – de fato, ele sabe dirigir atrizes com profunda sensibilidade, assim como fazia o colega Walter Hugo Khouri.

Na fortuna crítica sobre a filmografia de Carlos Reichenbach, muitos fazem comparações entre a leitura que ele faz do melodrama clássico, com a releitura desse mesmo melodrama por cineastas como Rainer Werner Fassbinder. Estruturalmente, ambos preservam a cartilha do gênero e ao mesmo tempo a subvertem. Embora Fassbinder seja mais niilista do que o Carlão, ambos tem pontos em comum. Godard também é uma forte influência nos primeiros filmes, mesmo que não seja tão celebrada pelos mentores do Cinema Marginal, do qual Reichenbach é um dos “integrantes”. A amplitude de uma leitura sobre as influências cinematográficas de um diretor passa pela percepção pessoal de cada espectador, mas sempre é algo muito mais interiorizado, mais pessoal de cada realizador. De Candeias, ele tem um forte desejo de colocar os excluídos em cena, de mostrar uma realidade das bordas, uma realidade marginalizada e incômoda. Os ideais de sua geração e do Cinema Marginal nunca foram esquecidos por Carlão. A anarquia de filmes como Lilian M. até hoje possui uma força grandiosa. Cineastas totalmente diferenciados como Russ Meyer e Alejandro Jodorowsky estão entre os favoritos do Carlão Reichenbach, ao lado de Takashi Miike e dos novos realizadores franceses dedicados ao cinema de horror extremo, sem esquecer dos mentores do horror cinematográfico italiano: Mario Bava, Dario Argento, Lucio Fulci e Ruggero Deodato, entre outros. Fritz Lang também não poderia deixar de ser citado. Falar de cinefilia, de influências cinematográficas na obra de Carlos Reichenbach, é um longo e prazeroso passeio por uma galeria de imagens inesquecíveis. Tudo isso é fruto de um trabalho artístico de profunda sensibilidade, de um autor com os olhos totalmente livres.

Musas do Diniz

Mariana de Moraes

seu nome é som cristalino

menina do rio, sinônimo de sol

fulaninha, beleza corsária

musa que brinca nas ondulações da calçada

e constrói castelos de areia dos anos oitenta

neta do Vina, poeta dos sentires

voz que azuleja os arrabaldes do mar

Musas Eternas Especial…

Dossîê Carlos Reichenbach

Vanessa Alves

Por Matheus Trunk

O cinema da Boca teve seu auge entre o final dos anos 70 e início dos 80. Durante esse período, atrizes como Helena Ramos, Aldine Müller e Matilde Mastrangi eram conhecidas nacionalmente. Muitas chegavam a ganhar fã-clubes em vários lugares do país. Diversas dessas atrizes, além da beleza, tinham grande talento e se tornaram conhecidas dos cinéfilos mais atenciosos e de parte da crítica. Vanessa Alves é um desses nomes.

Nascida em São Paulo, em 4 de setembro de 1963, Zilda Alves vem de uma família de origem humilde. Quando criança, fez balê e logo depois participou de alguns comerciais de televisão. Através de uma agência de publicidade, fez testes para uma produção de um dos filmes do produtor Antonio Polo Galante. Ela ganharia o papel principal no filme seguinte de Galante, A Filha de Emmanuelle, lançado comercialmente nos cinemas em 1980. Com sugestão do produtor, Zilda adota o pseudônimo de Vanessa, com o qual se tornaria uma das estrelas da Boca paulista.

A Filha teve a direção do realizador e fotógrafo Osvaldo de Oliveira, o Carcaça. De personalidade bastante forte, Carcaça nunca teve muita paciência com os atores. Segundo alguns contemporâneos, aquele homem tido como bruto e rabugento tinha grande carinho e respeito por Vanessa. Por isso, eles voltariam a trabalhar juntos.

Dentro do cinema paulista daquele período, cada musa chamava a atenção por sua personalidade. Matilde e Zilda Mayo eram falastronas e brincalhonas com todos. Vanessa sempre foi mais tímida e quieta.

Seu trabalho seguinte é O Paraíso Proibido, de Carlos Reichenbach, em que ela chegou a contracenar com o ator Jonas Bloch. Embora num papel menor, marca o início da parceria da moça com seu diretor mais constante. 

Em A Menina e o Estuprador (1982), primeiro longa de Conrado Sanchez, Vanessa torna-se protagonista pela primeira vez. O filme é um grande sucesso de bilheteria e a moça recatada torna-se um nome de destaque entre as atrizes da pornochanchada paulista.

Sobre ela, escreveu o jornalista Jota Santana na época: “É a perfeita representante da jeneusse doré paulistana. Freqüenta os endereços mais badalados do pedaço, enlouquece a moçada com sua ginga quente e maliciosa de menina-moça, esbanja suas energias nas pistas mágicas das discotecas e dos roller-shows”.

Vanessa foi parceira constante do diretor Antônio Meliande. Com ele, participou de películas de destaque como Vadias Pelo Prazer e no episódio Belinha, a Virgem, do longa As Safadas. O primeiro é uma comédia sobre o trio de irmãs Susana (Taya Fatoom), Márcia (Sandra Graffi) e Xuxu (Vanessa). Embora tenha roteiro de Ody Fraga, o filme acaba se perdendo do meio para o final. O episódio Belinha é hilário. Vanessa faz a personagem título, que está pra se casar com o milionário Bruno. Sua preocupação é com enxoval. Para arrumar algum dinheiro, ela acaba se prestando a dar serviços sexuais, mas sem perder a virgindade.

Faz uma participação especial em Pecado Horizontal, de José Miziara, e é uma das assaltantes da casa de David Cardoso em A Noite das Taras II. É também a amada Camila do trágico Lula (Diogo Angélica) em O Motorista do Fuscão Preto, de José Adalto Cardoso.

Curral de Mulheres, de Osvaldo de Oliveira, é outro trabalho digno de nota. Vanessa é uma das escravas brancas comercializadas pelo cafetão Edgard (Maurício do Valle). Num dos momentos mais eróticos da película, ela faz uma cena bastante ousada com a atriz Shirley Benny.

Em 1984, a musa protagonizou um papel forte no longa-metragem Volúpia de Mulher, de John Doo. Ela faz Cristina, uma moça que é expulsa de casa quando os pais descobrem que ela perdeu a virgindade. Cristina virá para a cidade grande e terá a ajuda de pessoas como o travesti Lili Marlene e da médica Laura (Helena Ramos).

No engraçadíssimo Os Bons Tempos Voltaram – Vamos Gozar Outra Vez, Vanessa aparece no segundo episódio intitulado Primeiro de Abril. Ela é Sônia, namorada avançada do jovem Edinho (Marcos Frota). Nesse filme, a musa dá um show de sensualidade e rouba toda a cena. No mesmo episódio, o ator Dionísio Azevedo está impagável como um velho turrão e reacionário.

Segundo muitos especialistas em cinema brasileiro, o grande diferencial de Vanessa frente suas contemporâneas é sua parceria com o diretor Carlos Reichenbach. Quando o explícito começou a invadir nossas telas, a musa se aproximou cada vez mais de seu mestre para fazerem uma série de trabalhos juntos.

Lançado nos cinemas brasileiros em 1984, Extremos do Prazer é um filme extremamente ousado e provocador. A história gira em torno de Luiz Antônio (Luiz Carlos Braga), um ex-catedrático que teve seus direitos cassados. Permanece auto-exilado em uma casa de campo. Vanessa é a filha do intelectual, que vai visitá-lo.

Sem grande dinheiro, Extremos surpreendeu a todos por conseguir um sucesso de crítica e receber um prêmio de menção honrosa no Festival de Gramado. “A platéia, no entanto, vaiou o filme Tensão no Rio, que custou 400 milhões financiados pela Embrafilme e isso gerou um mal-estar na empresa. O filme de Carlão custou 15 milhões e ele não havia pedido um único centavo à Embrafilme que não costuma financiar os cineastas que não são do Rio de Janeiro”, escreveu sobre o filme Amylton de Almeida,A Gazeta, de Vitória/ES,em 23 de maio de 1984.

Em seguida, Vanessa participa com destaque de Filme Demência (1986), trabalho em que Reichenbach exorciza seus demônios pessoais. A história gira em torno de um industrial de cigarros falido (Ênio Gonçalves). Ele não tem amor pelo ramo, entrou nele porque adquiriu a empresa do pai. Inicia uma busca frenética por Mira-Celi, seu paraíso imaginário.

As diversas dificuldades de produção foram preenchidas pela criatividade de Carlão e do elenco. Sobre sua parceria com os dois principais atores do filme, Carlão explicou em seu livro de memórias O Cinema Como Razão de Viver, escrito pelo jornalista Marcelo Lyra e lançado pela Coleção Aplauso: “O Ênio é a versão masculina da Vanessa Alves. São atores com quem trabalho num sistema de cumplicidade, sem precisar repetir ad-nauseou o que espero dos personagens. Com o Ênio e a Vanessa a comunicação é feita no olhar”.

Demência obteve a consagração definitiva para Reichenbach: ele ganhou cinco prêmios no Festival de Gramado de 1987, entre eles o prêmio da crítica e o de melhor diretor. Em seguida, ele faria seu melhor trabalho com Vanessa: Anjos do Arrabalde.

Três professoras da periferia de São Paulo (Betty Faria, Clarisse Abujamra e Irene Stefânia) possuem uma série de problemas em seus trabalhos e na vida pessoal. Vanessa faz a quarta personagem feminina da película: uma jovem de periferia que é violentada e vive com um operário que não ama. Ao mesmo tempo, é rejeitada pelo pai. A personagem sofrida, mas bastante quieta e recatada, cai como uma luva para uma atriz calma como Vanessa. Mesmo em uma película com atrizes já consagradas nacionalmente, a musa quieta e recatada brilha intensamente. Com isso, acabou recebendo o Kikito de melhor atriz coadjuvante no Festival de Gramado e o Prêmio Governador do Estado de São Paulo.

Com esse êxito na área cinematográfica, Vanessa ganha algumas chances na televisão, mas sem grande repercussão. Como diversas das atrizes que fizeram pornochanchada, ela permanece afastada do cinema durante muitos anos. Durante esse período, Vanessa faz teatro e dublagem. Retorna a telona somente em 2003, em outro filme de Carlão, Garotas do ABC

Muitas pessoas julgam o cinema paulista dos anos 70 e 80 como uma produção indigna. Normalmente, o cinema da Boca é tido como algo menor e sem nenhum valor artístico. Porém, este foi um período de atrizes esforçadas e talentosas que estão na história do cinema brasileiro. Atrizes de real talento como Neide Ribeiro, Patrícia Scalvi e Vanessa Alves certamente deveriam ser mais lembradas. 

Filmografia

1980 – A Filha de Emmanuelle, de Osvaldo de Oliveira;

1981 – O Paraíso Proibido, de Carlos Reichenbach;

1981 – Anarquia Sexual, de Antônio Meliande;

1982 – A Menina e o Estuprador, de Conrado Sanchez;

1982 – As Vigaristas do Sexo, de Ary Fernandes;

1982 – Vadias Pelo Prazer, de Antônio Meliande;

1982 – As Safadas (episódio Belinha, A Virgem), de Antônio Meliande;

1982 – Pecado Horizontal, de José Miziara;

1982 – A Noite das Taras II, de David Cardoso e Cláudio Portioli;

1982 – O Motorista do Fuscão Preto, de José Adalto Cardoso;

1982 – Curral de Mulheres, de Osvaldo de Oliveira;

1982 – Bonecas da Noite, de Mário Vaz Filho e Antônio Meliande;

1983 – Massagem For Men, de José Adalto Cardoso;

1983 – Extremos do Prazer, de Carlos Reichenbach;

1984 – Volúpia de Mulher, de John Doo;

1984 – Transa Brutal, de Diogo Angélica;

1985 – Os Bons Tempos Voltaram – Vamos Gozar Outra Vez (episódio Primeiro de Abril), de John Herbert;

1985 – Made In Brazil (episódio Fim de Semana Impossível), de Carlos Nascimento;

1986 – Avesso do Avesso, de Antônio Ferreira de Souza Filho;

1986 – Filme Demência, de Carlos Reichenbach;

1987 – Anjos do Arrabalde, de Carlos Reichenbach;

1987 – Los Corruptores, de Teo Kofman;

1987 – As Prisioneiras da Selva Amazônica, de Conrado Sanchez;

1987 – Mais Que A Terra, de Eliseu Ewald;

2003 – Garotas do ABC, de Carlos Reichenbach.