Dossiê Carlos Reichenbach

Falsa Loura
Direção: Carlos Reichenbach
Brasil, 2007.
Por Filipe Chamy
Falsa loura é um filme sobre ilusões. Em muitos sentidos. Na superfície, um elenco que muitos espectadores preconceituosos apontarão como intérpretes de novelas, necessariamente vinculando o filme a um subproduto televisivo; coisa que não poderia ser mais absurda quando falamos de um filme de Reichenbach, um dos mais autorais (e anti-televisivos!) diretores do cinema brasileiro das últimas décadas.
Ainda na superfície: um filme pobre, de história reles, música brega. A música não é brega; trata-se de um artifício cinematográfico de tornar extradiegético aquilo que é, em princípio, apenas diegético; as escapistas canções que a deslumbrante Rosanne Mulholland (Silmara) escuta passam também a compor a trilha. Mas não é nisso que reside a eficácia desse recurso, mas em mesclá-lo com a erudição de Nelson Ayres ou com outros tipos de melodia quando a ocasião assim se faz propícia. Seria absurdo esperar que uma operária de classe média baixa ouvisse em seus momentos de lazer Camille Saint-Säens. É possível, mas extremamente pouco provável. Um filme não necessita de “lógica” (não no sentido lamentavelmente formal com que ela é procurada em arte), mas se esse é justamente um aspecto da coerência interna do filme, qual exatamente é o problema na utilização da música? Voltamos à velha questão do preconceito, que parece ser a única resposta. É um impasse: Maurício Mattar e Cauã Reymond são bregas, mas se Shostakovich fosse o instrumental da jovem operária Silmara não seria igualmente levantado um coro de depreciação contra o filme? Qual é a saída? Não filmar a vida humilde? Parece ser a exigência implícita.
Também a acusação de que o filme é simplório não procede; isso é devido à (sábia) persistência de Reichenbach em filmar, sinceramente, o que lhe preocupa e inspira. Ele poderia comodamente se vender à idéia de fazer um filme sobre os “temas importantes”, uma convencional fita sobre ditadura, ou judeus, ou drogas. Mas não, ele fala sobre uma moça comum, sua vida cotidiana, seus amores, esperanças e fracassos. Isso não é o bastante? Para muita gente, a complexidade está no “intangível”; não se elogia o pôr-do-sol porque é um fenômeno corriqueiro, banal – a graça está em lasers, explosões, o movimento estilizado que é a tônica do (mau) cinema comercial majoritariamente praticado hoje.
Falsa loura discute todas essas questões, ou pelo menos as expõe sem desonestidade (o que já é em si um mérito), incluindo referências e insights aparentemente desconexos (como a garota de calcinha recitando Platão), recorrentes no cinema de Carlos Reichenbach, ardoroso admirador de citações e homenagens aos seus ídolos das artes e cultura. Falsa loura se propõe a ser o quê? Um filme. E isso, para Reichenbach e para quem gosta de cinema, não é tarefa fácil, mas sim um delicadíssimo trabalho a ser tecido com empenho. Uma obra de arte não é um trabalho sociológico e nem se sujeita a empurrar verdades aos seus espectadores. Mas isso não torna o filme ridículo ou dispensável; é necessário, sobretudo aos cineastas brasileiros atuais, entender que o cinema não deve se prestar apenas a ser registro de um acontecimento ou de um fato social qualquer. Olhando no passado, os filmes que marcaram e ainda marcam, é necessário também entender de beleza, de extrair beleza das coisas que ficam, da música, da nudez da atriz, do plano felliniano. Falsa loura é um filme sobre cinema, como o são todos os bons filmes.
Daí dizer que o filme é sobre aparências, pois retrata muito sagazmente esses estereótipos do engano e da transitoriedade, as falsas percepções e certezas. Aliás: Falsa loura é uma pequena saga dramática sobre a desilusão e os falsos paliativos da vida contemporânea.