Dossiê Carlos Reichenbach

Dois Córregos – Verdades Submersas no Tempo
Direção: Carlos Reichenbach
Brasil, 1999.
Por Gabriel Carneiro
(desabafo) É difícil saber como começar um texto sobre Dois Córregos, porque o filme de Reichenbach tem um impacto muito grande em mim. Foi o filme que me despertou para o cinema brasileiro, que me encantou desde a primeira vez que o vi, e que melhora a cada revisão. Talvez não exista película que cause tanta comoção em mim quanto esse longa-metragem de Carlão.
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O que guia Dois Córregos é a música. Assim como a composição de Ivan Lins abre o longa, são as músicas tocadas no piano por Luciana Brasil que dão a tônica do filme. Assim como as peças, a película possui uma fluência narrativa – como se Reichenbach, ao filmar, estivesse embalado pela beleza dos temas sonoros. A câmera passeia, descobre lugares. Nunca Reichenbach havia usado tão bem os travellings em sua construção dramática. A abertura de Dois Córregos é mais uma vez sintomática (e belíssima): enquanto a lente vislumbra os rios e seu encontro, ouve-se a música instrumental e cantada em balbucios. O espectador é acompanhado àquele lugar chamado Dois Córregos. O passeio inicial é a forma que o cineasta encontrou para adentrarmos esse mundo, o da memória de Ana Paula – que muito se confunde com a do cineasta.
Ana Paula volta à cidade do interior de São Paulo depois de muitos anos. Com a morte dos pais, foi retomar a propriedade, então na posse de grileiros. A viagem é a chance que a personagem encontrou para reviver aqueles quatro dias que passou lá no fim dos anos 60. Foi, ao lado de sua amiga, filha de general, visitar o tio clandestino e exilado, Hermes, perseguido pelo Regime Militar.
O uso de Dois Córregos é a forma que Reichenbach encontrou para materializar sua paixão pela cidade e incorporar sua adolescência na história. Não poderia ter sido mais acertado. Configura-se assim um filme de memória. A memória nostálgica de Ana Paula, que após muitos anos, só quer entender o que ocorreu, quer compreender a intensidade do encontro com Hermes, e a memória reflexiva do tio, que quer entender sua situação.
A memória para Reichenbach é uma angústia – não algo necessariamente ruim, mas é através da angústia que relê o passado, que relê a história. Hermes mostra-se um personagem fantástico. Contra o regime, furta-se às matas e à guerrilha para acompanhar um amigo querido, largando a família. Hermes, enquanto lutou pelo destino do país, passou a viver em seu próprio calvário: não lembra mais do rosto dos filhos – borrões, imagens perdidas em uma fotografia. É um personagem libertário, que condena a mesquinhez e o egoísmo, mas que se tornou amargurado. Sua presença é ritualística. Representa a passagem para a vida adulta de Ana Paula e de Lydia, assim como a feminilidade de Teresa.
No fluxo do córrego, Ana Paula, já mais velha, conversa com Hermes. O passado novamente não tem rosto. Não vemos Hermes de frente, quase como se o passado não largasse, mas se mantivesse fugidio na memória, a serviço de motivar seu futuro. A não-lembrança completa dos filhos é simbólica nesse aspecto, assim como só após muito tempo Ana Paula conseguirá confrontar Hermes. Era algo que precisava exorcizar, retomar, entender seu passado.
A personagem, ingênua quando jovem, com leve paixão platônica por aquele homem misterioso, foi se tornando mulher. Sua compreensão mudou, mas dúvidas permaneceram. Hermes também quer compreender. Por isso Dois Córregos parece tão acertado. No caos urbano, ninguém consegue pensar – trabalho e mais trabalho, problemas de diversas ordens. Dois Córregos é o paraíso proibido de Carlão não à toa. Quase como se apenas lá, encantados pela beleza do encontro dos rios, pelo céu azul, lugar calmo e resplandecente, aquilo pudesse vir à tona. Refletir sobre esse passado só poderia acontecer em ambiente próprio.
Nisso, parece que Dois Córregos inverte o papel da música, como se a imagem passasse a dar tônica à música, como se daquele lugar brotasse tão belas melodias. Visto com certo Romantismo, é essa maneira de olhar o mundo que cria a mais bela seqüência do filme: perdidos entre angústias e lembranças, Teresa e Hermes se entregam. Num travelling circular, como só Carlão sabe fazer – e dele, surge a música-tema -, olhamos com graça para a paixão dos dois, até, hipnoticamente, entrarmos no filme. Aí, não temos mais como voltar à superfície.