Dossiê Carlos Reichenbach

Por Gabriel Carneiro
Nos anos 90, o cineasta Carlos Reichenbach realizou dois longas-metragens, Alma Corsária (1993) e Dois Córregos – Verdades Submersas no Tempo (1999). Foi um período de reconstrução do cinema brasileiro, que enfrentava uma enorme crise financeira: não havia mais quem produzisse nos primeiros anos da década. A Embrafilme deixou de existir com o Collor e os produtores da Boca, principais patrocinadores dos filmes de Reichenbach, haviam se voltado para os filmes de sexo explícito. Não parece à toa então, que na década em que chegava à meia idade – Carlão nasceu em 1944 – e com um cinema natimorto no país, um dos principais diretores paulistas se voltasse ao cinema de memória.
Alma Corsária foi feito, como diz o título, de maneira corsária, independente, e como parâmetro de reflexão para a vida mundana de seu passado. A reflexão é sobre a sua própria vida, tanto que há várias participações afetivas, como amigos pessoais do diretor. Ao seu início, ele nos conta que as personagens e situações vividas no filmes foram baseadas em diversas pessoas que passaram por sua vida. Enquanto Torres e Xavier lançam o livro Sentimento Ocidental na Pastelaria Espiritual, a memória toma lugar, especialmente para Torres. Nascido na pobreza, não completou seus estudos, mas teve contato com a riqueza (seu amigo Xavier), e tornou-se escritor e jornalista.
Dois Córregos – Verdades Submersas no Tempo é a memória nostálgica. Também baseado em casos verídicos presenciados por Reichenbach, o filme se inicia com Ana Paula indo retomar o terreno da família de um grileiro, na cidade do interior paulista que dá título ao longa. Ela não visitava a casa desde o final dos anos 60, quando passou quatro dias.
Tanto Alma Corsária quanto Dois Córregos voltam-se para a memória de um passado que ainda está presente na vida atual de seus personagens.
Em Alma Corsária, por exemplo, Torres rememora sua vida desde os anos 50, quando tinha 14 anos. Porém, é só a partir dos 60 que os flash-backs adquirem cor. O p&b tem uma conotação de passado, do que ficou para trás, diferentemente da cor, viva e fulgaz, mas ainda retumbante. Entre os anos de 1966 e 1969, há a ascensão e queda da representação do regime militar em sua vida. Em 1966, vive num albergue comunista, em que os habitantes pregam o liberalismo sexual e político, clamando pelo fim do autoritarismo militar, através de leituras incessantes de teóricos da esquerda e na esperança de servir o país nas lutas armadas. Torres é também contra o autoritarismo militar, mas não é devoto dos métodos. Não lê e não se engaja em debates inflamados sobre política, não se importa com o comunismo cubano e chinês. Cansado da vida clandestina, num momento simbólico, Torres larga tudo – e largar tudo, é tirar do corpo as diversas camisetas marketeiras de esquerda que seus colegas vestem (Che, Malcolm X…), e lhe resta uma apenas, com o símbolo do anarquismo.
Em 1968/69, é novamente afrontado pelo regime militar. Está morando na casa de um colega jornalista, com um enorme acervo de discos e livros. Primeiro, vemo-lo sendo “achacado pelos homens”: alguns militares o têm como subversivo na rua, e além de revistá-lo, insultam-no, chamando de “gay” e de “operário”. Nesse momento, algumas pérolas: “ainda bem que largou os estudos, porque todo estudante é comunista” e “eu vou te prender porque você é viado, e fica por aqui procurando homem”. Depois ele se vê obrigado a abrigar um antigo colega de albergue, que está fugindo dos militares e à espera de sua nova missão. Segundo esse colega, seria sua forma de contribuir com a causa. Nisso, ele leva uma mulher, nas mesmas condições, por quem ele se apaixona.
Por último, ele se confronta com Xavier. Nesse conflito, vemos o desenrolar da relação do protagonista com o regime militar. Cansado de tudo, após abandonar a vida de fora da lei, ele entra de cabeça na erudição em sua nova vida na casa do amigo jornalista. Xavier, inconformado, chama-o para participar da luta, para acabar com o autoritarismo – indigna-se: “como você pode ficar enfurnado nesses livros quando as coisas estão acontecendo lá fora?” Isso serve apenas para Torres expor a memória do regime militar no cinema brasileiro dos anos 90: para ele, Xavier é um burguesinho com sentimento de culpa pelas desgraças que sua classe social alavancou ao poder; ir ao combate seria a redenção. Como Torres não tem esse complexo de classe – porque, invariavelmente, a memória mostra que os opositores o regime militar são sempre de esquerda, em seus mais diversos graus -, para ele tanto faz a luta social, tudo que quer é levar sua vida árdua e complicada.
Em Dois Córregos, há duas memórias do regime militar. A memória de Ana Paula, que vê o regime militar de forma romantizada, pois o seu contato com o governo foi os quatro dias na cidade – para ela, uma época marcante, em que se deparou com a realidade angustiante de um homem, e por ele “se apaixonou”. E a memória de Hermes, tio de Ana Paula, que está escondido no sítio de Dois Córregos, nos anos 60, tentando legalizar a volta ao Brasil.
Para Ana Paula, o regime militar representava o passado que a transformou, pois entrou em contato com seu tio Hermes, um subversivo, que estava escondido, e a quem via com orgulho e admiração. Para Hermes, o passado recente foi necessário, porém suas conseqüências são dolorosas. Em algum momento do filme, ele diz que “o exílio é o pior castigo que se pode submeter um homem”. O exílio, no seu caso, é da sua família e principalmente de seus filhos, cujos rostos ele não se lembra.
O olhar de Reichenbach, em Dois Córregos, é um tanto clínico: ele assume as duas memórias como verdadeiras e aceitáveis. O romantismo do passado, a nostalgia, porém não ligada aos movimentos esquerdistas ou à luta armada – nesse casso, a memória de Hermes é sóbria, pois ele é um pacifista que se juntou por um ideal (e uma mulher), mas contrário os métodos utilizados; Hermes crê num mundo brando e justo, mas sem ideologias políticas. O romantismo de Ana Paula é pela adolescência, da descoberta do novo, do diferente, do saudoso. A sensação de “bons tempos são aqueles que se foram”, do final do filme, que desconstrói as imagens dos personagens daquela memória, só serve para reforçar o nostálgico – mas nunca no âmbito político. Talvez a frase proferida por Hermes dê o tom da película: “os momentos mais marcantes são os efêmeros”.
O diretor viveu sob o regime e sempre teve convicções anarquistas. Por isso, todo militar é um estereótipo. Para ele, todos os militares eram iguais, pessoas sem identidade. Sejam os militares que abordam Torres, em Alma Corsária, sejam os militares que pedem a identidade de todos que desembarcam na estação de trem, e, principalmente, personificados no namorado de Tereza, em Dois Córregos. Uma pessoa machista, sem índole ou apresso pela família, conhecido no quartel como “arranca lágrimas”.
Quanto aos opositores, há um maior aprofundamento, mesmo que ele não descarte o estereótipo nos casos mais extremos, de pessoas que creiam que mudariam o mundo – e dessa forma distanciavam-se da realidade, para viver o sonho da revolução. Em Alma Corsária, um dos alberguistas grita: “eu vou embora, vou lutar, vou fazer história”. De qualquer forma, Reichenbach se aprofunda em personagens que passaram por isso (Torres e Hermes) e de alguma forma assumem o período como uma fase. Tudo parte da própria crença de Reichenbach num anarquismo pacífico.
Os finais de Alma Corsária e de Dois Córregos afirmam a identidade dos anos 60 no Brasil militar: a morte releva o passado e constrói o mito. Hermes foi dado como mártir e virou mártir, mesmo nunca tendo matado ninguém ou ter realmente se engajado. Torres é levado pela morte personificada e torna-se emblemático em seu universo. Para Reichenbach, o sonho dos anos 60, da resistência militar, era utopia pura e era para isso que lutaram – mas nem por isso é uma época para mitificações (os mortos simbolizam a utopia) ou romantismos.