Uma boa surpresa desse começo de ano é o lançamento em DVD, no Brasil, de uma coleção que contempla nove dos filmes ingleses de Alfred Hitchcock. É uma oportunidade de conferir e entrar em contato com uma fase praticamente invisível de um dos mais populares cineastas de todos os tempos. Por que todo cinéfilo que se preze conhece a maioria dos seus grandes clássicos da fase americana, mas são poucos os que realmente se aventuram pelo período menos nobre de sua carreira. A fase inglesa de Hitchcock, no geral, costuma ser bastante negligenciada (os mais conhecidos dessa fase são os filmes que vão do primeiro O Homem Que Sabia Demais até A Dama Oculta, já na segunda metade da década de trinta), mas essa coleção lançada pela Universal concentra-se num ciclo ainda mais obscuro, com as suas quatro últimas obras mudas e os primeiros filmes falados que dirigiu, abrangendo um período de transição que vai de 1927 até 1932.
São no total nove filmes em quatro DVDs, alguns com títulos nacionais diferentes do que comumente eram chamados por aqui. É uma coleção mais apropriada aos curiosos e os admiradores mais fanáticos pela obra de Hitchcock. O mais antigo da coleção é O Aviso (The Ring), que o próprio Hitchcock considerava o seu segundo filme mais pessoal entre os sete que dirigira até aquele momento (o primeiro seria The Lodger, do ano anterior, em que introduziu os elementos de suspense em sua obra). Ainda assim, não se trata de um filme de suspense, de uma intriga envolvendo um crime qualquer, mas de uma tensão em volta do triângulo amoroso com dois boxeadores apaixonados pela mesma mulher. O suspense advém das lutas no ringue e com o qual dos boxeadores ficará a heroína do filme, transformando-se também em uma história de traição. É um dos mais enxutos e rápidos filmes de Hitchcock nessa época, com achados visuais e simbólicos, mais inovações na montagem. Por outro lado, o filme que acompanha The Lodger é um dos mais fracos de toda carreira do cineasta inglês, Champagne, sobre a filha de um milionário que após uma aventura amorosa briga com pai e embarca para a França, onde é contratada por um cabaré para convidar os clientes a beber champanhe. É praticamente impossível encontrar traços hitchcockianos nessa obra renegada, com apenas duas ou três cenas mais inspiradas, e que o diretor conta ter criado o argumento à partir de uma velha comédia de Griffith.
Entre os dois títulos citados mais acima, Hitchcock realizou uma outra produção a qual também nunca viu com bons olhos, A Mulher do Fazendeiro (The Farmer’s Wife), tirado de uma peça de muito sucesso na época sobre um fazendeiro viúvo que quer se casar fixando-se em três pretendentes que o rejeitam sistematicamente, sem perceber que a mulher ideal é a sua própria empregada, que o ama em segrego. É mais uma comédia sem nada do estilo com o qual se consagraria posteriormente, com algumas boas gags, e no qual o desafio maior do diretor foi o de superar os elementos teatrais do material. Bem superior é o último de seus filmes mudos, Pobre Pete (The Manxman), um melodrama de ressonâncias ainda mais trágicas do que The Ring (mas sem a mesma agilidade e apuro técnico). Um pescador pobre sai pelo mundo para fazer fortuna e se casar com a mulher que ama, mas ao retornar para sua aldeia a encontra casada com o melhor amigo. Hitchcock não possuía apreço pelo filme por ele não ter humor, e talvez por alguns desentendimentos de produção, mas sem dúvida trata-se de um dos seus mais bem-acabados filmes mudos.
Se a maioria dos seus primeiros filmes eram resultados de imposições comerciais que não o agradavam totalmente, ao menos serviram para tornar Hitchcock um dos mais celebres diretores da Inglaterra naquela época, possibilitando-o dirigir o primeiro filme sonoro inglês, Chantagem e Confissão (Blackmail), também o primeiro grande filme de sua carreira, em que ele parece ter mais liberdade de criação, desde a escolha do argumento, ainda que não podendo filmá-lo rigorosamente como desejava (Hitch pretendia concluir o filme com um final mais pessimista). Mas é uma história de detetives, prisões, intrigas policiais, perseguições, estupros, assassinatos, paixões, chantagens e confissão. Era um novo começo dentro da obra de Hitchcock, aprimorando a técnica que já vinha ensaiando nos filmes anteriores. Ainda assim, logo em seguida Hitchcock precisou se submeter à produções que lhe foram impostas, como o primeiro filme musical inglês (que co-dirigiu com outros cineastas) e um outro mais uma vez tirado de um êxito teatral, para depois realizar outro de seus mais interessantes filmes do período, Assassinato! (Muder!), também uma adaptação teatral, mas dessa vez com material de acordo com o seu gosto para o suspense. Uma trama de assassinato e julgamento, de crime e mistério, com fortes e ousadas referências ao homossexualismo para a época. Se o leitor pensa em adquirir apenas um dos DVDs dessa recém lançada coleção, o mais indicado é o que traz Assassinato e Chantagem e Confissão.
O último DVD agrupa não dois, mas três filmes do começo da década de trinta. O mais fraco, certamente, é Skin Game (extraído de um sucesso teatral inglês, para variar), que o cineasta renega, mas que é compensando pelo seu filme seguinte, o belo Ricos e Estranhos, sobre a viagem existencial de um casal que aparentemente não se amam mais e que decidem dar a volta ao mundo, passando por experiências que passam pelo mundo dos sonhos, dos símbolos e da psicanálise, culminando em um naufrágio que dará um sentido novo aos personagens. Há planos impressionantes, como o de um gato esfolado e crucificado que contempla o céu com seus olhos ainda vivos. Tematicamente é um dos mais ambiciosos filmes de Hitchcock até então, antecipando muito do que faria em várias de suas obras mais maduras, já na América. Entretanto, foi um fracasso, o que levou o cineasta a aceitar Mistério do Número 17 (Number Seventeen), uma história policial um pouco confusa, mas que não lhe interessava, e a qual não conseguiu salvar inteiramente, ainda que seja um filme curto e divertido. Hitchcock passa por uma crise de consciência com o seu cinema após esse duplo fracasso comercial, descontente com o rumo que sua carreira vinha tomando, permeada de diversos filmes que não lhe satisfaziam plenamente. Pensou em se dedicar mais à função de produtor, mas ainda foi obrigado a dirigir um musical barato, até que sua filmografia tomasse um rumo mais de acordo com o que conhecemos do mestre de suspense quando ganha carta branca para realizar apenas filmes do seu interesse e universo particular a partir da primeira versão de O Homem Que Sabia Demais, de 1934.
Pode uma atriz fazer um único filme na Boca do Lixo e se tornar uma de suas mais amadas musas? Pode! Isso se seu nome for Adele Fátima.
Adele Fátima nasceu no Rio de Janeiro, no dia 17 de fevereiro de 1954. E foi em solo carioca que desenvolveu sua carreira. O começo foi no início dos anos 1970, época em que foi modelo e garota-propaganda. Sua beleza estonteante e seu ziriguidum faceiro chamaram logo a atenção de Oswaldo Sargentelli, que a convidou para integrar seu grupo de mulatas.
Os palcos e a televisão receberam com gosto a bela mulata – no teatro, atuou com o genial Grande Otelo. Já, na TV, foi jurada de programas de auditório, dançarina, cantora, apresentadora e atriz, marcando presença em vários programas da Globo – Faça Humor Não Faça Guerra, Fantástico, Chico Anísio Show, Viva o Gordo, Brasil Pandeiro, Sandra & Miéle. Adele Fátima ainda atuou em produções importantes, como na minissérie Agosto, exibida em 1993 pela Rede Globo, e adaptada da obra de Rubem Fonseca por Jorge Furtado e Giba Assis Brasil.
Mas foi lá na década de 70, que o talento, a beleza e a sensualidade de Adele Fátima sacudiram o cinema. A estreia foi com Carlo Mossy em Com as Calças na Mão, em 1975, filme dirigido e protagonizado por ele. A partir daí, torna-se uma de suas musas e atua em outras produções em que ele está envolvido: As Granfinas e o Camelô (1976), dirigido por Ismar Porto e produzido e protagonizado por Carlo Mossy; As Massagistas Profissionais (1976), dirigido por Mossy; Manicures a Domicílio (1977), dirigido por Mossy.
No Rio de Janeiro, outros cineastas que dirigem Adele Fátima são Reginaldo Faria – O Flagrante (1975) -, Jece Valadão – Os Amantes da Pantera (1977) -, Luis Antonio Piá – O Homem de Seis Milhões de Cruzeiros Contra as Panteras (1975-78) -, David Neves – Fulaninha (1986) -, Paulo Cézar Saraceni – Natal da Portela (1988) e O Viajante (1999) -, além da co-produção Rio de Janeiro-Brasil e Paris-França No Rio, Vale Tudo (1987), dirigido por Philippe Clair.
A carreira é praticamente todo no Rio de Janeiro, mas foi em São Paulo que Adele Fátima protagonizou seu grande sucesso e que ficou para sempre no imaginário popular. Estamos falando da apimentada versão para Branca de Neve, dos Irmãos Grimm, em Histórias que Nossas Babás Não Contavam, em 1979. O filme reúne três grandes nomes da Boca: Oswaldo de Oliveira, na direção; Aníbal Massaini Neto, na produção e no roteiro; e Ody Fraga, nos diálogos.
Em Histórias que nossas Babás não Contavam, Branca de Neve vira mulata na pele desejada de Adele Fátima. E toda a corte enlouquece de tesão: os nobres da corte, o príncipe de Denis Derkian, o caçador de veados de Costinha e os sete anões safados. Como na fábula, mata de ódio e de inveja a rainha má e madastra, na pele lasciva de Meire Vieira – em um de seus melhores papéis no cinema, além de estar lindíssima. O longa é exemplo da criatividade da Boca do Lixo, pois tudo funciona bem no filme. Desde a musiquinha sacana até as presenças impagáveis de Costinha – a cena de Adele pelada na cachoeira e ele com suas caras e bocas é engraçadíssima, a de Renato Pedrosa como o espelho que inferniza a rainha, e a dos sete anões tarados, com direito a uma versão gay do Zangado e um Dunga quase vítima de pedofilia (destaque para a cena em que ela transa com todos os anões, menos Zangado, é claro).
Histórias que nossas Babás não Contavam é um grande momento da Boca do Lixo, e Adele Fátima está ótima de ponta a ponta, além da beleza para ninguém botar defeito.
Se você já desconfiava das historias que a babá contava tinha toda razão ela lhe contou uma outra versão
o lado que você conhecia era só a fantasia história de príncipe e princesa sempre acaba em safadeza
como João e Maria que faziam bacanal e chapéuzinho vermelho que dava muito pro lobo mau
e ainda existem outras versões que queremos contar pra vocês mas isso é uma outra história que fica para uma outra vez
que fica para uma outra vez que fica para uma outra vez Canção – Alaor Coutinho e Oscar Nusbaum
Filmografia
Com as Calças na Mão (1975), de Carlo Mossy; As Granfinas e o Camelô (1976), de Ismar Porto; O Flagrante (1976), de Reginaldo Faria; As Massagistas Profissionais (1976), de Carlo Mossy; Os Amores da Pantera (1977), de Jece Valadão; O Homem de Seis Milhões de Cruzeiros contra as Panteras (1978), de Luiz Antonio Piá; Manicures à Domicílio (1978), de Carlo Mossy; Histórias que Nossas Babás não Contavam (1979), de Oswaldo de Oliveira; Fulaninha (1986), de David Neves; No Rio, Vale Tudo (1987), de Philippe Clair; Natal da Portela (1988), de Paulo César Saraceni; O Viajante (1999), de Paulo César Saraceni
Fontes: Livro: Dicionário de Filmes Brasileiros – Longa Metragem, de Antonio Leão da Silva Neto Sites:Mulheres do Cinema Brasileiro e IMDb
Por Daniel Salomão Roque, especialmente para a Zingu!*
O Vigilante Rodoviário
Direção: Ary Fernandes
Brasil, 1961.
Dentre as muitas possibilidades oferecidas pela expansão do mercado de vídeo digital, a revisão crítica de séries está entre as mais prazerosas. A condensação de temporadas completas e de meses de programação televisiva num punhadinho de discos sacia os desejos dos colecionadores mais fetichistas e, ao mesmo tempo, permite o surgimento de uma nova perspectiva ante essas obras. É por esses e outros motivos que o lançamento, via Spectra Nova, do box O Vigilante Rodoviário, contendo a quase totalidade do legendário seriado brasileiro, pode ser considerado, sem exagero, um marco. À parte os fatores já mencionados, trata-se de um material que atravessou décadas no limbo, privado de qualquer contato com o público, estando a um passo de se perder para sempre – o que de fato aconteceu com os três únicos episódios ausentes da caixa, composta por quatro discos e vendida ao atraente preço médio de 50 reais. Restaurada com as devidas pompas, a série (inserida em 2009 na grade horária do Canal Brasil) constitui um dos mais bem-sucedidos exemplares do cinema de gênero feitos no país e, vista hoje, torna-se um irresistível portal rumo à memória afetiva de nossos pais e ao início da carreira de muita gente: Stênio Garcia, Ary Toledo, Milton Gonçalves e Rosa Maria Murtinho são alguns dos nomes que deram seus primeiros passos no programa, fotografado pelo então iniciante Oswaldo de Oliveira (que mais tarde dirigiria Histórias Que Nossas Babás Não Contavam e o cult A Prisão).
Os bastidores de O Vigilante Rodoviário são mais conhecidos que a série propriamente dita, o que talvez se explique pelas conjunturas em que foi gravada: inspirada nas matinês norte-americanas e pegando carona na ascensão da televisão brasileira, a criação de Ary Fernandes tornou-se o primeiro seriado rodado em película na América Latina. O episódio-piloto, O Diamante Grão-Mongol, data de 1959 e foi produzido em condições precárias, com membros da equipe técnica preenchendo todo o elenco e orçamento reduzidíssimo bancado pelo próprio diretor. Foram dois longos anos até que surgisse um patrocinador – no caso, a Nestlé – que permitisse ao projeto deslanchar, mas já na origem podemos perceber algumas de suas características básicas.
A curta duração das histórias e a dinâmica das mesmas se relacionam de forma curiosa com a linguagem intrínseca dos quadrinhos – não à toa, a série chegou a ser adaptada para os gibis, desenhados por ninguém menos que Flávio Colin. Isso não seria de se espantar, considerando-se que a imensa maioria dos seriados americanos das décadas de 30-40 se baseavam em personagens de HQs; entretanto, o caso de Vigilante Rodoviário chama a atenção pela maneira como se apropria de um gênero estrangeiro por excelência, com todos os clichês inclusos, para mesclá-lo a uma realidade tipicamente brasileira. Protagonizado pelo vigilante Carlos (herói boa-pinta e, como não poderia deixar de ser, uniformizado) e seu cachorro Lobo (um carismático pastor alemão, espécie de Rin Tin Tin nativo), o programa percorre uma ampla gama de situações que abrangem desde operações estereotipadas do crime organizado até dramas pessoais que esbarram na sociologia.
Essa diversidade temática traz junto a si uma condução narrativa, no mínimo, versátil. A série é heterogênea e um pouco irregular, mas nos reserva umas tantas surpresas agradáveis. O maior obstáculo, no caso, parece ser mesmo a pequena duração dos episódios. Se por vezes o que temos são tentativas frustradas de espremer, em vinte minutos, enredos de longas-metragens, em outros casos nos deparamos com verdadeiras gemas, onde a ação se encaixa com precisão numa estrutura cuidadosamente planejada para dar suporte à dramaturgia rápida. É o caso, por exemplo, de A Pedreira, sobre uma criança encurralada numa área prestes a ser implodida, permeado por um tom documental que lhe confere uma tensão absurda; e, sobretudo, de O Rapto de Juca, talvez o melhor de todos, movido por um ritmo frenético e estrelado pelo grande Juca Chaves. Essas fagulhas de brilhantismo, aliadas a um estilo cinematográfico há muito extinto e a um constante enfoque nos modismos e concepções da época, transformam O Vigilante Rodoviário num tesouro histórico, cujo sabor o tempo acentua cada vez mais.
*Daniel Salomão Roque é fanático por quadrinhos e cinema. Colaborou fixamente com a Zingu! por 15 edições, das quais 12 com a coluna Tesouro dos Quadrinhos.
olhos de jabuticaba, algum cassino atlântico crupiês anunciam os números da sorte um cine simone sílabas projetadas na tela luz que vaza nos espelhos dos salões reflexos do corpo ouro fosco no relicário desbotado do tempo
Um dos sorrisos mais bonitos do mundo pertence a Sandrine Bonnaire, atriz francesa por vocação e destino, uma das presenças mais fascinantes do cinema nos últimos anos. Sandrine nasceu em fins de maio de 1967 e desde sua primeira aparição no cinema, como protagonista já em 1983, abraçou cada filme como uma mãe abraça seu filho pequeno. Este texto é uma pequena carta de admiração a uma atriz admirável, traçando breves considerações sobre seus trabalhos mais importantes, década a década.
Anos 80
Sandrine iniciou sua carreira de atriz sob um auspício favorabilíssimo: a obra-prima Aos nossos amores, de Maurice Pialat. Pialat não apenas foi o introdutor de Sandrine Bonnaire no cinema — antes, ela havia feito, quando muito, pontas (não creditadas e nem confirmadas) em poucos filmes —, mas como a ajudou a se firmar como intérprete, protegendo-a não só por trás como na frente das câmeras: ele fazia no filme o papel de seu pai. Sandrine saiu-se admiravelmente bem como Suzanne, jovem mulher que entra com dificuldade na vida adulta, hesitando entre o amor e o sexo, transitando entre dúvidas naturais para a idade e sua conturbada relação com a instável e agressiva família. Uma personagem difícil, que Sandrine desenvolve com espontaneidade ímpar, criando uma das maiores representações da adolescência no cinema. O magnífico desempenho da jovem francesa a coloca em evidência em revistas, jornais, críticas, projetos de novos filmes.
Ocorre que o cinema não costuma entender ou aceitar atores jovens, portanto Sandrine acaba fazendo alguns filmes que não a valorizam: Tir à vue e Le meilleur de la vie são exemplos de produções que apostam apenas no superficial — a nudez do belo corpo juvenil de Sandrine Bonnaire —, o que talvez explique o pudor de Sandrine nos anos seguintes, em que quase não se expõe fisicamente, sob nenhum pretexto. A menina — ela tem por volta de dezesseis anos nessa época — parece então despontar de vez e recebe convites irrecusáveis, de grandes diretores. Assim, em poucos anos trabalha com Agnès Varda — para quem faz a inesquecível composição da protagonista de Os rejeitados, moça pária em uma descompassada sociedade contemporânea —, com Jacques Doillon (em A puritana, ao lado de Sabine Azéma e Michel Piccoli), com André Téchiné (em Os inocentes, junto a Jean-Claude Brialy, figura tarimbada nos filmes nouvellevaguistas), com Claude Sautet (em Quelques jours avec moi, formando um charmoso casal com Daniel Auteuil e dividindo a cena também com Danielle Darrieux e Jean-Pierre Marielle), e novamente com seu padrinho Maurice Pialat, em dois filmes junto a Gérard Depardieu: em Polícia, ela tem presença curta e marcante, mas em Sob o sol de Satã o espetáculo é quase todo dela – sua Mouchette é um grande momento dramático e certamente sua desenvoltura segura e honesta foi um dos trunfos que fez esse polêmico filme questionador da fé realizado por Pialat sagrar-se vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes.
Em 1989, ela faz dois filmes: o pouco comentado Peaux de vaches, no qual se relaciona, com certa desconfiança inicial, com Jean-François Stévenin — ator e ajudante de François Truffaut —, um filme cheio de barulhos de máquinas e pequenos sentimentos acobertados por uma espécie de desconforto social; e Monsieur Hire, uma obra-prima de Patrice Leconte baseada em um romance do brilhante Georges Simenon. Em Monsieur Hire, Sandrine co-protagoniza, ao lado de Michel Blanc (excelente no papel-título), uma trama mais sentimental que policial, em que o maior crime (e perigo) é se apaixonar. Sua Alice é tão erótica e dúbia quanto a da obra literária, mas a doçura de Sandrine é tanta que faz o espectador sempre ficar de seu lado e perdoar seus erros, aceitar suas mentiras. É o filme em que Sandrine está mais linda em toda a sua filmografia: além de a fotografia destacar cada um de seus trajes, femininos e sugestivos, Sandrine está com os cabelos louros (a personagem literária é ruiva), a aparência jovem, alegre e entusiasmada, o corpo esculpido de maneira sublime. A cena em que aparece apenas de calcinha e sutiã se trocando defronte à janela onde Michel Blanc a espia e escuta Bhrams é a mais perfeita do filme e provavelmente a melhor já filmada por Leconte em sua carreira. O filme acabou servindo como um tributo tardio a Simenon, morto naquele mesmo ano.
Anos 90
Década prolífica para Sandrine Bonnaire, iniciada com La captive du désert. Trata-se da história (real) de uma francesa que ficou refém de uma tribo africana por meses e meses. O filme não introduz nada, não há diálogos muito aprofundados, os silêncios, olhares e as extensas repetições dão conta do marasmo a ser retratado e alcançado. Dirigido pelo famoso fotógrafo Raymond Depardon, se assemelha a um documentário da National Geographic, filmado à distância com uma câmera de longo alcance. A sensação de “verdade” da obra é enorme, inacreditável; se o espectador não conhecer Sandrine Bonnaire, se for o primeiro filme que vir com ela, provavelmente terá plena certeza que vê um documentário. Mesmo porque o restante de elenco é tribal de fato, e o filme é consideravelmente voyeurístico, bem pouco aproximado, iniciando-se já com a situação montada — sem sequer mostrar o que houve para a mulher ser capturada.
Em seguida, Sandrine tem encontros muito importantes: o primeiro é com Marcello Mastroianni, em Verso sera, produção italiana de sentimentalismo aflorado pela presença do inesperado casal formado pelo velho Marcello e pela jovem e bela Sandrine. O segundo é com William Hurt, com quem viria inclusive a ter uma filha, de nome Jeanne; o casal esteve junto em A pesteConfidências a um estranho, drama de época em que o fantasma incômodo da aristocracia reina sobre personagens embrutecidos pelas circunstâncias. O terceiro encontro é com Jacques Rivette, com quem faz três belíssimos filmes: Jeanne la Pucelle é uma obra bipartida sobre a santa heroína Joana d’Arc, sendo a primeira parte sobre as batalhas que liderou (Les batailles) e a segunda, sobre sua prisão como herética (Les prisons) — a expressão de Sandrine é mesmo a de uma figura etérea, imaterial, que tem uma missão a cumprir, e é indizível o grau de perfeição de sua representação na cena da condenação, com a luz mudando, o olhar de hesitação, o texto agressivo, a abjuração, o sorriso quando ri das acusações… —; Defesa secreta é um filme de encenação majestosa e atuações sutis, dramas íntimos e poderosos, num trabalho meticuloso mas apaixonado, como de costume nas fitas do diretor, e Sandrine mais uma vez tem um desempenho ímpar, numa personagem que vai praticamente se metamorfoseando moralmente ao longo da obra. O quarto encontro importante é com Claude Chabrol, que dirige Sandrine em dois momentos muitos especiais: Mulheres diabólicas é a celebração das “mulheres perversas” chabrolianas, em que Sandrine e Isabelle Huppert dividem a cena e as maldades, arrepiando o espectador com sua frieza e psicopatia; A cor da mentira é um belo estudo a Fritz Lang sobre o que um boato, verdadeiro ou não — o marido de Sandrine é acusado de ter assassinado uma garotinha —, faz à vida e à reputação de uma pessoa fraca, que tem de encontrar forças para conviver com a culpa e o remorso de uma atrocidade cometida sabe-se lá por quem.
A década ainda traz a Sandrine um reencontro, com uma de suas figuras “descobridoras”, Agnès Varda: Sandrine faz uma participação afetiva em As cento e uma noites, relembrando personagens anteriores, principalmente a moça desajustada de Os rejeitados — o filme que rendeu o Leão de Ouro a Varda dez anos antes, criação emblemática para Sandrine e uma de suas principais marcas de maturidade como atriz. Esse reencontro tem lugar portanto em 1995, e nele também Sandrine contracena novamente com Michel Piccoli, o que aumenta o ar familiar da carinhosa homenagem prestada por Varda a essa cada vez mais completa jovem atriz francesa.
Entre as outras obras que contaram com a participação de Sandrine nessa década o destaque vai para Leste-Oeste – O amor no exílio, mais uma produção elogiada do irregular Régis Wargnier (o diretor de Indochina). Não chega a ser um trabalho excepcional, pois esbarra na preguiça acadêmica costumeira do cineasta, mas é com esse filme que Sandrine encerra a década de 1990, sua década mais produtiva, na qual se permitiu experimentalismos em outros países e gêneros cinematográficos.
Anos 2000
Mais um período de intenso trabalho para Sandrine Bonnaire — interrompido em 2004 quando teve sua segunda filha, Adèle, com o roteirista Guillaume Laurant (seu marido desde 2003). Os filmes em que atua nessa fase são caracterizados por produções modestas, muitas vezes de cineastas neófitos e com elenco desconhecido. O primeiro deles é Mademoiselle (não confundir com o filme de mesmo nome dirigido em 1966 por Tony Richardson, com Jeanne Moreau), história leve de um romance fugaz. Sandrine não fazia muitas comédias no início de sua carreira, o que vem paulatinamente mudando. Mademoiselle não é um filme de humor, mas um filme de amor, portanto tem uma doçura que escapa a quem não entende esse sentimento. O filme seguinte, C’est la vie, tem um tom mais sombrio, ainda que o filme seja bastante claro e alegre na superfície – trata-se de uma esforçada Sandrine Bonnaire, desapegada e alegre, convivendo com a morte dos outros, numa narrativa delicada e que ainda tem o grande ator e cantor Jacques Dutronc co-protagonizando o filme com a francesa (e cantando com ela!).
Após uma participação no Femme fatale de Brian de Palma, Sandrine volta a trabalhar com outro “descobridor” seu: Patrice Leconte. Em mais um belo trabalho autoral, Confidências muito íntimas, considerável sucesso de público e crítica. No filme de Leconte, os personagens se cruzam por acaso, e, dependentes emocionais, se relacionam à distância, mesmo em pensamentos. Confidências tornou-se um dos mais celebrados (e conhecidos) filmes com Sandrine Bonnaire fora da França, e é co-estrelado pelo ator rohmeriano Fabrice Luchini.
Os filmes seguintes não provocam muita repercussão e nem sequer foram lançados no Brasil: Le cou de la girafe é uma parceria interessante entre Sandrine e Claude Rich, personagens estremecidos por desencontros provocados pela inocência infantil de uma pequena menina, filha de Sandrine; L’équipier traz um amor conturbado entre uma mulher casada e um homem misterioso numa comunidade campesina situada numa região afastada e cujo único diferencial é um obscuro farol; Je crois que je l’aime é outra comédia romântica, açucarada na medida adequada para permitir a Sandrine interpretar sua personagem com desenvoltura e segurança; em Demandez la permission aux enfants, as crianças é que tomam o controle de tudo, criando situações embaraçosas e forçando seus pais a intervirem de maneira curiosa e engraçada; Un coeur simple é uma adaptação do conto homônimo de Gustave Flaubert, com Sandrine fazendo o papel da servil Félicité, tão embrutecida quanto na história original e com uma nobreza tão pouco compreendida quanto; L’empreinte de l’ange mostra a agonia de uma mãe com uma estranha se aproximando da filha (mas talvez os papéis não sejam exatamente esses); Joueuse traz Kevin Kline em seu primeiro papel francófono e contracenando com Sandrine Bonnaire em seu último filme até a data, neste trabalho em que os protagonistas fazem do xadrez e da cultura uma maneira de se conhecerem e respeitarem.
Curiosamente, o trabalho mais importante da década para Sandrine, por razões profissionais e pessoais, não foi um filme em que atuou como atriz, mas um documentário dirigido por ela mesma: Ela se chama Sabine é um delicado retrato de sua irmã (a moça do título), jovem autista que teve sua situação física e mental agravada pela ignorância, negligência e imperícia do atendimento médico a que foi submetida. Por um lado, é uma história alegre, porque mostra o amor de Sandrine por sua irmã, cenas da família reunida e feliz, décadas atrás, mas também é triste, quando mostra a degradação acentuada de Sabine e seu estado beirando a total inconsciência mental em certos momentos. Aos interessados em ver este doloroso filme-tributo, existe na rede virtual, em programas de compartilhamento, uma versão que traz de bônus um programa de televisão em que Sandrine foi convidada a comentar o filme e debater o assunto do autismo com especialistas da área médica, o que faz com veemência e sinceridade. Sandrine, por sinal, tem respeitável histórico ativista no assunto do autismo, chegando inclusive a se reunir oficialmente com Nicolas Sarkozy para discutir o tema.
Sandrine ganhou vários prêmios em sua carreira, sendo os mais importantes o César (duas vezes: como revelação por Aos nossos amores e como atriz por Os rejeitados) e o troféu de melhor atriz em Veneza (por Mulheres diabólicas, honraria dividida com Isabelle Huppert pelo mesmo filme). Também foi indicada e premiada outras inúmeras vezes. Porém o mais importante para ela não é colecionar estátuas ou placas, mas alcançar com suas atuações diferentes níveis de expressividade, de sensibilidade, de comunicação. Sandrine Bonnaire é uma atriz apaixonante porque é uma mulher apaixonante.
Dentro da vasta produção japonesa dedicada ao cinema extremo, um nome sempre é lembrado, e não é apenas o de Takashi Miike. Muito antes do mundo se aterrorizar com os clássicos Audition e Ichi the Killer, já estava em ação um dos autores mais fetichistas e transgressores do cinema asiático: Norifumi Suzuki. Suas obras são uma fusão única e hipnótica de beleza, tortura, sangue e devaneios eróticos de rara composição. Suas obsessões estéticas, a tensão cromática de seus filmes, servem como moldura para a “dança” vertiginosa de suas musas. Em filmes magníficos como O Sexo e a Fúria e Convent of the Sacred Beast, vemos os corpos de suas heroínas receberem doses inacreditáveis de uma representação quase surreal do erotismo e da violência, como grandes guerreiras e sensuais assassinas.
Em 1979, porém, Suzuki realizou um dos filmes mais misóginos de todos os tempos: Beautiful Girl Hunter aka Star of David. Se em suas obras anteriores as mulheres se libertavam através do sexo e da violência, nesse, elas são bonecas de carne e osso, a serviço das perversões do jovem protagonista. Enquanto era um menino, ele apenas observava o pai em seus jogos de humilhação e dominação em que cordas imobilizam belas mulheres e a busca do prazer está na dor, na submissão delas, cujo sofrimento parece um combustível para o mestre dominador em seus jogos implacáveis. A beleza das cenas iniciais, na noite chuvosa, diante da lareira, mostram a grande força de Suzuki como esteta. Após anos de aprendizado ao observar o pai, o menino cresce e busca suas vítimas, como um verdadeiro caçador. A suspensão das vítimas em correntes e o banho de sangue do protagonista após o sacrifício da vítima mostram todo o incômodo mesclado com fascínio mórbido que permeia toda a obra de Suzuki. A tortura com os corpos suspensos remetem ao extremo Imprint, de Takashi Miike. As tensões cromáticas e seus contrastes na composição de cada cena aparecem em momentos de pura transgressão, como na que uma inusitada relação de zoofilia acontece entre uma mulher e um cão, e na máscara de ferro que parece ser uma estilização da máscara demoníaca de A Máscara do Demônio.
Uma espécie de insert sem a glamourização das demais cenas do filme aparece no registro quase documental de um violento estupro que beira a transgressora estética Snuff. A sequência inacreditável da mulher exposta e livre no alto de um prédio é a maior representação da misoginia do filme, inesperada e genial. Existe outro filme misógino ao extremo, também do Japão, intitulado All The Woman are Whores, ou seja, Todas as mulheres são putas, que é um absurdo, mas o filme de Suzuki não fica atrás. Mesmo com essa jornada extrema pelo sombrio olhar misógino de um assassino, poucos cineastas conseguiram filmar as mulheres com o estilo e a autoria de Norifumi Suzuki.
Uma das espécies cada vez mais presentes na cena artística contemporânea são os “desconstrutores” do convencional, aquele tipo de gente que diz ter inventado a roda, descoberto os erros de quem veio antes, alterado as imperfeições que existiam até que alguém com coragem, talento e visão as extirpasse. No cinema essa tendência se manifesta há pelo menos umas quatro décadas, possivelmente “oficializada” na França do final dos anos 1960, após os acontecimentos que marcaram a mudança no pensamento estudantil e cinéfilo da época.
Naturalmente, o nome mais célebre desse comportamento é o de Jean-Luc Godard, que, de cineasta brincalhão apaixonado pelas citações a seus mestres diretores, transformou-se em um dos mais temidos “chatos” da cinematografia mundial — o que é injusto, pois a carreira de Godard tem tantas fases diversas que é incoerente afirmar que todas são igualmente fracas. François Truffaut comentou uma vez a seu respeito: “Ele faz um cinema diferente. Considera que depois de maio de 68 não se pode mais fazer o mesmo cinema, e censura os que continuam”. Essa mudança emblemática, que faz a tônica dos discursos dos detratores de Godard, é uma das bases de suas mudanças de estilo: o cinema narrativo para ele estava sepultado, e as idéias precisavam de um novo formato, um suporte diferente. Godard então foi ficando cada vez “difícil”, “intelectual”, “hermético”; se é verdade que não há um filme “inútil” de Godard — no sentido de que todos têm elementos interessantes pelo menos no contexto da filmografia do artista —, não é menos verdade que por vezes esse radicalismo beira a birra infantil: em Salve-se quem puder (a vida)Branca de Neve. Não, não se trata da obra-prima dos estúdios Disney, mas de um filme do realizador português João César Monteiro. É uma experiência de cinema “às cegas”, pois literalmente não se vê nada durante o tempo de projeção do filme – a imagem vermelha que estampa este artigo é uma das três ou quatro ocasiões em que vemos algo, pois durante mais de uma hora somos largados diante de uma tela completamente negra exibida sob uma narração contida da história, poetizada, da princesinha. No final das contas, é claro que João César Monteiro queria experimentar, mas seu experimento é vazio e estapafúrdio, seu resultado, ridículo, e sua intenção, torpe: sabe-se que Branca de Neve foi filmado pelo menos em parte com dinheiro estatal lusitano, capital jogado no lixo com o esdrúxulo modo de procedimento de Monteiro, que enganou a todos com um filme que rebaixa o cinema a um retrocesso do tempo do rádio. Seria mais honesto fazer de sua brincadeira um livro narrado ou um CD, e sua estupidez ainda se agrava quando lemos o boato não confirmado de que tudo foi rodado por Monteiro como em um filme normal — ele teria dirigido atores, usado locações, trabalhado a iluminação do filme e tudo o mais, mas deliberadamente com a lente tampada.
Talvez esses eternos inconformados devam observar mais o exemplo do velho Chris Marker, na luta e na ativa há anos, calado, sempre consciente, importante porque dignifica seu amadurecimento artístico sem agredir quem acredita nas formas usuais. O caso é que insultar o espectador é uma maneira simples de disfarçar sua falta de relevância.
Trilogia do Terror (ep. A Procissão dos Mortos)
Direção: Luis Sérgio Person
Brasil, 1968.
O longa Trilogia do Terror, dividido em três segmentos, é um clássico do cinema brasileiro. Um de seus méritos é a singularidade autoral de cada um dos diretores de cada segmento. Ozualdo Candeias fez uma fábula faustiana em pleno Brasil rural, trabalhando com os marginalizados elementos do Catimbó, em O Acordo. José Mojica Marins exercitou seu horror primitivo no mais assustador dos três episódios, Pesadelo Macabro. Já o mais politizado dos três, Luís Sérgio Person, que escreveu e dirigiu o episódio A Procissão dos Mortos, trabalhou com a alegoria. Com o Regime Militar instaurado, Person se utilizou das possibilidades alegóricas do cinema fantásdtico para registrar sua visão sempre crítica do Estado de Coisas que o Brasil se encontrava, destacando o delicado e polêmico tema dos desaparecidos políticos.
No elenco, nomes importantes como Lima Duarte. O projeto do longa em três episódios foi produzido pelos lendários Renato Grecchi e Antonio Polo Galante. A Procissão dos Mortos tem trilha sonora de Rogério Duprat, fotografia do genial Oswaldo de Oliveira, em P&B e edição de Silvio Renoldi, que ficou a cargo dos três segmentos, nessa produção que é um clássico exemplo da Era de Ouro da Boca do Lixo Paulisttana.
Lançado no mítico ano de 1968, Trilogia do Terror tem na alegoria dos guerrilheiros mortos do segmento de Person, um grande exemplo dos artifícios que muitos autores, em todas as artes, usarm para expressar sua visão da realidade “editada” pela censura dos Regimes Militares, sejam eles de que orientação política forem. A lenda de um local sinistro, onde os mortos vagavam juntos durante a noite, como em uma procissão, é narrada por um grupo de pessoas em uma taverna estilizada. O desafio de ver a tal procissão fantasmagórica dos guerrilheiros mortos é lançada, em um movimento clássico de várias narrativas góticas, e até de tempos bem anteriores. A representação dos espectros cria um anticlímax – o que sentimos não é o medo do sobrenatural, mas sim um fascínio por aquelas figuras que encerram a história preparando o espectador para o episódio seguinte, o de Mojica, o único que realmente pode receber a classificação de ‘terror’ dos três. Mas o episódio de Person permanece como um registro alegórico de época, digno do grande mestre que foi.
O Caso dos Irmãos Naves
Direção: Luis Sérgio Person
Brasil, 1967.
Por Vlademir Lazo Correa
O Caso dos Irmãos Naves é um filme baseado em caso verídico, sobre um fato ainda muito comentado nos anos 70, quando o filme foi realizado. Quatro décadas depois, o caso já não é mais lembrado e conhecido com a mesma repercussão daquele tempo, mas esse detalhe em nada enfraquece a obra. Pelo contrário, faz com que O Caso dos Irmãos Naves continue, quem sabe, ainda mais impactante do que no seu lançamento, porque voltar ao filme nos faz pensar que aquela série de acontecimentos não está tão presa apenas ao episódio especifico que originou o filme, mas com uma amplidão maior que torna possível enxergá-lo dentro de qualquer época, circunstância ou lugar.
O filme de Luis Sérgio Person concentra-se no referido processo judiciário e nos fatos que o cercaram, conforme foram relatados e documentados pelo livro do advogado de defesa dos irmãos Naves (Raul Cortez e Juca de Oliveira), na cidadezinha de Araguari (MG). Os Naves são logo no começo os mais preocupados em descobrir o paradeiro do sócio que sumiu com uma vultosa quantia em dinheiro, porém a absoluta falta de indícios ou hipóteses de outros suspeitos leva o Tenente-Delegado (Anselmo Duarte) à conclusão de que os próprios Irmãos Naves assassinaram o sujeito desaparecido. Tendo o crime atraído grande atenção dentro da pequena cidade, a urgência de apresentar prontamente um responsável e sua devida punição exime a necessidade de uma investigação de maior alcance. As coisas estão transcorrendo normalmente quando então há uma guinada e os dois irmãos são encarcerados e passam a sofrer pressão para admitir o crime que não cometeram, e quiçá, nunca existiu.
O que é O Caso dos Irmãos Naves se não um progressivamente organizado esmagamento do individuo frente ao poder (não necessariamente nessa ordem) jurídico/político/policial? Person pega pesado no tratamento realista dentro da delegacia com os prisioneiros pendurados de cabeça para baixos e espancados em tudo quanto é lugar, transformando literalmente os acusados em bonecos manipuláveis e sem vida e vontade próprias, fantoches com rostos emagrecidos e congelados de medo e que mecanicamente repetem e assumem as histórias que o Tenente-Delegado enfia-lhe goela adentro, forçando-os a assinar uma confissão de culpa detalhada e verossímil, apenas concordando com tudo que o Delegado os acusa. Os irmãos sofrem coações violentas e ferozes para que procedam com a reconstituição do crime pelo qual supostamente são os responsáveis. No entanto, o pesadelo dos Naves está muito longe de terminar, pois ainda falta o encontro do cadáver e a apreensão do dinheiro.
As torturas cruéis e os desmandos violentos multiplicam-se, sem que nada se acrescente como prova concreta no processo dos Naves. Os requintes com que os espancamentos e os métodos de aliciamento são mostrados é digno de um exploitation ou de um filme de terror, como na cena em que os soldados ameaçam jogar um bebê para cima de uma adaga ostentada pelo Delegado, diante de uma mãe enlouquecida e desesperada sem saber o que falar. As esposas e a própria mãe dos irmãos não escapam dos interrogatórios bárbaros a que são submetidas. Os Naves apenas saem da cadeia para serem levados a um campo aberto, onde são amarrados a troncos de árvores e seus corpos untados com mel para serem atacados por abelhas e formigas, entre outras atrocidades ordenadas pelo Tenente-Delegado.
Anselmo Duarte, no papel do diabólico delegado, é um destaque à parte. Se quando jovem impressionara o país inteiro com o seu jeito sedutor e porte de galã, agora mais maduro a força de sua personalidade o leva a construir um personagem monstruoso, em que dizem que destila toda sua raiva e ressentimento contra os inimigos do Cinema Novo. Impressionante. O seu contraponto mais humano é o comovente advogado de defesa encarnado por John Herbert, numa interpretação mais sóbria, comedida. Os confrontos entre ambos nas cenas de julgamento são inesquecíveis, à altura dos grandes momentos de qualquer filme de tribunal na história do cinema.
O Caso dos Irmãos Naves é um dos filmes mais diretos do Cinema Novo brasileiro, distante dos arrojos de linguagem de obras-primas como São Paulo S.A. e Terra em Transe e em alguns aspectos antecipa muito do cinema político italiano da década de setenta. Um filme corajosamente rebelde, contundente e objetivo, em que a parte política e isenta de ideologias não suplanta a estrutura dramática, ao mesmo tempo em que o seu rigor impede que passe perto da pieguice ou comiseração. Uma obra-prima.
Panca de Valente
Direção: Luís Sérgio Person
Brasil, 1968.
Por Gabriel Carneiro
Ao se assistir Panca de Valente, a impressão que se tem é que Person havia se cansado dos filmes sérios e reflexivos e resolveu tirar férias. Nisso, ele realizou Panca de Valente, uma grande brincadeira com o cinema clássico americano, o cinema mudo, o faroeste, entre outros. Porque, o que é Panca de Valente, se não uma grande paródia?
Costa Larga é o bandido que mata todos os xerifes da pequena cidade de Espalha Brasa. Impõe então ao prefeito que Jerônimo (o nome já diz muito, não?), o mais paspalho e ingênuo cidadão do município, ocupe o cargo. Mesmo contrariado, Jerônimo aceita o cargo e põe a panca de valente, trajado como nos faroestes de quinta, aprende a montar a cavalo e a manipular uma arma. Tudo é motivo para zombar de seu personagem e da cidade onde vive. Person não economiza nas gags, mesmo quando elas são sem graça, em mérito de algo maior. Não há preconceito com tomadas batidas (como quando é filmado Jerônimo no cavalo, sem mostrar o animal, a princípio, para então abrir num plano geral que mostre a pateticidade do conjunto), desde que elas falem daqueles filmes referenciados.
Talvez seja esse o grande trunfo de Panca de Valente: ser um filme-festa, que busca meramente a diversão e o humor fácil, pastelão. Person mantém a seriedade apenas quanto ao rigor técnico e à qualidade fílmica, com bela fotografia de Oswaldo de Oliveira, além da ótima abertura, responsabilidade de Ypê Nakashima. O demais é Person se extravasando, brincando de fazer cinema sobre o cinema – com música, inclusive, letradas pelo diretor. Em determinado momento, Faz Tudo, interpretado por um Tony Vieira em início de carreira, olha para a câmera e diz: “essa chuvinha de cinema é fogo.” É uma fala aparentemente despropositada, que não acrescenta nada ao longa, mas representa bem o que é esse filme de Person.
Panca de Valente é considerado a película mais fraca do cineasta, e um de suas menos citadas, talvez por não ser justamente o filme sério, político e reflexivo como seus dois longas anteriores, São Paulo S/A e O Caso dos Irmãos Naves, e talvez o seja mesmo. Não é um grande filme, mas é um agradável, que funciona melhor com o tempo. Um dia depois de visto, Panca de Valente me parece bem melhor, com algumas ótimas sacadas – a primeira vez que Jerônimo monta a cavalo, ou as impagáveis cenas do treinamento de tiros ou dos exercícios físicos.
É um filme a se degustar, a se saborear na memória os momentos triviais, banais a princípio, mas que perduram e que passam a ter mais graça. A genialidade de Person estava aí, em criar um material que não seja tão facilmente esquecido, mesmo que o filme não seja brilhante.