Por Daniel Salomão Roque, especialmente para a Zingu!*
O Vigilante Rodoviário
Direção: Ary Fernandes
Brasil, 1961.
Dentre as muitas possibilidades oferecidas pela expansão do mercado de vídeo digital, a revisão crítica de séries está entre as mais prazerosas. A condensação de temporadas completas e de meses de programação televisiva num punhadinho de discos sacia os desejos dos colecionadores mais fetichistas e, ao mesmo tempo, permite o surgimento de uma nova perspectiva ante essas obras. É por esses e outros motivos que o lançamento, via Spectra Nova, do box O Vigilante Rodoviário, contendo a quase totalidade do legendário seriado brasileiro, pode ser considerado, sem exagero, um marco. À parte os fatores já mencionados, trata-se de um material que atravessou décadas no limbo, privado de qualquer contato com o público, estando a um passo de se perder para sempre – o que de fato aconteceu com os três únicos episódios ausentes da caixa, composta por quatro discos e vendida ao atraente preço médio de 50 reais. Restaurada com as devidas pompas, a série (inserida em 2009 na grade horária do Canal Brasil) constitui um dos mais bem-sucedidos exemplares do cinema de gênero feitos no país e, vista hoje, torna-se um irresistível portal rumo à memória afetiva de nossos pais e ao início da carreira de muita gente: Stênio Garcia, Ary Toledo, Milton Gonçalves e Rosa Maria Murtinho são alguns dos nomes que deram seus primeiros passos no programa, fotografado pelo então iniciante Oswaldo de Oliveira (que mais tarde dirigiria Histórias Que Nossas Babás Não Contavam e o cult A Prisão).
Os bastidores de O Vigilante Rodoviário são mais conhecidos que a série propriamente dita, o que talvez se explique pelas conjunturas em que foi gravada: inspirada nas matinês norte-americanas e pegando carona na ascensão da televisão brasileira, a criação de Ary Fernandes tornou-se o primeiro seriado rodado em película na América Latina. O episódio-piloto, O Diamante Grão-Mongol, data de 1959 e foi produzido em condições precárias, com membros da equipe técnica preenchendo todo o elenco e orçamento reduzidíssimo bancado pelo próprio diretor. Foram dois longos anos até que surgisse um patrocinador – no caso, a Nestlé – que permitisse ao projeto deslanchar, mas já na origem podemos perceber algumas de suas características básicas.
A curta duração das histórias e a dinâmica das mesmas se relacionam de forma curiosa com a linguagem intrínseca dos quadrinhos – não à toa, a série chegou a ser adaptada para os gibis, desenhados por ninguém menos que Flávio Colin. Isso não seria de se espantar, considerando-se que a imensa maioria dos seriados americanos das décadas de 30-40 se baseavam em personagens de HQs; entretanto, o caso de Vigilante Rodoviário chama a atenção pela maneira como se apropria de um gênero estrangeiro por excelência, com todos os clichês inclusos, para mesclá-lo a uma realidade tipicamente brasileira. Protagonizado pelo vigilante Carlos (herói boa-pinta e, como não poderia deixar de ser, uniformizado) e seu cachorro Lobo (um carismático pastor alemão, espécie de Rin Tin Tin nativo), o programa percorre uma ampla gama de situações que abrangem desde operações estereotipadas do crime organizado até dramas pessoais que esbarram na sociologia.
Essa diversidade temática traz junto a si uma condução narrativa, no mínimo, versátil. A série é heterogênea e um pouco irregular, mas nos reserva umas tantas surpresas agradáveis. O maior obstáculo, no caso, parece ser mesmo a pequena duração dos episódios. Se por vezes o que temos são tentativas frustradas de espremer, em vinte minutos, enredos de longas-metragens, em outros casos nos deparamos com verdadeiras gemas, onde a ação se encaixa com precisão numa estrutura cuidadosamente planejada para dar suporte à dramaturgia rápida. É o caso, por exemplo, de A Pedreira, sobre uma criança encurralada numa área prestes a ser implodida, permeado por um tom documental que lhe confere uma tensão absurda; e, sobretudo, de O Rapto de Juca, talvez o melhor de todos, movido por um ritmo frenético e estrelado pelo grande Juca Chaves. Essas fagulhas de brilhantismo, aliadas a um estilo cinematográfico há muito extinto e a um constante enfoque nos modismos e concepções da época, transformam O Vigilante Rodoviário num tesouro histórico, cujo sabor o tempo acentua cada vez mais.
*Daniel Salomão Roque é fanático por quadrinhos e cinema. Colaborou fixamente com a Zingu! por 15 edições, das quais 12 com a coluna Tesouro dos Quadrinhos.