Reflexos em película

Por Filipe Chamy

Querem nos insultar

Uma das espécies cada vez mais presentes na cena artística contemporânea são os “desconstrutores” do convencional, aquele tipo de gente que diz ter inventado a roda, descoberto os erros de quem veio antes, alterado as imperfeições que existiam até que alguém com coragem, talento e visão as extirpasse. No cinema essa tendência se manifesta há pelo menos umas quatro décadas, possivelmente “oficializada” na França do final dos anos 1960, após os acontecimentos que marcaram a mudança no pensamento estudantil e cinéfilo da época.

Naturalmente, o nome mais célebre desse comportamento é o de Jean-Luc Godard, que, de cineasta brincalhão apaixonado pelas citações a seus mestres diretores, transformou-se em um dos mais temidos “chatos” da cinematografia mundial — o que é injusto, pois a carreira de Godard tem tantas fases diversas que é incoerente afirmar que todas são igualmente fracas. François Truffaut comentou uma vez a seu respeito: “Ele faz um cinema diferente. Considera que depois de maio de 68 não se pode mais fazer o mesmo cinema, e censura os que continuam”. Essa mudança emblemática, que faz a tônica dos discursos dos detratores de Godard, é uma das bases de suas mudanças de estilo: o cinema narrativo para ele estava sepultado, e as idéias precisavam de um novo formato, um suporte diferente. Godard então foi ficando cada vez “difícil”, “intelectual”, “hermético”; se é verdade que não há um filme “inútil” de Godard — no sentido de que todos têm elementos interessantes pelo menos no contexto da filmografia do artista —, não é menos verdade que por vezes esse radicalismo beira a birra infantil: em Salve-se quem puder (a vida)Branca de Neve. Não, não se trata da obra-prima dos estúdios Disney, mas de um filme do realizador português João César Monteiro. É uma experiência de cinema “às cegas”, pois literalmente não se vê nada durante o tempo de projeção do filme – a imagem vermelha que estampa este artigo é uma das três ou quatro ocasiões em que vemos algo, pois durante mais de uma hora somos largados diante de uma tela completamente negra exibida sob uma narração contida da história, poetizada, da princesinha. No final das contas, é claro que João César Monteiro queria experimentar, mas seu experimento é vazio e estapafúrdio, seu resultado, ridículo, e sua intenção, torpe: sabe-se que Branca de Neve foi filmado pelo menos em parte com dinheiro estatal lusitano, capital jogado no lixo com o esdrúxulo modo de procedimento de Monteiro, que enganou a todos com um filme que rebaixa o cinema a um retrocesso do tempo do rádio. Seria mais honesto fazer de sua brincadeira um livro narrado ou um CD, e sua estupidez ainda se agrava quando lemos o boato não confirmado de que tudo foi rodado por Monteiro como em um filme normal — ele teria dirigido atores, usado locações, trabalhado a iluminação do filme e tudo o mais, mas deliberadamente com a lente tampada.

Talvez esses eternos inconformados devam observar mais o exemplo do velho Chris Marker, na luta e na ativa há anos, calado, sempre consciente, importante porque dignifica seu amadurecimento artístico sem agredir quem acredita nas formas usuais. O caso é que insultar o espectador é uma maneira simples de disfarçar sua falta de relevância.