Musas Eternas

Sandrine Bonnaire

Por Filipe Chamy

Um dos sorrisos mais bonitos do mundo pertence a Sandrine Bonnaire, atriz francesa por vocação e destino, uma das presenças mais fascinantes do cinema nos últimos anos. Sandrine nasceu em fins de maio de 1967 e desde sua primeira aparição no cinema, como protagonista já em 1983, abraçou cada filme como uma mãe abraça seu filho pequeno. Este texto é uma pequena carta de admiração a uma atriz admirável, traçando breves considerações sobre seus trabalhos mais importantes, década a década.

Anos 80

Sandrine iniciou sua carreira de atriz sob um auspício favorabilíssimo: a obra-prima Aos nossos amores, de Maurice Pialat. Pialat não apenas foi o introdutor de Sandrine Bonnaire no cinema — antes, ela havia feito, quando muito, pontas (não creditadas e nem confirmadas) em poucos filmes —, mas como a ajudou a se firmar como intérprete, protegendo-a não só por trás como na frente das câmeras: ele fazia no filme o papel de seu pai. Sandrine saiu-se admiravelmente bem como Suzanne, jovem mulher que entra com dificuldade na vida adulta, hesitando entre o amor e o sexo, transitando entre dúvidas naturais para a idade e sua conturbada relação com a instável e agressiva família. Uma personagem difícil, que Sandrine desenvolve com espontaneidade ímpar, criando uma das maiores representações da adolescência no cinema. O magnífico desempenho da jovem francesa a coloca em evidência em revistas, jornais, críticas, projetos de novos filmes.

Ocorre que o cinema não costuma entender ou aceitar atores jovens, portanto Sandrine acaba fazendo alguns filmes que não a valorizam: Tir à vue e Le meilleur de la vie são exemplos de produções que apostam apenas no superficial — a nudez do belo corpo juvenil de Sandrine Bonnaire —, o que talvez explique o pudor de Sandrine nos anos seguintes, em que quase não se expõe fisicamente, sob nenhum pretexto. A menina — ela tem por volta de dezesseis anos nessa época — parece então despontar de vez e recebe convites irrecusáveis, de grandes diretores. Assim, em poucos anos trabalha com Agnès Varda — para quem faz a inesquecível composição da protagonista de Os rejeitados, moça pária em uma descompassada sociedade contemporânea —, com Jacques Doillon (em A puritana, ao lado de Sabine Azéma e Michel Piccoli), com André Téchiné (em Os inocentes, junto a Jean-Claude Brialy, figura tarimbada nos filmes nouvellevaguistas), com Claude Sautet (em Quelques jours avec moi, formando um charmoso casal com Daniel Auteuil e dividindo a cena também com Danielle Darrieux e Jean-Pierre Marielle), e novamente com seu padrinho Maurice Pialat, em dois filmes junto a Gérard Depardieu: em Polícia, ela tem presença curta e marcante, mas em Sob o sol de Satã o espetáculo é quase todo dela – sua Mouchette é um grande momento dramático e certamente sua desenvoltura segura e honesta foi um dos trunfos que fez esse polêmico filme questionador da fé realizado por Pialat sagrar-se vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Em 1989, ela faz dois filmes: o pouco comentado Peaux de vaches, no qual se relaciona, com certa desconfiança inicial, com Jean-François Stévenin — ator e ajudante de François Truffaut —, um filme cheio de barulhos de máquinas e pequenos sentimentos acobertados por uma espécie de desconforto social; e Monsieur Hire, uma obra-prima de Patrice Leconte baseada em um romance do brilhante Georges Simenon. Em Monsieur Hire, Sandrine co-protagoniza, ao lado de Michel Blanc (excelente no papel-título), uma trama mais sentimental que policial, em que o maior crime (e perigo) é se apaixonar. Sua Alice é tão erótica e dúbia quanto a da obra literária, mas a doçura de Sandrine é tanta que faz o espectador sempre ficar de seu lado e perdoar seus erros, aceitar suas mentiras. É o filme em que Sandrine está mais linda em toda a sua filmografia: além de a fotografia destacar cada um de seus trajes, femininos e sugestivos, Sandrine está com os cabelos louros (a personagem literária é ruiva), a aparência jovem, alegre e entusiasmada, o corpo esculpido de maneira sublime. A cena em que aparece apenas de calcinha e sutiã se trocando defronte à janela onde Michel Blanc a espia e escuta Bhrams é a mais perfeita do filme e provavelmente a melhor já filmada por Leconte em sua carreira. O filme acabou servindo como um tributo tardio a Simenon, morto naquele mesmo ano.

Anos 90

Década prolífica para Sandrine Bonnaire, iniciada com La captive du désert. Trata-se da história (real) de uma francesa que ficou refém de uma tribo africana por meses e meses. O filme não introduz nada, não há diálogos muito aprofundados, os silêncios, olhares e as extensas repetições dão conta do marasmo a ser retratado e alcançado. Dirigido pelo famoso fotógrafo Raymond Depardon, se assemelha a um documentário da National Geographic, filmado à distância com uma câmera de longo alcance. A sensação de “verdade” da obra é enorme, inacreditável; se o espectador não conhecer Sandrine Bonnaire, se for o primeiro filme que vir com ela, provavelmente terá plena certeza que vê um documentário. Mesmo porque o restante de elenco é tribal de fato, e o filme é consideravelmente voyeurístico, bem pouco aproximado, iniciando-se já com a situação montada — sem sequer mostrar o que houve para a mulher ser capturada.

Em seguida, Sandrine tem encontros muito importantes: o primeiro é com Marcello Mastroianni, em Verso sera, produção italiana de sentimentalismo aflorado pela presença do inesperado casal formado pelo velho Marcello e pela jovem e bela Sandrine. O segundo é com William Hurt, com quem viria inclusive a ter uma filha, de nome Jeanne; o casal esteve junto em A pesteConfidências a um estranho, drama de época em que o fantasma incômodo da aristocracia reina sobre personagens embrutecidos pelas circunstâncias. O terceiro encontro é com Jacques Rivette, com quem faz três belíssimos filmes: Jeanne la Pucelle é uma obra bipartida sobre a santa heroína Joana d’Arc, sendo a primeira parte sobre as batalhas que liderou (Les batailles) e a segunda, sobre sua prisão como herética (Les prisons) — a expressão de Sandrine é mesmo a de uma figura etérea, imaterial, que tem uma missão a cumprir, e é indizível o grau de perfeição de sua representação na cena da condenação, com a luz mudando, o olhar de hesitação, o texto agressivo, a abjuração, o sorriso quando ri das acusações… —; Defesa secreta é um filme de encenação majestosa e atuações sutis, dramas íntimos e poderosos, num trabalho meticuloso mas apaixonado, como de costume nas fitas do diretor, e Sandrine mais uma vez tem um desempenho ímpar, numa personagem que vai praticamente se metamorfoseando moralmente ao longo da obra. O quarto encontro importante é com Claude Chabrol, que dirige Sandrine em dois momentos muitos especiais: Mulheres diabólicas é a celebração das “mulheres perversas” chabrolianas, em que Sandrine e Isabelle Huppert dividem a cena e as maldades, arrepiando o espectador com sua frieza e psicopatia; A cor da mentira é um belo estudo a Fritz Lang sobre o que um boato, verdadeiro ou não — o marido de Sandrine é acusado de ter assassinado uma garotinha —, faz à vida e à reputação de uma pessoa fraca, que tem de encontrar forças para conviver com a culpa e o remorso de uma atrocidade cometida sabe-se lá por quem.

A década ainda traz a Sandrine um reencontro, com uma de suas figuras “descobridoras”, Agnès Varda: Sandrine faz uma participação afetiva em As cento e uma noites, relembrando personagens anteriores, principalmente a moça desajustada de Os rejeitados — o filme que rendeu o Leão de Ouro a Varda dez anos antes, criação emblemática para Sandrine e uma de suas principais marcas de maturidade como atriz. Esse reencontro tem lugar portanto em 1995, e nele também Sandrine contracena novamente com Michel Piccoli, o que aumenta o ar familiar da carinhosa homenagem prestada por Varda a essa cada vez mais completa jovem atriz francesa.

Entre as outras obras que contaram com a participação de Sandrine nessa década o destaque vai para Leste-Oeste – O amor no exílio, mais uma produção elogiada do irregular Régis Wargnier (o diretor de Indochina). Não chega a ser um trabalho excepcional, pois esbarra na preguiça acadêmica costumeira do cineasta, mas é com esse filme que Sandrine encerra a década de 1990, sua década mais produtiva, na qual se permitiu experimentalismos em outros países e gêneros cinematográficos.

Anos 2000

Mais um período de intenso trabalho para Sandrine Bonnaire — interrompido em 2004 quando teve sua segunda filha, Adèle, com o roteirista Guillaume Laurant (seu marido desde 2003). Os filmes em que atua nessa fase são caracterizados por produções modestas, muitas vezes de cineastas neófitos e com elenco desconhecido. O primeiro deles é Mademoiselle (não confundir com o filme de mesmo nome dirigido em 1966 por Tony Richardson, com Jeanne Moreau), história leve de um romance fugaz. Sandrine não fazia muitas comédias no início de sua carreira, o que vem paulatinamente mudando. Mademoiselle não é um filme de humor, mas um filme de amor, portanto tem uma doçura que escapa a quem não entende esse sentimento. O filme seguinte, C’est la vie, tem um tom mais sombrio, ainda que o filme seja bastante claro e alegre na superfície – trata-se de uma esforçada Sandrine Bonnaire, desapegada e alegre, convivendo com a morte dos outros, numa narrativa delicada e que ainda tem o grande ator e cantor Jacques Dutronc co-protagonizando o filme com a francesa (e cantando com ela!).

Após uma participação no Femme fatale de Brian de Palma, Sandrine volta a trabalhar com outro “descobridor” seu: Patrice Leconte. Em mais um belo trabalho autoral, Confidências muito íntimas, considerável sucesso de público e crítica. No filme de Leconte, os personagens se cruzam por acaso, e, dependentes emocionais, se relacionam à distância, mesmo em pensamentos. Confidências tornou-se um dos mais celebrados (e conhecidos) filmes com Sandrine Bonnaire fora da França, e é co-estrelado pelo ator rohmeriano Fabrice Luchini.

Os filmes seguintes não provocam muita repercussão e nem sequer foram lançados no Brasil: Le cou de la girafe é uma parceria interessante entre Sandrine e Claude Rich, personagens estremecidos por desencontros provocados pela inocência infantil de uma pequena menina, filha de Sandrine; L’équipier traz um amor conturbado entre uma mulher casada e um homem misterioso numa comunidade campesina situada numa região afastada e cujo único diferencial é um obscuro farol; Je crois que je l’aime é outra comédia romântica, açucarada na medida adequada para permitir a Sandrine interpretar sua personagem com desenvoltura e segurança; em Demandez la permission aux enfants, as crianças é que tomam o controle de tudo, criando situações embaraçosas e forçando seus pais a intervirem de maneira curiosa e engraçada; Un coeur simple é uma adaptação do conto homônimo de Gustave Flaubert, com Sandrine fazendo o papel da servil Félicité, tão embrutecida quanto na história original e com uma nobreza tão pouco compreendida quanto; L’empreinte de l’ange mostra a agonia de uma mãe com uma estranha se aproximando da filha (mas talvez os papéis não sejam exatamente esses); Joueuse traz Kevin Kline em seu primeiro papel francófono e contracenando com Sandrine Bonnaire em seu último filme até a data, neste trabalho em que os protagonistas fazem do xadrez e da cultura uma maneira de se conhecerem e respeitarem.

Curiosamente, o trabalho mais importante da década para Sandrine, por razões profissionais e pessoais, não foi um filme em que atuou como atriz, mas um documentário dirigido por ela mesma: Ela se chama Sabine é um delicado retrato de sua irmã (a moça do título), jovem autista que teve sua situação física e mental agravada pela ignorância, negligência e imperícia do atendimento médico a que foi submetida. Por um lado, é uma história alegre, porque mostra o amor de Sandrine por sua irmã, cenas da família reunida e feliz, décadas atrás, mas também é triste, quando mostra a degradação acentuada de Sabine e seu estado beirando a total inconsciência mental em certos momentos. Aos interessados em ver este doloroso filme-tributo, existe na rede virtual, em programas de compartilhamento, uma versão que traz de bônus um programa de televisão em que Sandrine foi convidada a comentar o filme e debater o assunto do autismo com especialistas da área médica, o que faz com veemência e sinceridade. Sandrine, por sinal, tem respeitável histórico ativista no assunto do autismo, chegando inclusive a se reunir oficialmente com Nicolas Sarkozy para discutir o tema.

Sandrine ganhou vários prêmios em sua carreira, sendo os mais importantes o César (duas vezes: como revelação por Aos nossos amores e como atriz por Os rejeitados) e o troféu de melhor atriz em Veneza (por Mulheres diabólicas, honraria dividida com Isabelle Huppert pelo mesmo filme). Também foi indicada e premiada outras inúmeras vezes. Porém o mais importante para ela não é colecionar estátuas ou placas, mas alcançar com suas atuações diferentes níveis de expressividade, de sensibilidade, de comunicação. Sandrine Bonnaire é uma atriz apaixonante porque é uma mulher apaixonante.

Destaques de Sandrine Bonnaire no YouTube:

• A beleza estonteante da Alice de Monsieur Hire:
http://www.youtube.com/watch?v=ZkSACvbqtio

• Parte do teste de Sandrine para Aos nossos amores:
http://www.youtube.com/watch?v=jArWCgnjNQ8

• A adolescente Sandrine em um esquete do projeto Cinématon:
http://www.youtube.com/watch?v=EqLZIc_LrEo

• A canção do grupo francês Snoc dedicada a Sandrine:
http://www.youtube.com/watch?v=26vq6LgbjxI