Lançamentos: Fase inglesa de Hitchcock

Por Vlademir Lazo Correa

Fase Inglesa de Hitchcock, em DVD

Uma boa surpresa desse começo de ano é o lançamento em DVD, no Brasil, de uma coleção que contempla nove dos filmes ingleses de Alfred Hitchcock. É uma oportunidade de conferir e entrar em contato com uma fase praticamente invisível de um dos mais populares cineastas de todos os tempos. Por que todo cinéfilo que se preze conhece a maioria dos seus grandes clássicos da fase americana, mas são poucos os que realmente se aventuram pelo período menos nobre de sua carreira. A fase inglesa de Hitchcock, no geral, costuma ser bastante negligenciada (os mais conhecidos dessa fase são os filmes que vão do primeiro O Homem Que Sabia Demais até A Dama Oculta, já na segunda metade da década de trinta), mas essa coleção lançada pela Universal concentra-se num ciclo ainda mais obscuro, com as suas quatro últimas obras mudas e os primeiros filmes falados que dirigiu, abrangendo um período de transição que vai de 1927 até 1932.

São no total nove filmes em quatro DVDs, alguns com títulos nacionais diferentes do que comumente eram chamados por aqui. É uma coleção mais apropriada aos curiosos e os admiradores mais fanáticos pela obra de Hitchcock. O mais antigo da coleção é O Aviso (The Ring), que o próprio Hitchcock considerava o seu segundo filme mais pessoal entre os sete que dirigira até aquele momento (o primeiro seria The Lodger, do ano anterior, em que introduziu os elementos de suspense em sua obra). Ainda assim, não se trata de um filme de suspense, de uma intriga envolvendo um crime qualquer, mas de uma tensão em volta do triângulo amoroso com dois boxeadores apaixonados pela mesma mulher. O suspense advém das lutas no ringue e com o qual dos boxeadores ficará a heroína do filme, transformando-se também em uma história de traição. É um dos mais enxutos e rápidos filmes de Hitchcock nessa época, com achados visuais e simbólicos, mais inovações na montagem. Por outro lado, o filme que acompanha The Lodger é um dos mais fracos de toda carreira do cineasta inglês, Champagne, sobre a filha de um milionário que após uma aventura amorosa briga com pai e embarca para a França, onde é contratada por um cabaré para convidar os clientes a beber champanhe. É praticamente impossível encontrar traços hitchcockianos nessa obra renegada, com apenas duas ou três cenas mais inspiradas, e que o diretor conta ter criado o argumento à partir de uma velha comédia de Griffith.

Entre os dois títulos citados mais acima, Hitchcock realizou uma outra produção a qual também nunca viu com bons olhos, A Mulher do Fazendeiro (The Farmer’s Wife), tirado de uma peça de muito sucesso na época sobre um fazendeiro viúvo que quer se casar fixando-se em três pretendentes que o rejeitam sistematicamente, sem perceber que a mulher ideal é a sua própria empregada, que o ama em segrego. É mais uma comédia sem nada do estilo com o qual se consagraria posteriormente, com algumas boas gags, e no qual o desafio maior do diretor foi o de superar os elementos teatrais do material. Bem superior é o último de seus filmes mudos, Pobre Pete (The Manxman), um melodrama de ressonâncias ainda mais trágicas do que The Ring (mas sem a mesma agilidade e apuro técnico). Um pescador pobre sai pelo mundo para fazer fortuna e se casar com a mulher que ama, mas ao retornar para sua aldeia a encontra casada com o melhor amigo. Hitchcock não possuía apreço pelo filme por ele não ter humor, e talvez por alguns desentendimentos de produção, mas sem dúvida trata-se de um dos seus mais bem-acabados filmes mudos.

Se a maioria dos seus primeiros filmes eram resultados de imposições comerciais que não o agradavam totalmente, ao menos serviram para tornar Hitchcock um dos mais celebres diretores da Inglaterra naquela época, possibilitando-o dirigir o primeiro filme sonoro inglês, Chantagem e Confissão (Blackmail), também o primeiro grande filme de sua carreira, em que ele parece ter mais liberdade de criação, desde a escolha do argumento, ainda que não podendo filmá-lo rigorosamente como desejava (Hitch pretendia concluir o filme com um final mais pessimista). Mas é uma história de detetives, prisões, intrigas policiais, perseguições, estupros, assassinatos, paixões, chantagens e confissão. Era um novo começo dentro da obra de Hitchcock, aprimorando a técnica que já vinha ensaiando nos filmes anteriores. Ainda assim, logo em seguida Hitchcock precisou se submeter à produções que lhe foram impostas, como o primeiro filme musical inglês (que co-dirigiu com outros cineastas) e um outro mais uma vez tirado de um êxito teatral, para depois realizar outro de seus mais interessantes filmes do período, Assassinato! (Muder!), também uma adaptação teatral, mas dessa vez com material de acordo com o seu gosto para o suspense. Uma trama de assassinato e julgamento, de crime e mistério, com fortes e ousadas referências ao homossexualismo para a época. Se o leitor pensa em adquirir apenas um dos DVDs dessa recém lançada coleção, o mais indicado é o que traz Assassinato e Chantagem e Confissão.

O último DVD agrupa não dois, mas três filmes do começo da década de trinta. O mais fraco, certamente, é Skin Game (extraído de um sucesso teatral inglês, para variar), que o cineasta renega, mas que é compensando pelo seu filme seguinte, o belo Ricos e Estranhos, sobre a viagem existencial de um casal que aparentemente não se amam mais e que decidem dar a volta ao mundo, passando por experiências que passam pelo mundo dos sonhos, dos símbolos e da psicanálise, culminando em um naufrágio que dará um sentido novo aos personagens. Há planos impressionantes, como o de um gato esfolado e crucificado que contempla o céu com seus olhos ainda vivos. Tematicamente é um dos mais ambiciosos filmes de Hitchcock até então, antecipando muito do que faria em várias de suas obras mais maduras, já na América. Entretanto, foi um fracasso, o que levou o cineasta a aceitar Mistério do Número 17 (Number Seventeen), uma história policial um pouco confusa, mas que não lhe interessava, e a qual não conseguiu salvar inteiramente, ainda que seja um filme curto e divertido. Hitchcock passa por uma crise de consciência com o seu cinema após esse duplo fracasso comercial, descontente com o rumo que sua carreira vinha tomando, permeada de diversos filmes que não lhe satisfaziam plenamente. Pensou em se dedicar mais à função de produtor, mas ainda foi obrigado a dirigir um musical barato, até que sua filmografia tomasse um rumo mais de acordo com o que conhecemos do mestre de suspense quando ganha carta branca para realizar apenas filmes do seu interesse e universo particular a partir da primeira versão de O Homem Que Sabia Demais, de 1934.