Especial Anselmo Duarte
Quelé do Pajeú
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1969.
Por Orlando Fassoni*
Um ar de produto sofisticado impede que “Quelé do Pajeú” seja, realmente, um grande filme brasileiro porque detem algumas das características principais da história de Lima Barreto (o escritor, não confundir com o diretor de “O Cangaceiro”), vista numa tela de 70 milimetros e ouvida em som estereofônico. “Quelé” não é a melhor obra do diretor Anselmo Duarte, mas é a maior, a mais espetacular, aquela que mais se assemelha aos épicos que pouco a pouco perdem o seu lugar no cinema. Essa grandiosidade, porém, não impede que Anselmo Duarte cumpra o seu objetivo e realize uma obra destacada na sua análise, no aprofundamento sobre os problemas e na visão correta de uma realidade. O filme atinge os seus fins com uma narrativa bem elaborada e pela qual consegue, apesar dos escorregões, envolver as platéias sem grandes apelos.
Influenciado em algumas seqüências pelo “western” e em outras por sua vocação em tratar temas regionais, Anselmo Duarte transforma a história de Lima Barreto num filme onde o denominador comum é a violência. É a partir do momento em que vê sua mulher ser violentada que o pacato sertanejo Clemente Celidônio, ou Quelé, começa a se transformar num ser despojado dos seus conceitos de Bem e Justiça, e sai de sua cidade, Pajeú das Flores, em busca de vingança, corroído pelo ódio, envolvido por um ambiente rude e hostil. Na sua trajetória, Quelé passa a ser um justiceiro do sertão, acompanhado por Maria do Carmo (Rossana Ghessa) e obsecado pela idéia de encontrar o desconhecido responsável pela violência contra sua mãe e sua irmã. Quando a missão acaba, ele já é um homem marcado pela necessidade de sobreviver através das armas, já é uma vitima do ódio e da brutalidade do seu meio.
À odisséia do personagem, Anselmo Duarte adiciona aventura, violência, sexo, amor e delírios, elementos dos quais se cerca para a construção de uma narrativa convincente, de clima sempre carregado, de situações dramáticas que transmitem bem os problemas de Quelé e fazem com que o espectador, assistindo as perseguições e injustiças cometidas contra o homem oprimido, perdoe os pecados do personagem e veja nele o símbolo do sujeito desesperado em busca de uma solução violenta numa paisagem onde as condições de sobrevivência não permitem a existência dos fracos. Os artificialismos existem, mas são raros. O nível cai algumas vezes, mas essas quedas instantâneas não comprometem um trabalho vigoroso, elaborado segundo uma visão que penetra nos aspectos psicológicos, sociais e religiosos de uma região onde as constantes são a violência, sexo primitivo, fanatismo e misticismo.
Distribuindo bem esses elementos, jogando entre eles uma relação sentimental que prende Quelé a Maria do Carmo, e outra sensual com Maria Rita (Isabel Cristina), o diretor chega a um filme de cangaço que se assemelha aos faroestes psicológicos, retratando a odisséia rural num tom épico-romântico despojado dos falsos clichês, e leva seu personagem principal a um final onde a solução é o grito de revolta.
Anselmo Duarte poderia, no caso, ter feito um filme sereno, sem as explosões que se sucedem. Mas optou pela grandiosidade e acabou gastando bem o seu orçamento de um bilhão de cruzeiros porque não permitiu que o espetáculo em si contaminasse a sua idéia de expor e analisar problemas do homem diante de uma situação violenta e cruel. Seu trabalho é seguro, apoiado num bom argumento, na música, na fotografia de José Rosa e no desempenho de um Tarcisio Meira que procura evitar os maneirismos de galã da televisão e adota uma interpretação correta. Rossana Ghessa, Jece Valadão e Sérgio Hingst aparecem bem em seus papéis, enquanto Isabel Cristina cumpre sua missão de fornecer à história a presença de uma mulher agressivamente sexy, uma espécie de Brigitte Bardot das caatingas.
* Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, do dia 01/05/1970.