Vereda da Salvação

Especial Anselmo Duarte

Vereda da Salvação
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1965.

Por Rodrigo Pereira

Tente entender o estado de espírito de Anselmo Duarte em 1964, enquanto rodava Vereda da Salvação – que ele sempre reputou como sua obra-prima. Entre os cineastas independentes e na imprensa em geral estava em andamento o movimento que entraria para a história sob o rótulo de Cinema Novo. E Glauber Rocha, arauto-mor da “nova onda”, não hesitara em taxar de “abortos típicos de uma cultura subdesenvolvida” os longas O Cangaceiro, de Lima Barreto (prêmio de melhor filme de aventuras no Festival de Cannes em 1953) e O Pagador de Promessas, de Anselmo, que havia conquistado a Palma de Ouro na edição de 1962 daquele mesmo festival. Tal crítica encontra-se num livro não por acaso batizado de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963).

Na panela cinemanovista, transbordando de jovens intelectuais de esquerda, não havia lugar para o ex-galã das chanchadas da Atlântida e astro de Sinhá Moça (1953) – outro grande sucesso da Vera Cruz, produtora de O Cangaceiro. O cinema novo mostrou seu poder de fogo com as estréias de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber – lançados respectivamente em maio e junho de 1964, pouco depois do golpe de 31 de março, que mergulharia o país numa ditadura militar pelos próximos 21 anos.

“O verdadeiro cinema novo brasileiro será apresentado agora, pois o que existe por aí sob essa rotulação é um cinema alienado de novos diretores, uma cópia dos europeus”, declarou Anselmo à revista Visão (4 de dezembro de 1964), numa reportagem feita enquanto rodava sua nova produção, na Fazenda Cachoeira, na Estrada de Itu, município de Jundiaí. Disse ainda que almejava “fazer um cinema novo com problemas nossos, nossa gente, como é o caso do tema de Vereda da Salvação”.

Tratava-se da versão cinematográfica da tragédia homônima, escrita por Jorge Andrade e dirigida pelo igualmente renomado Antunes Filho, no Teatro Brasileiro de Comédias, em 1964. A peça baseava-se num fato real: tomados de um fervor messiânico, moradores da comunidade rural de Catulé, em Malacacheta, Minas Gerais, sacrificaram quatro crianças e terminaram mortos pela polícia, a mando do fazendeiro para quem trabalhavam.

“Em matéria de arte, Vereda é, indiscutivelmente, a melhor película que dirigi”, diria no depoimento que originou a biografia Adeus Cinema (1993), de Oséas Singh Jr. Repetiria a idéia, com outras palavras em outros dois relatos biográficos: O Homem da Palma de Ouro (2004), de Luiz Carlos Merten – “Insisto, vou insistir sempre, que Vereda da Salvação é meu melhor filme, digam o que disserem os que forem contra ele” – e Anselmo Duarte (2005), de Cristina Magalhães – “Vereda se afinava com as propostas do cinema novo. Tecnicamente, rompeu com todos os enquadramentos e planos tradicionais. Intelectualmente, mostrou ao mundo a violência contra o camponês brasileiro e o misticismo exagerado de nosso povo. Se houvesse imparcialidade (mas não acredito nisso), seria o filme protótipo do cinema novo.”

Pela temática social e pelos nomes envolvidos, depreende-se que o cineasta estava em busca da respeitabilidade junto a critica brasileira que não havia conquistado com O Pagador de Promessas – um equívoco, visto que o sucesso de bilheteria de Absolutamente Certo! (1957) e os prêmios internacionais de O Pagador falavam por si. Jorge Andrade acompanhava a montagem de Vereda, e exigia que todas as falas que havia escrito permanecessem na película – ao que parece, o dramaturgo tinha esse direito assegurado por contrato. O resultado é excessivamente dialogado, com toda a ação concentrada num único espaço.

Em sua maioria, os atores vieram do espetáculo teatral, encabeçado por Raul Cortez e Stênio Garcia – este, alçado ao posto de assistente de direção e preparador de elenco na versão para o cinema. A discrepância entre o desempenho dos moradores da zona rural recrutados como coadjuvantes e a dos intérpretes oriundos dos palcos salta aos olhos. Enquanto os primeiros não atuam, Stênio e seus colegas de ribalta beiram a caricatura. Na pele de Joaquim, que se torna o líder religioso da comunidade, Cortez está particularmente irritante. Sua ojeriza ao pecado, a obsessão pela mãe, o homossexualismo reprimido, a crença de que é Cristo reencarnado, tudo soa artificial.

Os acertos no elenco ficam por conta de dois intérpretes que não participaram da montagem teatral: Lélia Abramo como Dolor, a mãe do personagem de Raul Cortez; e José Parisi no papel de Manuel, o líder que se opõe ao fervor messiânico de Joaquim. Célebre por interpretar o herói Falcão Negro na TV Tupi e em geral tido como canastrão, Parisi ganhou o Prêmio Cidade de São Paulo de melhor ator por seu desempenho no filme aqui tratado.

Diante de tantas “amarras teatrais”, Anselmo fez o que pode para deixar a fita mais “cinematográfica”. Os longos planos-sequências, com a câmera a girar em torno dos atores enquanto eles dialogam, sem os tradicionais planos e contraplanos, demonstram o domínio que o cineasta tinha de sua arte. Também merecem aplausos o trabalho do diretor de fotografia e cameraman argentino Ricardo Aronovich e a trilha do maestro Diogo Pacheco, com belíssimos solos de viola a cargo de A.C. Barbosa Lima. Mas tais predicados não bastam e, sob o peso do ranço teatral, Vereda da Salvação afunda feito um tijolo lançado à água.

Uma comissão do Ministério das Relações Exteriores vetou a ida do filme a Cannes, mas Anselmo conseguiu exibi-lo no Festival de Berlim. Lá, segundo o próprio cineasta, o crítico brasileiro Ely Azeredo teria feito campanha a favor de Alphaville, de Jean-Luc Godard, que acabou levando o Urso de Ouro. No Jornal do Brasil de 23 de julho de 1965, contudo, Azeredo publicou uma análise bastante lúcida e coerente sobre as razões que levaram a película a sair sem prêmios daquele certame:

“Enquanto penso no enigma, toca-me a memória o que ouvi de um europeu que conhece intimamente o Brasil e acompanha com interesse a trajetória dos filmes brasileiros pela retina dos festivais internacionais. Acha esse intelectual, estudioso imparcial das diversas categorias de impacto do espetáculo cinematográfico, que o cinema brasileiro tem impressionado os europeus pela ênfase no escândalo (no sentido mais amplo da palavra) e no exotismo (isto é, na qualidade de fuga ao que é habitual para determinada ótica). (…) No caso de Vereda da Salvação, a perplexidade chega muito antes da solução e se instala no espírito do espectador como um fator de paralisia do impulso de participação. Algo de essencial não funciona no processo de choque dirigido por Anselmo Duarte a cavaleiro no texto de Jorge Andrade. Por volta da metade da projeção, a platéia do Festival já se mostrava incrédula e algo fria ante o que lhe propunham. Ignorado o ponto de saturação da violência, o escândalo deixou de funcionar como arma de aliciamento e o dado verídico passou a ser visto como imagem superficialmente escandalosa.”

Quando do lançamento comercial de Vereda no Brasil, crítica e público lhe deram as costas. Infelizmente, ao se rever a obra hoje, quase 45 anos após a sua estréia, é difícil não concordar com a avaliação de Azeredo. Para o diretor, a receptividade negativa se devia à campanha contra ele em curso desde a Palma de Ouro atribuída a O Pagador de Promessas. Estaria o cineasta, àquela altura, com mania de perseguição? Talvez. Motivos para isso não faltavam. Seja como for, causa estranheza o fato de Azeredo omitir nesse artigo uma informação nada desprezível: a de que ele próprio havia integrado o júri daquela edição do Festival de Berlim da qual Vereda da Salvação havia saído sem prêmio algum.