O Pagador de Promessas

Especial Anselmo Duarte

O Pagador de Promessas
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1962.

Por Gabriel Carneiro

O Pagador de Promessas é um filme sobre opostos. É, talvez, isso que demonstre a grandeza do personagem Zé do Burro. O protagonista do longa-metragem de Anselmo Duarte carrega em si características que definem o filme. Não é contraditório, tem sua lógica própria, mas o oposto não está nele, e sim na forma como o vêem. O Pagador de Promessas discute a imagem; a imagem que se forma perante a sociedade.

Zé do Burro fez uma promessa a Yansan, Santa Bárbara para os católicos, em que, se seu burro vivesse, ele carregaria uma cruz do tamanho da de Cristo, de sua roça até a igreja da santa, em Salvador, nas costas. Chega à igreja e não consegue entrar lá, porque o sacerdote não deixa. Há Zé do Burro, o homem com uma fé cega, temente a Deus, que acredita na bondade do ser humano, e adora seu animal, seu grande companheiro. E há o padre, que é, quem diria, o vilão da história. O padre não quer deixar Zé entrar porque fez uma promessa a uma divindade do candomblé. Para ele, candomblé é igual a satanismo. O padre vê em Zé um discípulo do capeta, ainda mais quando se recusa a deixar a promessa feita no terreiro para buscar o perdão do único e verdadeiro Deus – é o que diz a Igreja Católica, pelo menos.

O sacerdote, curiosamente, é quem enxerga a maldade no ser humano. Zé, em sua inocência ou ignorância, acredita na existência de Deus, sua religião está lá, devoto aos santos. Pouco lhe importa se é Santa Bárbara ou se é Yansan – nomes apenas -, lhe importa a divindade que representam. Quer cumprir a promessa, porque teme as conseqüências. O padre não quer saber de dramas pessoais. Há outra questão também. O sacerdote não admite que Zé fale que pretendia carregar uma cruz do tamanho da de Cristo, pois, na sua cabeça maligna, Zé quer imitar Cristo, igualar-se a ele. É aí que vemos porque a religião está tão afastada do imaginário popular – muito presente ainda, mas não como antes -, o padre segue o dogma, não há poder de argumentação e não há erro. Ele olha para Zé do Burro e diz ‘você segue o capeta’ e é isso, tudo porque fez a promessa no terreiro. Quando começa a ter agitação social e as pessoas começam a acompanhar Zé de perto, a Igreja sente a necessidade de intervir, mas nunca volta atrás, tenta apenas remendar. Vemos como a política e a religião são próximas. Primeiro, a objeção do padre, depois a tentativa de negociação da Igreja.

Não é à toa que O Pagador de Promessas foi tão popular em sua época. Ele discute temas pautas, pré-golpe militar. É a oposição do novo com o velho, o ultrapassado. Não há mais lugar para uma igreja que não se modernize. Foi popular, fez púbico, e foi bem de crítica, ganhou a Palma de Ouro em Cannes, até que merecidamente. A birra de Glauber Rocha e do Cinema Novo talvez esteja aí. Anselmo conseguiu falar de seu contexto de transformações e conquistar o público, com uma história bem contada, com um drama identificável, que não fosse panfletário. Não precisou inovar em sua estética para isso.

Há também, no filme, a questão político-social. Parte de sua promessa era dar metade de seu sítio para os lavradores pobres. Reforma agrária, mais um tema quente. Zé não sabe o que é isso e não lhe faz diferença, mas defende que cada tenha sua terra. Pronto. Agora, além de satanista, é comunista. Pelo menos é como a mídia passa a pintá-lo. Porque, claro, existe sempre a mídia abutre e sensacionalista, que quer vender a qualquer custo, em cima do drama alheio. Pessoas começam a se aglomerar.

Vemos a igreja e o governo de um lado, os que defendem os bons costumes e a integridade do país, e do outro lado, a população. Aí já não importa mais mesmo quem é Zé do Burro; tornou-se uma alegoria. Ele é o mártir que uns queriam, e o bode expiatório que outros buscavam. Ele é a síntese da própria política. A imagem é o que parece importar nesse mundo novo, cosmopolita – seja a da prostituta embelezada que não admite que seu cafetão tenha outra, seja a da esposa que trai para ver se o marido se importa com maneira como são vistos. O longa é atual até hoje por conta disso. Zé do Burro passa a ter um papel a cumprir, que designaram a ele. Ao fim, cumprirá o papel que lhe deram, mesmo contra sua vontade. Ele é a reflexão dos opostos alheios.

O Pagador de Promessas é menos um filme sobre como as pessoas são, e mais sobre como os outros querem que elas sejam.