As Meninas, de Emiliano Ribeiro

Por Filipe Chamy

 

As meninas
Direção: Emiliano Ribeiro
Brasil, 1995.

 

François Truffaut tinha o seguinte princípio: em adaptações literárias para o cinema, deve-se evitar filmar versões de livros célebres, para não aproveitar oportunistamente a fama do livro; o ideal seria adaptar obras pouco conhecidas, e justamente procurar com o filme trazer um pouco de notoriedade ao texto e a seu autor original. 

As meninas é, todos sabem, um livro célebre. Discutivelmente o romance mais famoso de Lygia Fagundes Telles, e uma obra que não precisa de qualquer holofote a mais em sua consagrada reputação. 

Então Emiliano Ribeiro foi oportunista? Não exatamente. Aliás, é difícil afirmar isso. Porque As meninas é um romance intransponível a outra linguagem que não a da literatura. Ao diretor resta um papel inglório desde a concepção do projeto: conformar-se com uma sombra sempre pairando sobre seu trabalho, ou seja: quem vê o filme, quer o livro, e virtualmente todo o debate versará sobre essa problemática. 

Já discuti anteriormente a questão da adaptação literária no cinema, e de tudo isso é preciso compreender que certos fenômenos condicionam determinadas produções; o filme baseado em um romance tão discutido como As meninas já é pensado inconscientemente como um “complemento”, espécie de homenagem, curiosidade. Não se trata aqui de embarcar em considerações superficiais como: “é evidente que perder-se-á muito em um filme de cem minutos que quer abarcar um romance de quase trezentas páginas”. Porém é mister compreender entender que As meninas só funciona como ilustração para quem leu o livro. Obviamente, é um vício gravíssimo do filme de Emiliano Ribeiro. Porque toda a força de Lorena, Lia e Ana Clara só a escritora conseguiu descrever, o cineasta falha a toda tentativa de desenvolvê-la. E aí apela para uma adaptação sem sutileza: a personagens ausentes (só mencionados) na narrativa, ele dá corpo e forma, voz, aparência; vozes interiores e monólogos metalinguísticos, ele os transforma em diálogos; aos momentos sem explicação (porque nem tudo precisa de explicação) ele cria todo um aparato artificial para tornar claro tudo que houve. Ele enfeita demais as coisas e no final fica aquela desagradável impressão da caixa de presente mais rebuscada que o próprio presente. 

Não discuto aqui a estupidíssima separação entre “forma” e “conteúdo”, e muito menos “fidelidade” ao romance. Mas As meninas (o filme) se vangloria de ser um apêndice, desimportante. Toda a relevância se esvai em conflitos amenizados por concessões desnecessárias, exposições fúteis, uma falta de liberdade que não é bem vista na literatura mas que no cinema é tratada com negligente condescendência. 

Olhando en passant, As meninas cinematográfico não tem defeitos tão absurdos de estrutura; é um filme normal, banal. E nisso está o problema. Não há muita intensidade nas situações pintadas com rapidez questionável, não se aprofunda praticamente nada e fica-se por isso mesmo. Mas era preciso perceber que uma narrativa tripartida — e eu me refiro ao filme — demanda mais cuidado porque é fácil se perder com mais de um foco. E então o diretor mexe com recursos como constantes flashbacks e julga estar ligando assim pontos de fragmentação, mas em verdade só torna moroso o encaminhamento da trama, planificando todos os tortos e tornando assépticas as violências das personagens, desconsiderando suas contradições. No desejo de escapar ao literário e ao conceitual, aposta-se na afetação teatral e no esquemático. 

Emiliano Ribeiro morreu há pouco, mas as três jovens do pensionato de freiras (as meninas) já são eternas. Este filme e seu realizador não podem se gabar de ter contribuído para isso, mas, de qualquer modo, valeu a tentativa.

Expediente

EDITOR-CHEFE: Adilson Marcelino

CONSELHO EDITORIAL: Adilson Marcelino, Andrea Ormond, Gabriel Carneiro, Matheus Trunk e Vlademir Lazo Correa

REDATORES: Adilson Marcelino, Andrea Ormond, Diniz Gonçalves Júnior, Filipe Chamy, Gabriel Carneiro, Marcelo Carrard, Matheus Trunk, Sergio Andrade, Vlademir Lazo Correa e William Alves

REDATORES CONVIDADOS: Ailton Monteiro, Alejandro Sainz de Vicuña, Antonio Leão da Silva Neto, Daniel Salomão Roque, Leo Pyrata

CONTATO: revistazingu@gmail.com

Adilson Marcelino tem paixão pelo cinema nacional em geral e acredita piamente na máxima atribuída a Paulo Emílio Salles Gomes, de que o pior filme brasileiro nos diz mais que o melhor estrangeiro. Chamado por um grupo de jornalistas como o Super Adilson do Cinema Brasileiro, é graduado em Letras e em Jornalismo. Trabalha com cinema desde 1991: foi bilheteiro, gerente, assessor de imprensa, programador, redator e apresentador de programa de rádio, pesquisador, editor do site Mulheres do Cinema Brasileiro – premiado com o troféu Quepe do Comodoro, outorgado pelo Carlão Reichenbach -, e do blog Insensatez. É o atual Editor-Chefe da Zingu!

Andrea Ormond é formada em Letras e Direito pela PUC-Rio, escritora, pesquisadora e crítica de cinema. Mantém desde 2005 o blog Estranho Encontro, exclusivamente sobre cinema brasileiro. Colaboradora nas revistas Zingu!, Rolling Stone, Filme Cultura, Cinética e Freakium.

Diniz Gonçalves Júnior é paulistano e poeta. Tem trabalhos publicados na Cult, no Suplemento Literário de Minas Gerais, naArtéria, na Nóisgrande, na Sígnica, em O Casulo, na Zunái, na Germina, na Paradoxo, no Mnemocine, no Jornal de Poesia, na Freakpedia, e no Weblivros. Autor do livro Decalques (2008).

Filipe Chamy é geralmente descrito pelas pessoas que convivem com ele como sendo um idiota; mas é muito mais do que simplesmente isso. Fundamentalmente, é um apreciador de coisas belas, mesmo quando elas são feias. Groucho-marxista convicto, nunca fala sério — mesmo que pensem o contrário —, e tem ojeriza a autoridades (e alergia a poderosos). Tenta viver a filosofia “Hakuna Matata”, mas acaba se preocupando mais do que deveria. É escritor frustrado, músico falido e apaixonado consumidor de arte.

Gabriel Carneiro é um pretenso jornalista e crítico de cinema, mais pretenso ainda pesquisador. Formado em Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, o que gosta mesmo é de assistir filmes e ponderar sobre eles. Como iniciação científica, pesquisou a filmografia de Guilherme de Almeida Prado. Já escreveu no portal Cinema com Rapadura, e manteve por três anos e meio o blog Os Intocáveis. Rascunhou em alguns outros lugares. Atualmente, também escreve no Cinequanon e na Revista de CINEMA. Adora resmungar, e adora as feminices das mulheres que o rodeiam – é fato, a falta da simples presença feminina o deixa deprimido. A cada dia sua admiração por filmes de baixo orçamento aumenta – tanto que fez um TCC sobre a ficção científica de 1950-64 e planeja fazer um filme de terror. Foi editor-chefe da Zingu! entre maio de 2009 e dezembro de 2010. Atualmente, faz parte do Conselho Editorial da revista.

Marcelo Carrard é jornalista e crítico de cinema. Autor da tese de mestrado: O Cozinheiro, O Ladrão, Sua mulher e o Amante – Peter Greenaway e Os Caminhos da Fábula Neobarroca, colaborou no livro O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 Cineastas dos Anos 90, organizado pela pesquisadora Lúcia Nagib. Nesse livro, foi o responsável pelas entrevistas com os diretores José Joffily, Silvio Back e Neville de Almeida. Doutorado em cinema pela Unicamp. Grande conhecedor de cinema oriental, europeu e mesmo brasileiro, ministra cursos e workshops. Manteve o blog Mondo Paura, premiado no troféu Quepe do Comodoro. Carrard é também crítico do site Boca do Inferno, o maior em português dedicado ao Cinema Fantástico. Muito sincero e honesto, o que lhe causa grandes problemas frente os pseudointelectuais de esquerda que pensam que escrevem na “Cahiers du Cinema”. Assina a coluna Cinema Extremo, dedicado a filmes feitos fora da linguagem comum.

Matheus Trunk é jornalista formado pela Universidade Metodista de São Paulo. Foi editor-chefe da Zingu! entre outubro de 2006 e abril de 2009. Trabalhou na revista Transporte Mundial, no jornal Nippo-Brasil e no jornal Metro ABC. Atualmente é assessor de imprensa. Fanático por cinema brasileiro, música popular e pela Sociedade Esportiva Palmeiras, é editor do blog Violão, Sardinha e Pão.

Sergio Andrade é bibliotecário e cinéfilo dos mais atuantes. É fã de cinema extremo, mas também de grandes diretores. Em matéria de cinema brasileiro também é grande entendido, sendo fã de carteirinha do saudoso crítico Rubem Biáfora. Mantém uma relação de amor com a Cinemateca Brasileira, por ter trabalhado lá nos arquivos da entidade. Mantém os blogs Kinocrazy e Indicação do Biáfora.

Vlademir Lazo Correa é gaúcho de nascimento e tem como única qualidade inquestionável nessa vida o fato de ser torcedor fanático do Sport Club Internacional, de Porto Alegre. Escritor sem obra e atleta cujo único esporte é o jogo de xadrez, é apaixonado por antiguidades das mais diversas, dedicando-se a colecionar discos de vinil que ninguém mais quer e livros velhos de sebos empoeirados que quase ninguém lê. Desde que se conhece por gente aprecia o cinema em suas mais diferentes formas, vertentes e direções ao ponto de estar se convertendo em um museu de imagens e só prestar nesse mundo para assistir filmes e, ocasionalmente, escrever sobre eles. Foi colunista do site Armadilha Poética e mantém (só não sabe até quando) o blog O Olhar Implícito.

William Alves, 24 anos, é belorizontino e eterno postulante a jornalista, estudante de Comunicação Social na capital mineira. Ele acredita em um tipo de crítica cinematográfica mais simples e objetiva, largando de lado todas as citações desnecessárias e a cânones literários. Queria ter visto os Stones em 68 e pegado a Ava Gardner em 46. É fã de westerns, futebol inglês e da Rockstar Games. Tem um blog que ninguém lê, o Lazarus Threw the Party. Aprecia especialmente o cinema marginalizado de Sganzerla e Bressane, embora não deixe de olhar com carinho a filmografia do Nelson Pereira dos Santos. Já largou uma porção de maus hábitos, mas o Marlboro vermelho continua.

O Remake 171 de Nueve Reinas

Por Alejandro Sainz de Vicuña 

  

Resolvi ver há pouco tempo o filme do diretor Gregory Jacobs, Criminal, lançado em 2004. No Brasil, foi chamado de 171. É um decalque do filme argentino Nueve Reinas, do diretor Fabián Bielinsky. O argentino você não encontra em nenhuma locadora daqui do Brasil. Já 171, você encontra em qualquer uma, até mesmo na Blockbuster

Assim sendo, pedi o 171 pela internet e o motoboy da Blockbuster entregou aqui em casa. Coloquei o DVD pra rodar com mente e coração abertos. Quem sabe um bom filme com transposições culturais engraçadas, novos golpes e maracutaias, boas atuações, talvez diferentes, dando um novo tempero ao filme… Quem sabe um filme que tenha usado outro grande filme de trampolim para um salto mais ousado ou com outras perspectivas.  

Totalmente doentios, mas ainda simpáticos: mais uma superprodução da Guinea Pig.

Que bom que você ainda não parou de ler este artigo! É claro que eu coloquei 171 pra rodar com o sangue fervendo de excitação do mais profundo e pervertido sadismo. Foi como se eu tivesse colocado um filme da Guinea Pig ou um disco digital para ser imolado em meu DVD player. Não queria ver a versão L.A. judaico-chicana de Nueve Reinas. Eu queria ver um linchamento cinematográfico, um banho de sangue. Vi o filme predisposto a achá-lo um lixo caso não ouvisse da boca de Richard (John C. Reilly) pelo menos um “Que pelotudo soy, che!” e mais uma boa meia dúzia de sessenta “boludos”. Sei que isso não é muito digno da minha parte e põe por terra a legitimidade do que quer que venha a ser escrito daqui por diante. 

Mas é claro que 171 se ferrou muito além dessa mera ausência vocabular. Antes de mais nada, uma paralelismo dos personagens original/remake para você se orientar: 

Nueve Reinas / 171
Marcos (Ricardo Darín) = Richard (John C. Reilly)
Juan (Gastón Pauls) = Rodrigo/Brian (Diego Luna)
Valeria (Leticia Brédice) = Valerie (Maggie Gyllenhaal)
Cárdenas (Gabriel Molinelli) = Não há Cárdenas! 

Se você não viu Nueve Reinas, pare de ler isso aqui e vá vê-lo. Se você não viu 171, continue lendo. Se você já viu 171 e não viu Nueve Reinas, eu nem saberia o que te prescrever. 

Aos filmes. Vamos do começo. A primeira cena é idêntica. Rodrigo (Diego Luna) e Juan (Gastón Pauls), cada um em seu filme, fumam. Apagam o cigarro e entram. Onde? Juan entra para aplicar seu golpe do troco em um posto de conveniência em Buenos Aires, lugar quase vazio, só com uma funcionária atrás de um balcão e saída próxima. Rodrigo entra em um cassino de Los Angeles, lugar cheio de gente, câmeras monitorando tudo, seguranças que já esperam lidar com burladores e saída distante… Genial. Muito malandro. Muito 171. 

Pra piorar, parece que eles não entenderam bem o truque do troco pra 100. Rodrigo se dá bem da primeira vez e da segunda a garçonete pergunta irritada: “O que você está fazendo?!” No posto de conveniência, Juan é pego porque tem o olho grande e tenta reaplicar o golpe no mesmo lugar, com a troca de turno das atendentes. Só que a atendente anterior reaparece e percebe o que está acontecendo. Em 171, a segunda garçonete simplesmente percebe a intenção (porque ela, sim, é muito malandra!) e já sai acusando Rodrigo de uma trapaça que pode ser perfeitamente tomada por um engano. Ela não tá nem aí e chama os seguranças. E olha que ela nem sabe da primeira garçonete. 

Na sequência, dirigindo, Richard (John C. Reilly), após salvar Rodrigo, pergunta o nome do garoto e não fica satisfeito com a resposta. Decide, então, esconder aquele nome hispânico comprometedor com um britânico Brian. Na mesma conversa, a diferença étnico-social aparece mais uma vez, quando Rodrigo explica que na sua vizinhança Richard estaria morto com o golpe que acabara de lhe ensinar. É por isso que não trabalhamos lá, diz Richard. Pouco depois, na cena do elevador com “defeito”, uma senhora granfina de Beverly Hills

Venga para Beverly Hills, compadre!

 prefere entregar sua bolsa a Rodrigo, um garoto mexicano, desmazelado para os padrões do lugar, que está do lado de fora do elevador, em vez de deixar a gentileza por conta de  Richard, com seu terno caro, e ao seu lado no elevador parado. E pra não parar por aí, Richard ainda constata, ao fim da proeza, que Rodrigo tem cara de bom moço. Sim, em Beverly Hills é assim: os garotos hispânicos são os que inspiram mais ternura e confiança nos corações multimilionários daquela gente branca. Venga para Beverly Hills, compadre! 

Nos momentos finais de 171, quando Richard e Rodrigo vão ao banco descontar o cheque, Richard pede que o garoto arrume um lugar para esperá-lo. Por quê? Porque eu pareço um businessman e você parece a porra de um cholo

(Me permitam uma digressão: aquela senhora granfina de Beverly Hills, do elevador parado, me é familiar. Já vi um filme muito bom com ela, ainda jovem, num papel bem diferente. Acho que era uma prostituta… Talvez uma mulher das ruas que andava com um bando de vagabundos… )

Richard é grosso, azedo, ranzinza e sem charme. Também pra quê? Ele tem um terno melhor que o de Marcos (Ricardo Darín), um sedan de 60 mil dólares, um distintivo policial e até algemas, além de um celular (ok, em 2004, Marcos também não estaria fazendo ligações de orelhões ou telefones de bar ou hotel, nem faria piada num momento tenso e crucial, perguntando a um senhor na escuta em um celular se o jogo está empatado). Ah! Quase me esqueço do sócio judeu! Ora, o sócio de Darín era turco (ao menos no apelido), seu distintivo é uma pistola de plástico que dispara flechas com ventosas, seu cartão de crédito não é uma navalha (a violência é um recurso para quem não tem talento) e o seu meio de transporte preferido é a pé ou, quando muito longe, cortes na película. “Vem comigo.”  

Não sabemos se Marcos anda de sedan, remis, ônibus, trem ou tié-fighter

Corte. E lá está ele com seu infiel escudeiro na frente do hotel da irmã, em seu escritório-bar ou pronto para bater na porta de uma senhorinha a ser passada pra trás. Não sabemos se Marcos anda de sedan, remis, ônibus, trem ou tie-fighter

Marcos não é um mero escroque. É um escroque com consciência, com justificativas para ser o que é. Sua canalhice é o pragmatismo financeiro, money talks, filosofia que defende com refinada retórica, exímia oratória e, sobretudo, carisma e senso de humor. É um professor, um teórico e um praticante de seu ideal, a filhadaputice. Para Marcos todo mundo tem um preço. Não faltam putos, o que falta são financiadores. E Marcos exemplifica com toalhas de papel do banheiro, como se fossem as notas mais altas de sua filosofia de vida. Aponta incoerências e falta de lógica em comportamentos que ele considera pseudo-éticos. A própria ética é uma fraqueza, um obstáculo, com seus remorsos, solidariedade e restrições ao campo de ação do bom filhodaputa. Marcos é empírico. Narra e expõe a seu aluno, em tempo real, as ruas com seus “descuidistas, abanicaderos, gallos ciegos, culateros, biromistas, mecheras, garfios, pungas, boqueteros, escruchantes, arrebatadores, mostaceros, lanzas, bagalleros, pesqueros…” especialidades devidamente classificadas e nomeadas pelo mestre. “Bueno, espero que algun día sea tan bueno como usted, maestro!” 

(Por falar em delinquentes, aquela senhora granfina de Beverly Hills, no elevador parado… Ela fez um filme com arruaceiros, acho. Um filme de gangues ou de gangsters… Ela ficava vadiando pelas ruas… Não! Ela fugia pelas ruas. Tinha o batom meio borrado, talvez fosse puta…)

Mas voltemos a171 e falemos de outra mulher. A irmã de Richard, Valerie, é vivida por Maggie Gyllenhaal. Maggie é lânguida, fofa e tem o olhar de coitado do gato de botas de  Shrek full time. Realmente inspira ternura e piedade. Dá vontade de mandá-la para um spa e vê-la livre do seu trabalho, daquela relação estafante e passivo-agressiva com o irmão frígido e malcriado. Mas não antes de lhe dar um abraço de amparo. Me nego a falar mal de Maggie, ainda que indiretamente. O seu olhar me impede…  

Maggie Gyllenhaal irresistível II

Por outro lado, a Valeria de Leticia Brédice é tensa, mas firme e forte. Não inspira pena. Pelo contrário. A sua tensão parece justamente resultado da represa de uma mulher que está a ponto de sentar a mão no canalha do irmão (Marcos), de chamar a polícia, de fazer uma loucura, mas que só pode deixar escapar sua acidez raivosa verbal por entre um sorriso amarelo fulminante de atendente. E Marcos se aproveita da situação da irmã, que caminha sobre o gelo fino do saguão do hotel onde trabalha, para provocá-la ainda mais. Ela quase explode. “Este es mi trabajo y me rompo el culo 12 horas por día para conservarlo.” “No literalmente, espero.”, diz Marcos. A cara da irmã engolindo o sapo é impagável. Ainda bem que Richard não disse uma grosseria dessas para sua irmã. Imagine Maggie ouvindo uma coisa dessas… 

A Buenos Aires da virada do milênio também tem uma importância crucial em Nueve Reinas. O filme é uma profecia lançada no início da recessão econômica, no retorno de Domingo Cavallo ao Ministério da Economia da Argentina, na iminência da catástrofe financeira do país. Aquela iminência tão iminente que antes de se estatelar no fundo do abismo só dá tempo de dizer: “Fudeu!” O filme é uma metáfora da situação argentina em forma de thriller!  

Um país onde a ilusão do poder aquisitivo, o ouro dos tolos em paridade com o dólar, esconde a corrupção, as falcatruas e as grandes oportunidades de enriquecimento ilícito dos bastidores políticos e empresariais. Da mesma forma, numa escala míserocósmica, lá estão, invisíveis nas ruas, uma infinidade de vigaristas esperando a sua oportunidade de dinheiro “fácil”, de oferecer seu ouro dos tolos, lá está a parte perigosa dos 25% de desempregados argentinos. O rico vocabulário do microcosmo das ruas seguramente terá seus correspondentes no macrocosmo palaciano: superfaturantes, privatizadores, corraliteros, monetaristas, paraísofiscalistas, mevoycomtodoaleuropistas, moratoriaderos, e por aí vai… 

Nada disso tem peso em 171. O pato a ser depenado pelos malandros é um empresário europeu que precisa sair dos Estados Unidos em um dia, ou terá todos os seus bens taxados. Uma questão fiscal e jurídica. Direito tributário. Em Nueve Reinas, todos nós sabemos muito bem de que tipo de pessoa se trata o suposto alvo do golpe. Na presença de Juan, o velho falsificador Sandler, um artista, apresenta Esteban Gandolfo Vidal a Marcos com um recorte de jornal. Darín lê telegraficamente: “Dono de um holding; saída às pressas do país; investigação parlamentar; deportação para a Venezuela… Quinhentos milhões de dólares?” Um golpista de grande magnitude, que está muito acima de todos eles ali. Tão acima que o golpe da vida deles é apenas o preço de mais uma peça do seu luxuoso hobby. E o que importa que Esteban seja uma armação, um personagem? Ele é crível, real, extremamente real e corriqueiro. Tão real que até um especialista em desconfiar dos outros engoliu essa. 

A corrupção e o desastre econômico aparecem vibrando nas entrelinhas da narrativa desde o início de Nueve Reinas. Do chocolate “Crunchy: elaborado en Grecia” seguido da constatação profética: “Este país se va a la mierda”, até chegar ao final, à merda de fato… Um banco argentino quebrado. 

Os argentinos estão parados na rua estupefatos ou putos da vida, como se olhassem ou vivessem um acidente de trânsito colossal. Todos se amontoam e se acotovelam na porta desse tal banco argentino quebrado. Os diretores se mandaram pra Europa com toda a grana. Começa a fuga de capitais… 

Ali está o nosso peixinho de aquário, Marcos, com o golpe da sua vida entre os dedos, pronto para descontá-lo no banco, mas acaba de ser lançado no oceano. Está desnorteado. Marcos abre espaço na multidão até a porta da agência bancária e grita pela fresta por Cárdenas, um conhecido que ele, pra variar, algum dia passou pra trás. E aí vem Gabriel Molinelli, na pele do bancário Cárdenas. Ele só precisa dessa pontinha com Darín para ser o ápice do filme. 

O que aconteceu? Os onze foram embora. Levaram tudo. Os caras do Banco Central já sabiam, mas só intervieram hoje. O cheque é verdadeiro? Verdadeiro ou falso, que diferença faz agora? Dá na mesma…  

"Esto era para cobrar?! Te los va a tener que meter em el culo, Marquitos!"

Enquanto 171 pune Richard com um enfadonho final “CADEIA NELE!”, no momento em que o picareta tentava descontar seu cheque numa sólida e respeitável agência bancária de L.A., Nueve Reinas pune Marcos com a gargalhada larga e contida do bancário Cárdenas. Uma risada pícara e catártica diante da desolação e do constrangimento do vigarista que caiu no conto-do-vigário. Puro deboche e loucura, já que todos ali não deixam de estar tão ferrados, desnorteados e impotentes quando Marcos, principalmente ele, funcionário de um banco falido. Mas a risada de escárnio de Cárdenas é absoluta e definitiva. Pelo resto da sua aparição no filme, não escutamos mais a voz de Marcos. São longos segundos de olhares desolados e impotência. Foi-se a eloqüência e agora é Juan que se vai. Marcos se entrega ao desespero e se atira contra a multidão, brandindo sua grande ilusão entre os dedos. Não é à toa que os argentinos chamam seus sonhos de ilusión

Por trás de punições e recompensas, heróis e vilões, está o pano de fundo de um país que começa a “irse a la mierda”, de pessoas que têm que lutar pela sobrevivência e para não perderem o que lhes resta, se é que resta. Mais que um pano de fundo, é a profundidade do filme. 

A sua versão hollywoodiana não tem essa dimensão. A impressão que fica é que os responsáveis por 171 (que inclui George Clooney na produção), antes de fracassarem como realizadores, fracassaram como espectadores de Nueve Reinas. A leitura do original é rasa e limítrofe, diria até desleixada. Os realizadores de 171 não souberam captar a importância para o roteiro de Nueve Reinas de uma série de detalhes como uma frase, uma ação, uma expressão facial, um comentário, um riso, um olhar, uma piada, uma entonação, um gesto… Não souberam transpô-los ou compensá-los e ainda acrescentaram detalhes inócuos ou que criaram pontas e falhas no roteiro replantado. É como se 171 se garantisse na verossimilhança de Nueve Reinas e se esquecesse de reconstruir a sua. Mas as lacunas vão muito além. 

No original, Juan tenta se lembrar ao longo do todo o filme de uma canção de Rita Pavone e só consegue na última fala, quando entra a música em questão com os créditos finais.

Deborah Van Valkenburgh como Mercy em Selvagens da Noite (The Warriors, 1979)

 Em  171, outra canção é mencionada uma única vez por Rodrigo, sem qualquer importância ou sentido. Fica ali, como uma ponta solta de cortes mal feitos, com a qual o espectador não vai fazer qualquer associação no final. O resultado é uma adaptação banal, capenga, sem brilho próprio e opaca demais para refletir o brilho de Nueve Reinas. Puro desleixo. É como se eles tivessem feito o filme em cima de uma resenha da Blockbuster. E por falar em Blockbuster, agora que eu acabei o artigo, já posso chamar o motoboy e me livrar disso. Ah! A senhora do elevador! Me lembrei!… 

  

Alejandro Sainz de Vicuña toca numa banda de rock and roll, é redator e filho de um porteño com uma mineira de Pirapora, nascido em Buenos Aires e criado no Rio de Janeiro.

Sinônimo de Cinema Popular

Dossiê José Miziara

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Por Adilson Marcelino
Foto: Laisa Beatris

Sinônimo de cinema popular de sucesso, José Miziara nasceu em Barretos em 1935, mas foi na Boca do Lixo, na capital, que se tornou um dos nomes mais conhecidos das telas. Cineasta, produtor, roteirista e ator, dirigiu 17 filmes, atuando em alguns deles e também nos de outros cineastas.

A primeira direção foi no episódio O Furo, do longa Ninguém Segura Essas Mulheres, em 1976, primeira e única produção da época do Estúdios Silvio Santos. Miziara assinou também o roteiro dos outros episódios dirigidos por Anselmo Duarte, Jece Valadão e Harry Zalkowistch.

Drama protagonizado por Jece Valadão e Nádia Lippi, em O Furo já estão alguns dos temas que marcarão a trajetória do cineasta: a prostituição e a dificuldade da realização do amor. Miziara parece gostar de temas quentes, como a citada prostituição, tanto feminina – O Furo e Mulheres do Cais quanto masculina – Os Rapazes da Difícil Vida Fácil -, homossexualidade – As Intimidades de Analu e Fernanda, e traumas psicológicos – Meus Homens, Meus Amores. Abordou também aqueles que estavam na moda do momento, como o swingEmbalos Alucinantes – A Troca de Casais.

Algumas vezes esses temas foram focalizados pelo viés dramático, noutras pela comédia, já que dirigiu vários filmes nos dois gêneros. Algumas vezes pesou a mão na construção de seus personagens, noutras os delineou com leveza, como nos bufões e gaiatos de Pecado Horizontal. Aliás, Pecado Horizontal é um de seus filmes mais amados por gerações que viram suas produções nos cinemas da época ou aguardavam com ansiedade as sessões das Salas Especiais das TVs – hoje substituídas pela Como Era Gostoso o Nosso Cinema, do Canal Brasil.

Ao lado de Pecado Horizontal estão dois grandes sucessos do cineasta, igualmente amados pelo público: o primeiro longa, O Bem Dotado – O Homem de Itu; e Embalos Alucinantes – A Troca de Casais. Os dois filmes foram protagonizados por Nuno Leal Maia, que esbanjou versatilidade, no primeiro como um matuto assediado por todas as beldades por causa do seu atributo sexual, e no segundo como o esperto e cafajeste que quer se dá bem no grand monde.

Como não poderia deixar de ser, o cinema de Miziara está repleto de musas, em uma lista para ninguém botar defeito: Nádia Lippi, Helena Ramos, Aldine Muller, Marlene França, Ana Maria Nascimento e Silva, Esmeralda Barros, Suely Aoki, Glória Cristal, Lola Brah, Sílvia Salgado, Rosemary, Arlete Montenegro, Novani Novakoski, Kate Lyra, Alvamar Taddei, Nidia de Paula, Wanda Stefânia, Selma Egrei, Elisabeth Hartmann, Márcia Maria, Matilde Mastrangi, Patricia Scalvi, Nádia Destro, Zilda Mayo, Marisa Sommer, Lisa Vieira, Shirley Benny, Rosamaria Pestana, Carmen Angélica, Sandra Midori, dentre outras.

Durante a fase explícita, dirigiu alguns filmes, encerrando sua carreira de cineasta em meados dos anos 1980 e privilegiando o trabalho na TV, onde bate ponto há 23 anos na Praça é Nossa, de Carlos Alberto de Nóbrega, no SBT.

Cinema Extremo

Por Marcelo Carrard

NEKROMANTIK 2
Direção Jorg Buttgereit.
Alemanha, 1991.

Em uma das primeiras edições da Zingu!, fiz um modesto texto sobre o filme NEKROMANTIK, de Jorg Buttgereit, observando sua crueza e seus extremos ao encenar um tema maldito de maneira gráfica: a Necrofilia. Oculto nas entrelinhas da literatura gótica, esse tema delicado permeia o Cinema de Horror desde seus primórdios, em filmes clássicos como NOSFERATU, de F W Murnau. O amor e o desejo entre vivos e mortos, a escatologia e o grotesco estão representados de diferentes maneiras nas artes plásticas, na literatura e no cinema. Dentro do ciclo de filmes de Gore Extremo, realizados na Alemanha dos anos 1980, um diretor se difere dos outros ao demonstrar fortes traços de autoria: Jorg Buttgereit.

A crueza de seu primeiro NEKROMANTIK deve-se muito à falta de recursos da produção, que tem como grandes méritos seus efeitos especiais, as enigmáticas sequências do coelho sendo escalpelado e a inversão dessa sequência  durante o brutal ato de autoflagelação. 

Das possíveis leituras sobre a parte final de NEKROMANTIK, podemos perceber algumas alegorias religiosas subvertidas ao extremo, como a ressurreição e o sacrifício/martírio que o protagonista realiza de maneira delirante. Já no segundo filme, temos uma radical inversão do ponto de vista, pois agora o desejo mórbido e a obsessão são guiados pelos atos de uma protagonista feminina. 

NEKROMANTIK 2 já é uma produção feita após a queda do Muro de Berlim, ao contrário do primeiro filme. Temos nessa questão da queda do muro uma possível conexão com o clássico POSSESSÃO, do mestre Andrzej Zulawski, em que a morte, o desejo mórbido e a loucura são trabalhados também de maneira alegórica. 

NEKROMANTIK 2 tem um roteiro muito mais elaborado que o primeiro,   além da produção ser melhor acabada, com boa fotografia e uma construção mais profunda das personagens. O grande conflito agora é o da protagonista feminina, que divide seu desejo entre um amante vivo, que lhe proporciona uma vida normal e regrada, e o corpo decomposto de seu amante morto, que lhe garante a realização de seu oculto desejo mórbido. Esse conflito é o principal alicerce do filme, que na opinião de muitos críticos e fãs do Cinema Extremo é bem superior ao primeiro filme, embora eu, particularmente, seja um grande fã da subversão hardcore do primeiro filme. 

As alegorias religiosas estão presentes nesse segundo filme em sequências perturbadoras como a do manuseio e mutilação do cadáver ao som estilizado de um tema musical sacro. A maneira como a protagonista consegue finalmente resolver o seu dilema amoroso, é, com certeza, o grande momento desse segundo filme, como se tudo que o espectador assistiu fosse apenas uma preparação para essa sequência específica, seguida de um epílogo perturbador e ambíguo, que nada deve aos melhores momentos de Fassbinder e suas releituras muito particulares do melodrama. A dicotomia vida/morte e suas reproduções imagéticas nos dois filmes reforçam ainda mais as influências dos Aktionists de Viena, que, décadas antes, fizeram experimentos teatrais e audiovisuais extremos, usando o corpo como suporte de performances que envolviam escatologia e mutilação. Embora seja um exercício complicado de tolerância, o ideal é assistir os dois NEKROMANTIK em seguida, algo complicado até para fãs tarimbados do Cinema Extremo, mas para os que conseguirem tal feito, a recompensa será a impressão inesquecível de uma obra devastadora que raras vezes o Cinema já ousou mostrar.

Filme-Farol

Osso, Amor e Papagaios

Por Sergio Andrade

O amigo Adilson Marcelino, agora na função de editor-chefe da Zingu!, me arrumou um belo problema ao me convidar para inaugurar essa nova coluna da revista.

Como escolher apenas um filme-farol brasileiro entre tantos que iluminaram nossa vida?

Depois de muito pensar, decidi escrever sobre algum filme que vi na infância e que ficou na memória afetiva. Como já escrevi aqui sobre Uma Pulga na Balança (no dossiê dedicado à Vera Cruz), o escolhido foi Osso, Amor e Papagaios.

Baseado num conto de Lima Barreto, A Nova Califórnia, o filme marcou a estreia na direção de Carlos Alberto de Souza Barros (Dois na Lona, Um Marido Contagiante) e César Memolo Jr. (depois produtor de O Predileto, As Filhas do Fogo,Ato de Violência etc.). O roteiro também ficou a cargo deles.

No começo lembra O Bem Amado, de Dias Gomes (que seria escrito depois): o prefeito da pequena Acanguera promove uma festa pelos 10 anos sem nenhuma morte na cidade. O cemitério está abandonado. Mas pouco antes do início da festa, chega notícia que o coveiro morreu. A partir daí a cidade passa a contar com mais de 70 óbitos em menos de um mês. A chegada de um sujeito estranho irá provocar desconfiança nos habitantes.

O que teria me encantado tanto nesse filme? Certamente o fato de os atores falarem nossa língua e as placas dos comércios estarem escritas em português, mas também a qualidade técnica (fotografia de Chick Fowle, música de Claudio Santoro, som de Ernest Hack). A sátira política com personagens típicos de cidades do interior: o prefeito populista em briga constante com o farmacêutico líder da oposição e fanático pela Revolução Francesa; o gordíssimo delegado que passa a maior parte do tempo empinando pipa com a garotada enquanto sua fogosa esposa o trai com o único policial da delegacia; o químico meio maluco que diz possuir a fórmula para transformar ossos em ouro; a filha do prefeito apaixonada pelo filho do farmacêutico; o intelectual da cidade soltando frases pomposas a todo instante; o dono do bar meio bêbado e sua esposa briguenta. Interpretados por um excelente grupo de atores com os quais só mais tarde eu iria me familiarizar: Jayme Costa, Modesto de Souza, Wilson Grey, Ruth de Souza, Renato Consorte, Maria Dilnah, Mario Alimari, etc.

Fábula sobre a ambição humana, Osso, Amor e Papagaios foi um dos filmes que abriu meus olhos para a existência do cinema brasileiro. Um filme-farol.

Nossa Canção

Germano Mathias


Por Matheus Trunk

Historicamente, a produção cultural da cidade de São Paulo sempre foi tratada pela intelectualidade brasileira como algo menor. No campo literário, autores como Marcos Rey, Henrique Matteucci e Lourenço Diaféria sempre foram subestimados pela classe universitária. No campo musical, existem diversos artistas que não ganharam o devido reconhecimento.

Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini são os compositores mais conhecidos e lembrados do samba de São Paulo. Nomes como Noite Ilustrada, Mauricy Moura e Jorge Costa sempre foram subestimados. O sambista Germano Mathias é outro artista que pertence a esse time.

O Marlon Brando do Pari fez muito sucesso no final dos anos 1950 e início dos 60. Inventivo, ele aprendeu a cantar nas rodas dos engraxates das praças Clóvis Bevilácqua, Sé e República. O primeiro contrato profissional de Germano, feito na Rádio Tupi de São Paulo, o considerava “cantor e executante de instrumentos exóticos”.

O escritor e pesquisador Caio Silveira Ramos é autor de Sambexplícito- as Vidas Desvairadas de Germano Mathias, (2009), biografia oficial do sambista. Ele considera o artista paulistano uma figura transgressora para os anos 50. “Em seu período inicial no Brasil, a televisão era muito séria, sisuda. O Germano era um artista diferente pra época pela personalidade dele. Ele chegava nos programas de TV e pulava na platéia, dava pirueta”, explica. A popularidade do Catedrático do Samba era tanta que ele acabou participando de dois longas-metragens no período.

Em 1959, Germano fez sua estreia no cinema na comédia Quem Roubou Meu Samba? de José Carlos Burle. Produção da Cinelândia Filmes, esta chanchada trata do polêmico tema dos direitos autorais. O filme é baseado numa peça do dramaturgo Silveira Sampaio e o elenco é encabeçado por Ankito, Maria Vidal, Aurélio Teixeira e Catalano. O cantor aparece em uma cena ao lado de Ankito e canta a canção Figurão, faixa do disco Em Continência do Samba.

No mesmo ano, Mathias participou da fita O Preço da Vitória, de Osvaldo Sampaio, um dos primeiros filmes nacionais a tratar do futebol. O argumento é sobre um jovem (o galã Maurício Morey) que sonha em ser um jogador bem sucedido e famoso. No entanto, ele encontrará uma série de dificuldades até se firmar na profissão. Germano Mathias participa de uma antológica cena ao lado do cantor Nerino Silva, em que reproduz uma roda de engraxates da Praça da Sé, região central de São Paulo. Na mesma cena, o sambista aparece cantando o sucesso Lata de Graxa. “Na verdade, O Preço da Vitória não é um grande filme. A película vale mais por ter a presença dos jogadores que tinham sido campeões mundiais na Suécia”, avalia Silveira Ramos.

Conhecido popularmente como Mandusca, Barra Funda, e Marlon Brando do Pari, Germano Mathias teve altos e baixos em sua carreira. “A grande influência dele foi o cantor Caco Velho. No entanto, ele é um artista bastante diferente do Caco. Na minha opinião, ele continua sendo um dos três grandes cantores brasileiros”, opina o cantor e médico Francisco José Bueno Aguiar.

Cantor do asfalto e do concreto de São Paulo, o Catedrático do Samba nem sempre foi bem aceito pela crítica musical. A maioria dos jornalistas cariocas julgou que Germano sempre teve um sotaque muito característico em suas músicas. O crítico José Ramos Tinhorão sempre considerou a canção Minha Nega na Janela preconceituosa. Já Tarik de Souza sempre foi um defensor do sambista. No livro 300 Discos Importantes da Música Brasileira, ele comenta sobre o artista: “Uma espécie de Moreira da Silva paulista, malandro das malocas, de camisa listrada, chapeuzinho enterrado, sapato branco, Germano foi boxeador e bom de pernada”.

Aos 76 anos, o Marlon Brando do Pari continua dando shows e gravando discos. Tive a oportunidade de conversar rapidamente com Germano no ano passado. Muito sério no início da conversa, ele me perguntou: “Mas afinal, você é realmente meu fã?”, eu respondi: “Sim”. Ele deu uma rápida risada e me respondeu: “Olha meu filho, eu não tenho culpa do seu mau gosto”.

O Que É Cinema Brasileiro?

Por Antonio Leão da Silva Neto

Alguém com certeza fez essa pergunta à Afonso Segreto em 1898, talvez no dia 19 de junho, ou talvez ainda a bordo do navio Brèsil, quando este acionava seu equipamento recém- adquirido na França dos irmãos Lumière para tomar imagens da Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro.

112 anos depois, essa pergunta ainda está no ar. Mas vejamos: o que é Cinema Brasileiro pra quem não vê filmes brasileiros há muitos anos? pra quem nunca viu?, pra quem critica sem saber?, pra quem achincalha sem conhecer?. Para esses, com certeza o cinema brasileiro não é nada, não vale nada e nunca será nada, haja visto que ouvimos até hoje, décadas depois, que o Cinema Brasileiro é só mulher pelada, sexo e sacanagem.

Pra essas pessoas e para todas aquelas que duvidam de sua própria capacidade, ou que aplaudem enlatados importados, permitindo a evasão de milhões de dólares que seguem mensalmente para as majors americanas eu digo: O Cinema Brasileiro é paixão, fé, capacidade, talento, adrenalina e obstinação. Mas hoje nos falta o principal: o reconhecimento do público. Produzimos filmes de excelente qualidade, que não fica nada a dever a nenhum cinema do mundo, mas quase ninguém os vê, pois eles percorrem os festivais, privilegiando uma pequena e seleta parte do público, depois vão esquentar as prateleiras das distribuidoras, aguardando uma janela, entre um filme e outro estrangeiro. E nesse quesito, os números não mentem.

Há algum tempo, aliás, pouco tempo atrás, três filmes estrangeiros dominavam 97% das 2200 salas brasileiras. Podemos e devemos mudar esse quadro através de uma forte ação governamental que possibilite que nossos filmes cheguem às telas, inclusive através de campanhas em todas as mídias, incentivando o brasileiro a ver filme brasileiro. Uma nova cultura deve ser fomentada.

Será que nosso passado não nos recomenda? Os primeiros passos com verdadeiros desbravadores como Segreto, Silvino Santos, Leal, Rossi, Cappelaro, Botelho, Bonfioli, etc; o pioneirismo da Cinédia de Adhemar Gonzaga dos anos 1930/40; a popularidade da Atlântida e o glamour da Vera-Cruz dos 50; o experimentalismo do cinema novo e do cinema da boca de São Paulo nos 60; a pornochanchada dos 70; e, finalmente, a retomada a partir dos 90? Seria correto e justo desmerecer o talento de Humberto Mauro? Carlos Manga?, Anselmo Duarte? Nelson Pereira dos Santos? José Mojica Marins? Carlos Diegues? Glauber Rocha? Walter Salles? Carlos Reichenbach? Walter Hugo Khouri? Fernando Meirelles? e tantos e tantos outros?

A aventura de se fazer cinema no Brasil requer muitas qualidades de quem o pretende, não é uma tarefa fácil nem para qualquer um.

A aventura de se fazer cinema no Brasil requer sacrifícios pessoais e financeiros. Muitos cineastas pagam dívidas de seus filmes por décadas e por vezes morrem sem ver a obra pronta, raramente enriquecem.

Então… há de se respeitar quem faz, quem realiza, quem tem a preocupação de mostrar a nossa realidade, nossa brasilidade nas telas e não nos impingir goela abaixo outras realidades que não nos dizem respeito.

Enfim, ao povo o que é do povo, cinema futebol e cachaça. Essa explosiva combinação nos leva a conclusão que, retornando à pergunta inicial, o cinema brasileiro hoje poderia ser representado por uma arvore frondosa e baixa, cheia de grandes galhos carregados de frutos doces e macios, à espera de alguém que por eles se interessem e os queiram degustar.

Antonio Leão da Silva Neto é pesquisador cinematográfico e autor dos livros Dicionário Astros e Estrelas do Cinema Brasileiro, Dicionário de Filmes Brasileiros- Longa-metragem, Dicionário de Filmes Brasileiros – Curta e Média-metragem, Ary Fernandes, sua Fascinante História, e Miguel Borges, um Lobisomem sai da Sombra.

Reflexos em Película

Referência nem sempre é reverência

Por Filipe Chamy

Com a cultura cinematográfica atual bastante voltada para a cinefilia, temos visto cada vez mais presentemente uma cultura de verdadeiros experts em filmes, sujeitos apaixonados, vidrados, obcecados com certas obras, diretores, intérpretes, técnicos. Se por um lado isso é muito positivo e demonstra de alguma maneira a importância que o cinema tem na vida dessas pessoas, o outro gume da faca é bem menos atraente.

A lembrança da cinefilia sempre faz pensar em Truffaut, Tarantino, Bogdanovich, Scorsese, o que seria um ponto a favor dessa situação. Mas há também gente que aproveita essa capa para se disfarçar e parir mediocridades a torto e a direito, tentando lucrar com isso e fugir da confissão de sua falta de importância, talento ou competência.

Desde que se começou a estudar mais seriamente o cinema, alguns filmes ou cineastas foram apontados como padrão de qualidade. À parte o discutível “dogma” gerado com essas supostas unanimidades, não há como não compreender a desonestidade de um projeto cuja essência é recriar algum pedaço dessas obras “incontestáveis”, amparando-se no sucesso dos outros para alcançar com isso suas próprias recompensas (quase sempre, financeiras). Quer dizer, o cinema deixando de ser uma paixão para virar um filão.

Esse almanaque de citações é tão desagradável como inútil, pois qual é a graça de uma comédia como Todo Mundo em Pânico, pautada na assunção que o espectador conheça de cor e salteado os filmes ali satirizados? A graça é supostamente essa, apenas: releiturar de maneira engraçadinha passagens ou diálogos famosos de filmes que de alguma maneira tocaram o público ou permaneceram no seu imaginário por um tempo suficiente para que compreendam as referências amontoadas. Caso o espectador não tenha visto o filme satirizado, bem, problema dele. O filme aí não basta, ele precisa de um complemento anterior à projeção; o público deve ter uma “bagagem” de filmes vistos, de referências conhecidas, entender do que estão zombando. Mas isso é pouco para tornar um filme bom, e toda franquia como essa já nasce datada e com vida útil reduzida. O que não é um grande problema, pelo menos no caso que citei, pois a série Todo Mundo em Pânico é repulsiva.

Talvez o nome mais aclamado dessa tendência seja Mel Brooks. Esse senhor há décadas se propõe a satirizar filmes conhecidos, alegadamente avacalhando com sua seriedade, mas em realidade aproveitando-se de seus méritos para conseguir faturar com eles. Quando o Leslie Nielsen de Drácula – Morto, mas Feliz levanta-se rígido do caixão e bate com a cabeça, essa piada só é realmente entendida por quem já viu o mítico Nosferatu de Murnau. Quem não viu pode achar engraçado, mas o intuito é “homenagear” a famosa atuação de Max Schreck, coisa que E. Elias Merhige fez com muito mais propriedade em A Sombra do Vampiro. Mel Brooks faz isso em praticamente todos os seus filmes, esse humor satírico que resume-se a recriar uma situação já vista e revista em outras obras. É uma espécie de Casseta e Planeta cinematográfico, com resultados bastante assemelhados, até.

Mesmo se com boa intenção, parece que pouca gente percebe o quanto essa mania de querer reverenciar (ou mais propriamente referenciar) seus filmes do coração é nociva ao cinema, pelo menos do jeito como é praticada. Parece que os filmes mais populares das últimas décadas foram aqueles que repetiram uma cena de um filme famoso, que citaram a música de uma trilha conhecida, que trouxeram um ator repetindo um papel que o tornou célebre. Almodóvar, por exemplo, chegou ao auge da dispensabilidade com seu medíocre Abraços Partidos, em que há uma cena com títulos e mais títulos de filmes de que ele gosta, como se isso servisse a algo que não a uma exibição fútil de seus gostos.

Ao invés de citarem tanto, poderiam se preocupar em fazer filmes dignos de citação.