Referência nem sempre é reverência
Por Filipe Chamy
Com a cultura cinematográfica atual bastante voltada para a cinefilia, temos visto cada vez mais presentemente uma cultura de verdadeiros experts em filmes, sujeitos apaixonados, vidrados, obcecados com certas obras, diretores, intérpretes, técnicos. Se por um lado isso é muito positivo e demonstra de alguma maneira a importância que o cinema tem na vida dessas pessoas, o outro gume da faca é bem menos atraente.
A lembrança da cinefilia sempre faz pensar em Truffaut, Tarantino, Bogdanovich, Scorsese, o que seria um ponto a favor dessa situação. Mas há também gente que aproveita essa capa para se disfarçar e parir mediocridades a torto e a direito, tentando lucrar com isso e fugir da confissão de sua falta de importância, talento ou competência.
Desde que se começou a estudar mais seriamente o cinema, alguns filmes ou cineastas foram apontados como padrão de qualidade. À parte o discutível “dogma” gerado com essas supostas unanimidades, não há como não compreender a desonestidade de um projeto cuja essência é recriar algum pedaço dessas obras “incontestáveis”, amparando-se no sucesso dos outros para alcançar com isso suas próprias recompensas (quase sempre, financeiras). Quer dizer, o cinema deixando de ser uma paixão para virar um filão.
Esse almanaque de citações é tão desagradável como inútil, pois qual é a graça de uma comédia como Todo Mundo em Pânico, pautada na assunção que o espectador conheça de cor e salteado os filmes ali satirizados? A graça é supostamente essa, apenas: releiturar de maneira engraçadinha passagens ou diálogos famosos de filmes que de alguma maneira tocaram o público ou permaneceram no seu imaginário por um tempo suficiente para que compreendam as referências amontoadas. Caso o espectador não tenha visto o filme satirizado, bem, problema dele. O filme aí não basta, ele precisa de um complemento anterior à projeção; o público deve ter uma “bagagem” de filmes vistos, de referências conhecidas, entender do que estão zombando. Mas isso é pouco para tornar um filme bom, e toda franquia como essa já nasce datada e com vida útil reduzida. O que não é um grande problema, pelo menos no caso que citei, pois a série Todo Mundo em Pânico é repulsiva.
Talvez o nome mais aclamado dessa tendência seja Mel Brooks. Esse senhor há décadas se propõe a satirizar filmes conhecidos, alegadamente avacalhando com sua seriedade, mas em realidade aproveitando-se de seus méritos para conseguir faturar com eles. Quando o Leslie Nielsen de Drácula – Morto, mas Feliz levanta-se rígido do caixão e bate com a cabeça, essa piada só é realmente entendida por quem já viu o mítico Nosferatu de Murnau. Quem não viu pode achar engraçado, mas o intuito é “homenagear” a famosa atuação de Max Schreck, coisa que E. Elias Merhige fez com muito mais propriedade em A Sombra do Vampiro. Mel Brooks faz isso em praticamente todos os seus filmes, esse humor satírico que resume-se a recriar uma situação já vista e revista em outras obras. É uma espécie de Casseta e Planeta cinematográfico, com resultados bastante assemelhados, até.
Mesmo se com boa intenção, parece que pouca gente percebe o quanto essa mania de querer reverenciar (ou mais propriamente referenciar) seus filmes do coração é nociva ao cinema, pelo menos do jeito como é praticada. Parece que os filmes mais populares das últimas décadas foram aqueles que repetiram uma cena de um filme famoso, que citaram a música de uma trilha conhecida, que trouxeram um ator repetindo um papel que o tornou célebre. Almodóvar, por exemplo, chegou ao auge da dispensabilidade com seu medíocre Abraços Partidos, em que há uma cena com títulos e mais títulos de filmes de que ele gosta, como se isso servisse a algo que não a uma exibição fútil de seus gostos.
Ao invés de citarem tanto, poderiam se preocupar em fazer filmes dignos de citação.