O Remake 171 de Nueve Reinas

Por Alejandro Sainz de Vicuña 

  

Resolvi ver há pouco tempo o filme do diretor Gregory Jacobs, Criminal, lançado em 2004. No Brasil, foi chamado de 171. É um decalque do filme argentino Nueve Reinas, do diretor Fabián Bielinsky. O argentino você não encontra em nenhuma locadora daqui do Brasil. Já 171, você encontra em qualquer uma, até mesmo na Blockbuster

Assim sendo, pedi o 171 pela internet e o motoboy da Blockbuster entregou aqui em casa. Coloquei o DVD pra rodar com mente e coração abertos. Quem sabe um bom filme com transposições culturais engraçadas, novos golpes e maracutaias, boas atuações, talvez diferentes, dando um novo tempero ao filme… Quem sabe um filme que tenha usado outro grande filme de trampolim para um salto mais ousado ou com outras perspectivas.  

Totalmente doentios, mas ainda simpáticos: mais uma superprodução da Guinea Pig.

Que bom que você ainda não parou de ler este artigo! É claro que eu coloquei 171 pra rodar com o sangue fervendo de excitação do mais profundo e pervertido sadismo. Foi como se eu tivesse colocado um filme da Guinea Pig ou um disco digital para ser imolado em meu DVD player. Não queria ver a versão L.A. judaico-chicana de Nueve Reinas. Eu queria ver um linchamento cinematográfico, um banho de sangue. Vi o filme predisposto a achá-lo um lixo caso não ouvisse da boca de Richard (John C. Reilly) pelo menos um “Que pelotudo soy, che!” e mais uma boa meia dúzia de sessenta “boludos”. Sei que isso não é muito digno da minha parte e põe por terra a legitimidade do que quer que venha a ser escrito daqui por diante. 

Mas é claro que 171 se ferrou muito além dessa mera ausência vocabular. Antes de mais nada, uma paralelismo dos personagens original/remake para você se orientar: 

Nueve Reinas / 171
Marcos (Ricardo Darín) = Richard (John C. Reilly)
Juan (Gastón Pauls) = Rodrigo/Brian (Diego Luna)
Valeria (Leticia Brédice) = Valerie (Maggie Gyllenhaal)
Cárdenas (Gabriel Molinelli) = Não há Cárdenas! 

Se você não viu Nueve Reinas, pare de ler isso aqui e vá vê-lo. Se você não viu 171, continue lendo. Se você já viu 171 e não viu Nueve Reinas, eu nem saberia o que te prescrever. 

Aos filmes. Vamos do começo. A primeira cena é idêntica. Rodrigo (Diego Luna) e Juan (Gastón Pauls), cada um em seu filme, fumam. Apagam o cigarro e entram. Onde? Juan entra para aplicar seu golpe do troco em um posto de conveniência em Buenos Aires, lugar quase vazio, só com uma funcionária atrás de um balcão e saída próxima. Rodrigo entra em um cassino de Los Angeles, lugar cheio de gente, câmeras monitorando tudo, seguranças que já esperam lidar com burladores e saída distante… Genial. Muito malandro. Muito 171. 

Pra piorar, parece que eles não entenderam bem o truque do troco pra 100. Rodrigo se dá bem da primeira vez e da segunda a garçonete pergunta irritada: “O que você está fazendo?!” No posto de conveniência, Juan é pego porque tem o olho grande e tenta reaplicar o golpe no mesmo lugar, com a troca de turno das atendentes. Só que a atendente anterior reaparece e percebe o que está acontecendo. Em 171, a segunda garçonete simplesmente percebe a intenção (porque ela, sim, é muito malandra!) e já sai acusando Rodrigo de uma trapaça que pode ser perfeitamente tomada por um engano. Ela não tá nem aí e chama os seguranças. E olha que ela nem sabe da primeira garçonete. 

Na sequência, dirigindo, Richard (John C. Reilly), após salvar Rodrigo, pergunta o nome do garoto e não fica satisfeito com a resposta. Decide, então, esconder aquele nome hispânico comprometedor com um britânico Brian. Na mesma conversa, a diferença étnico-social aparece mais uma vez, quando Rodrigo explica que na sua vizinhança Richard estaria morto com o golpe que acabara de lhe ensinar. É por isso que não trabalhamos lá, diz Richard. Pouco depois, na cena do elevador com “defeito”, uma senhora granfina de Beverly Hills

Venga para Beverly Hills, compadre!

 prefere entregar sua bolsa a Rodrigo, um garoto mexicano, desmazelado para os padrões do lugar, que está do lado de fora do elevador, em vez de deixar a gentileza por conta de  Richard, com seu terno caro, e ao seu lado no elevador parado. E pra não parar por aí, Richard ainda constata, ao fim da proeza, que Rodrigo tem cara de bom moço. Sim, em Beverly Hills é assim: os garotos hispânicos são os que inspiram mais ternura e confiança nos corações multimilionários daquela gente branca. Venga para Beverly Hills, compadre! 

Nos momentos finais de 171, quando Richard e Rodrigo vão ao banco descontar o cheque, Richard pede que o garoto arrume um lugar para esperá-lo. Por quê? Porque eu pareço um businessman e você parece a porra de um cholo

(Me permitam uma digressão: aquela senhora granfina de Beverly Hills, do elevador parado, me é familiar. Já vi um filme muito bom com ela, ainda jovem, num papel bem diferente. Acho que era uma prostituta… Talvez uma mulher das ruas que andava com um bando de vagabundos… )

Richard é grosso, azedo, ranzinza e sem charme. Também pra quê? Ele tem um terno melhor que o de Marcos (Ricardo Darín), um sedan de 60 mil dólares, um distintivo policial e até algemas, além de um celular (ok, em 2004, Marcos também não estaria fazendo ligações de orelhões ou telefones de bar ou hotel, nem faria piada num momento tenso e crucial, perguntando a um senhor na escuta em um celular se o jogo está empatado). Ah! Quase me esqueço do sócio judeu! Ora, o sócio de Darín era turco (ao menos no apelido), seu distintivo é uma pistola de plástico que dispara flechas com ventosas, seu cartão de crédito não é uma navalha (a violência é um recurso para quem não tem talento) e o seu meio de transporte preferido é a pé ou, quando muito longe, cortes na película. “Vem comigo.”  

Não sabemos se Marcos anda de sedan, remis, ônibus, trem ou tié-fighter

Corte. E lá está ele com seu infiel escudeiro na frente do hotel da irmã, em seu escritório-bar ou pronto para bater na porta de uma senhorinha a ser passada pra trás. Não sabemos se Marcos anda de sedan, remis, ônibus, trem ou tie-fighter

Marcos não é um mero escroque. É um escroque com consciência, com justificativas para ser o que é. Sua canalhice é o pragmatismo financeiro, money talks, filosofia que defende com refinada retórica, exímia oratória e, sobretudo, carisma e senso de humor. É um professor, um teórico e um praticante de seu ideal, a filhadaputice. Para Marcos todo mundo tem um preço. Não faltam putos, o que falta são financiadores. E Marcos exemplifica com toalhas de papel do banheiro, como se fossem as notas mais altas de sua filosofia de vida. Aponta incoerências e falta de lógica em comportamentos que ele considera pseudo-éticos. A própria ética é uma fraqueza, um obstáculo, com seus remorsos, solidariedade e restrições ao campo de ação do bom filhodaputa. Marcos é empírico. Narra e expõe a seu aluno, em tempo real, as ruas com seus “descuidistas, abanicaderos, gallos ciegos, culateros, biromistas, mecheras, garfios, pungas, boqueteros, escruchantes, arrebatadores, mostaceros, lanzas, bagalleros, pesqueros…” especialidades devidamente classificadas e nomeadas pelo mestre. “Bueno, espero que algun día sea tan bueno como usted, maestro!” 

(Por falar em delinquentes, aquela senhora granfina de Beverly Hills, no elevador parado… Ela fez um filme com arruaceiros, acho. Um filme de gangues ou de gangsters… Ela ficava vadiando pelas ruas… Não! Ela fugia pelas ruas. Tinha o batom meio borrado, talvez fosse puta…)

Mas voltemos a171 e falemos de outra mulher. A irmã de Richard, Valerie, é vivida por Maggie Gyllenhaal. Maggie é lânguida, fofa e tem o olhar de coitado do gato de botas de  Shrek full time. Realmente inspira ternura e piedade. Dá vontade de mandá-la para um spa e vê-la livre do seu trabalho, daquela relação estafante e passivo-agressiva com o irmão frígido e malcriado. Mas não antes de lhe dar um abraço de amparo. Me nego a falar mal de Maggie, ainda que indiretamente. O seu olhar me impede…  

Maggie Gyllenhaal irresistível II

Por outro lado, a Valeria de Leticia Brédice é tensa, mas firme e forte. Não inspira pena. Pelo contrário. A sua tensão parece justamente resultado da represa de uma mulher que está a ponto de sentar a mão no canalha do irmão (Marcos), de chamar a polícia, de fazer uma loucura, mas que só pode deixar escapar sua acidez raivosa verbal por entre um sorriso amarelo fulminante de atendente. E Marcos se aproveita da situação da irmã, que caminha sobre o gelo fino do saguão do hotel onde trabalha, para provocá-la ainda mais. Ela quase explode. “Este es mi trabajo y me rompo el culo 12 horas por día para conservarlo.” “No literalmente, espero.”, diz Marcos. A cara da irmã engolindo o sapo é impagável. Ainda bem que Richard não disse uma grosseria dessas para sua irmã. Imagine Maggie ouvindo uma coisa dessas… 

A Buenos Aires da virada do milênio também tem uma importância crucial em Nueve Reinas. O filme é uma profecia lançada no início da recessão econômica, no retorno de Domingo Cavallo ao Ministério da Economia da Argentina, na iminência da catástrofe financeira do país. Aquela iminência tão iminente que antes de se estatelar no fundo do abismo só dá tempo de dizer: “Fudeu!” O filme é uma metáfora da situação argentina em forma de thriller!  

Um país onde a ilusão do poder aquisitivo, o ouro dos tolos em paridade com o dólar, esconde a corrupção, as falcatruas e as grandes oportunidades de enriquecimento ilícito dos bastidores políticos e empresariais. Da mesma forma, numa escala míserocósmica, lá estão, invisíveis nas ruas, uma infinidade de vigaristas esperando a sua oportunidade de dinheiro “fácil”, de oferecer seu ouro dos tolos, lá está a parte perigosa dos 25% de desempregados argentinos. O rico vocabulário do microcosmo das ruas seguramente terá seus correspondentes no macrocosmo palaciano: superfaturantes, privatizadores, corraliteros, monetaristas, paraísofiscalistas, mevoycomtodoaleuropistas, moratoriaderos, e por aí vai… 

Nada disso tem peso em 171. O pato a ser depenado pelos malandros é um empresário europeu que precisa sair dos Estados Unidos em um dia, ou terá todos os seus bens taxados. Uma questão fiscal e jurídica. Direito tributário. Em Nueve Reinas, todos nós sabemos muito bem de que tipo de pessoa se trata o suposto alvo do golpe. Na presença de Juan, o velho falsificador Sandler, um artista, apresenta Esteban Gandolfo Vidal a Marcos com um recorte de jornal. Darín lê telegraficamente: “Dono de um holding; saída às pressas do país; investigação parlamentar; deportação para a Venezuela… Quinhentos milhões de dólares?” Um golpista de grande magnitude, que está muito acima de todos eles ali. Tão acima que o golpe da vida deles é apenas o preço de mais uma peça do seu luxuoso hobby. E o que importa que Esteban seja uma armação, um personagem? Ele é crível, real, extremamente real e corriqueiro. Tão real que até um especialista em desconfiar dos outros engoliu essa. 

A corrupção e o desastre econômico aparecem vibrando nas entrelinhas da narrativa desde o início de Nueve Reinas. Do chocolate “Crunchy: elaborado en Grecia” seguido da constatação profética: “Este país se va a la mierda”, até chegar ao final, à merda de fato… Um banco argentino quebrado. 

Os argentinos estão parados na rua estupefatos ou putos da vida, como se olhassem ou vivessem um acidente de trânsito colossal. Todos se amontoam e se acotovelam na porta desse tal banco argentino quebrado. Os diretores se mandaram pra Europa com toda a grana. Começa a fuga de capitais… 

Ali está o nosso peixinho de aquário, Marcos, com o golpe da sua vida entre os dedos, pronto para descontá-lo no banco, mas acaba de ser lançado no oceano. Está desnorteado. Marcos abre espaço na multidão até a porta da agência bancária e grita pela fresta por Cárdenas, um conhecido que ele, pra variar, algum dia passou pra trás. E aí vem Gabriel Molinelli, na pele do bancário Cárdenas. Ele só precisa dessa pontinha com Darín para ser o ápice do filme. 

O que aconteceu? Os onze foram embora. Levaram tudo. Os caras do Banco Central já sabiam, mas só intervieram hoje. O cheque é verdadeiro? Verdadeiro ou falso, que diferença faz agora? Dá na mesma…  

"Esto era para cobrar?! Te los va a tener que meter em el culo, Marquitos!"

Enquanto 171 pune Richard com um enfadonho final “CADEIA NELE!”, no momento em que o picareta tentava descontar seu cheque numa sólida e respeitável agência bancária de L.A., Nueve Reinas pune Marcos com a gargalhada larga e contida do bancário Cárdenas. Uma risada pícara e catártica diante da desolação e do constrangimento do vigarista que caiu no conto-do-vigário. Puro deboche e loucura, já que todos ali não deixam de estar tão ferrados, desnorteados e impotentes quando Marcos, principalmente ele, funcionário de um banco falido. Mas a risada de escárnio de Cárdenas é absoluta e definitiva. Pelo resto da sua aparição no filme, não escutamos mais a voz de Marcos. São longos segundos de olhares desolados e impotência. Foi-se a eloqüência e agora é Juan que se vai. Marcos se entrega ao desespero e se atira contra a multidão, brandindo sua grande ilusão entre os dedos. Não é à toa que os argentinos chamam seus sonhos de ilusión

Por trás de punições e recompensas, heróis e vilões, está o pano de fundo de um país que começa a “irse a la mierda”, de pessoas que têm que lutar pela sobrevivência e para não perderem o que lhes resta, se é que resta. Mais que um pano de fundo, é a profundidade do filme. 

A sua versão hollywoodiana não tem essa dimensão. A impressão que fica é que os responsáveis por 171 (que inclui George Clooney na produção), antes de fracassarem como realizadores, fracassaram como espectadores de Nueve Reinas. A leitura do original é rasa e limítrofe, diria até desleixada. Os realizadores de 171 não souberam captar a importância para o roteiro de Nueve Reinas de uma série de detalhes como uma frase, uma ação, uma expressão facial, um comentário, um riso, um olhar, uma piada, uma entonação, um gesto… Não souberam transpô-los ou compensá-los e ainda acrescentaram detalhes inócuos ou que criaram pontas e falhas no roteiro replantado. É como se 171 se garantisse na verossimilhança de Nueve Reinas e se esquecesse de reconstruir a sua. Mas as lacunas vão muito além. 

No original, Juan tenta se lembrar ao longo do todo o filme de uma canção de Rita Pavone e só consegue na última fala, quando entra a música em questão com os créditos finais.

Deborah Van Valkenburgh como Mercy em Selvagens da Noite (The Warriors, 1979)

 Em  171, outra canção é mencionada uma única vez por Rodrigo, sem qualquer importância ou sentido. Fica ali, como uma ponta solta de cortes mal feitos, com a qual o espectador não vai fazer qualquer associação no final. O resultado é uma adaptação banal, capenga, sem brilho próprio e opaca demais para refletir o brilho de Nueve Reinas. Puro desleixo. É como se eles tivessem feito o filme em cima de uma resenha da Blockbuster. E por falar em Blockbuster, agora que eu acabei o artigo, já posso chamar o motoboy e me livrar disso. Ah! A senhora do elevador! Me lembrei!… 

  

Alejandro Sainz de Vicuña toca numa banda de rock and roll, é redator e filho de um porteño com uma mineira de Pirapora, nascido em Buenos Aires e criado no Rio de Janeiro.