Artigo: Memória e esquecimento da Aids no filme Cazuza, o tempo não para

Especial A Aids no Cinema Brasileiro

 

Memória e esquecimento da Aids no filme Cazuza, o tempo não para

Por Carlos Alberto de Carvalho

 

Em um artigo que publiquei em 2008 na revista portuguesa da Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação (Cinema e Aids no mundo da vida: representações de vida e morte), tentei responder à seguinte pergunta: por que, em tempo tão rápido, o cinema, inclusive o “hollywoodiano”, marcado pela perspectiva comercial em grande parte dos filmes, demorou tão pouco tempo para tomar a Aids como temática, considerando o seu surgimento e as primeiras produções a retratá-la? A indagação levou em conta que, inscrita inicialmente sob a ideia de incidência sobre “grupos de risco”, dentre eles destacadamente homossexuais masculinos, a temática poderia levar tempos para ganhar abordagens diretas, o que ocorreu com a própria homossexualidade, por décadas tema tabu, quando não proscrito, na indústria cinematográfica norteamericana. Assim nos descreve Vito Russo, no livro The celluloid closet, transformado em documentário com mesmo título, dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman. Retomo mais adiante as respostas que me pareceram plausíveis à época.

No Brasil, como em diversos outros países, a aparição pública da Aids, considerando a divulgação por produtos jornalísticos dirigidos a amplos consumidores, esteve muito associada a pessoas e/ou produtos culturais. Marcos Vinicius Resende Gonçalves, o famoso costureiro Markito, morto em consequência de complicações provocadas pela Aids em junho de 1983, foi provavelmente o primeiro brasileiro de fama a ajudar na disseminação de informações da síndrome entre nós, nos marcos da suposta incidência exclusiva sobre homossexuais masculinos. Tempos de terror, com manchetes escandalosas em publicações diversas, como “peste gay’, “câncer rosa” e derivadas. Mas no campo da ampliação dos conhecimentos no Brasil sobre a Aids, suas consequências e formas de transmissão, foi outra figura cultural importante e emblemática dos anos 1980 quem deu a maior colaboração, o cantor Cazuza. Sem medo de dizer sobre sua sexualidade, assim como encarando de frente a síndrome, Cazuza representou personagem única em um cenário marcado pelo pânico da exposição. E pagou preço elevado, de que a mais triste memória é a capa da revista Veja, publicada em 1989, que traz o cantor fotografado abatido, sob o título “Cazuza, uma vítima da Aids agoniza em praça pública”.

Passadas três décadas do surgimento público da Aids, o que é possível pensar sobre ela e seus primeiros impactos a partir do filme Cazuza, o tempo não para, dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho, com o ator Daniel de Oliveira em interpretação magistral como o cantor? Embora responder a essa pergunta implique em alguns riscos, sendo o maior pretender que o filme dedicasse mais tempo à temática da Aids e da homofobia que lhe foi fortemente associada nos anos iniciais da síndrome, é precisamente sobre este ponto que quero refletir. Diferentemente de um filme como Filadélfia, cuja história absolutamente verossímil não dizia imediatamente de um compromisso para além do ficcional, o filme sobre Cazuza, em que pesem licenciosidades poéticas aqui e acolá, retrata mais ou menos fielmente a trajetória do cantor, notadamente das suas primeiras investidas musicais ao aparecimento da Aids, que embora mostrada alterando suas rotinas, métodos então disponíveis de tratamento e a necessidade de encarar a morte, não vem associada aos preconceitos mais danosos que ela suscitou para pessoas, como Cazuza, também vítimas dos rechaços sociais advindos da vivência homoafetiva.

As indicações de preconceitos aparecem no filme de forma esparsa, como em uma fala de Cazuza em que ele diz que suas roupas e demais objetos de uso pessoal deverão ser separados, e no uso de máscara cirúrgica por sua mãe, no período de tratamento nos Estados Unidos. No mais, a Aids aparece como uma enfermidade qualquer, embora de tratamento difícil e pouco eficaz, como se naqueles anos ela não tivesse implicado às pessoas por ela atingidas sofrimentos psicológicos talvez mais graves do que as consequências físicas por ela imposta, sempre visíveis, como emagrecimento e manchas na pele, que dificultavam o ocultamento dos portadores da síndrome. Não cabe aqui um julgamento de qualquer ordem sobre a escolha da direção, produção e negociações de direitos de imagem sobre Cazuza quanto às escolhas da abordagem da Aids pelo filme. O que propomos, por outro lado, é uma reflexão sobre como o filme poderia também ter abordado, com a mesma coragem que Cazuza demonstrou ao longo da vida e no enfrentamento da Aids, temáticas mais espinhosas, como os preconceitos de diversas ordens implicados em ser diagnosticado com uma “doença” misteriosa, que deixava marcas corporais de difícil ocultamento, mas sobretudo, associada equivocadamente a “grupos de risco”, todos eles já de longa data marginalizados socialmente: homossexuais masculinos, prostitutas, usuários de drogas injetáveis e haitianos (estes nos Estados Unidos, devido ao tráfico de sangue). Somente hemofílicos, também apontados como pertencentes aos “grupos de risco”, não eram associados negativamente à síndrome, posto que vítimas involuntárias da necessidade de receberem hemoderivados para sobrevivência.

O rol de preconceitos é longo e incluiu discursos religiosos sobre castigos divinos dirigidos a pessoas que abusavam da sexualidade, sempre associando-a à promiscuidade, ao abuso no uso de drogas e a vidas desregradas. No Brasil, assim como em diversos países, os preconceitos chegaram a absurdos como slogans homofóbicos, dentre eles alguns associados, dentre nós, ao próprio Cazuza, como pesquisas em jornais da época mostrarão. Nesse sentido, o filme omite detalhes da trajetória do cantor que seriam didáticas para as gerações que não viveram os anos de terror do aparecimento da Aids. Mas a ausência mais significativa no filme de referências outras aos desafios enfrentados por Cazuza é sem dúvida a capa da revista Veja a que já fizemos referência antes. O filme poderia ter dado destaque a este episódio de triste memória de um tipo de jornalismo covarde, antiético, sensacionalista e desrespeitoso que, lamentavelmente ainda prolifera.

Antes de ser uma cobrança sobre o que deveria ter sido tematizado, destacar temáticas avivadas como memória e aquelas destinadas ao esquecimento no filme Cazuza, o tempo não para, tem aqui o objetivo de mostrar o quanto a Aids continua de difícil abordagem, mesmo após transcorridas três décadas do seu surgimento como questão pública. Retomar as hipóteses que levantei no artigo de 2008 sobre Aids e cinema, desse modo, ajuda a compreender um pouco dos desafios impostos pela Aids à sociedade. Ali eu propus que dentre os motivos plausíveis para entender as razões de a Aids ter aparecido “precocemente” como tema para o cinema, apesar de ser de difícil abordagem, poderiam estar: 1) o fato de a indústria cinematográfica ter vivenciado em seu interior o impacto da Aids, que atingiu produtores, agentes, e artistas, dos quais o mais importante foi certamente Rock Hudson, cuja homossexualidade acabou revelada junto com a notícia da causa de sua morte; 2) mesmo quando pautado pelo ficcional, o cinema tem historicamente fabulado sobre questões candentes do mundo da vida, não lhe sendo possível ignorar temas como a Aids; 3) A Aids apareceu em diversos filmes quase como uma “personagem” a humanizar outras personagens, como em Filadélfia, no qual o advogado homofóbico revê seus valores e preconceitos, ou no filme A cura, uma espécie de conto de fadas no qual o menino bad boy transforma-se em amigo atento em busca de cura para a doença do novo amigo, inicialmente vitimizado pelas maldades de quem agora luta contra a morte e aqueles que demonstram preconceito contra o coleguinha.

Assim como no artigo de 2008, encerro as reflexões aqui lembrando uma ambiguidade da Aids, qual seja, a de que se ela representou uma séria ameaça de extinção da espécie humana, em determinado período de desconhecimentos sobre suas causas, consequências para os portadores e formas de transmissão, por outro ela foi a oportunidade para revisão de valores equivocados agravados pelo preconceito. Desse modo, a Aids chamou atenção para as dificuldades que a própria ciência médica tem na determinação exata das doenças que tem sob objeto de pesquisa, mas sobretudo trouxe à tona a homofobia de uma forma até então desconhecida por nossas sociedades, contribuindo, contraditoriamente, para que o combate de preconceitos homofóbicos se intensificasse. No filme Cazuza, o tempo não para, temos apenas alguns desses elementos em destaque, restando lacunas de memória sobre a Aids que os anos 1980 trouxeram de forma assustadora para alguns.

 

Carlos Alberto de Carvalho é professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, onde desenvolve pesquisa sobre as relações entre Aids, homofobia e cobertura jornalística, com financiamento da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFMG e da Fapemig.

Carandiru

Especial A Aids no Cinema Brasileiro

 

Carandiru
Direção: Hector Babenco
Brasil, 2003

Por Edu Jancz

A AIDS (ou síndrome da imunodeficiência adquirida) é identificada no início dos anos 80. Os primeiros portadores, que desenvolveram a doença, tiveram nessa década uma vida muito curta.  Rapidamente, a comunidade médico científica descobriu o que é verdade até hoje, 2011, a Aids não tem cura.

Usar a camisinha, como única forma de prevenção, foi a lição destas décadas e que vale até hoje. Não se enganem: a Aids ainda não tem cura. Atualmente atinge homens e mulheres héteros e pessoas da Melhor Idade. Solução: só a prevenção com a velha e boa camisinha!

Sempre. Sempre. Sempre!

A Aids matou milhares de pessoas. Continua matando sem compaixão. Não existe vacina, analgésico ou medicina alternativa milagrosa. Desde  o início dos anos 90, surgiram os “coquetéis” que, se corretamente administrados, prolongam a vida dos portadores por muitos anos.

Muitos “heróis anônimos” lutam e lutaram para salvar vidas de pessoas com a Aids. Um desses abençoados é o médico Dráuzio Varella. Em 1989, ele iniciou um trabalho voluntário no Carandiru – Casa de Detenção de São Paulo. Objetivo: avaliar a real situação dos presos com o vírus da HIV. E trabalhar com a conscientização para evitar futuros casos.

Até 2002, quando o presídio foi desativado, o Dr. Dráuzio salvou centenas de vidas. Registrou – sem falsos julgamentos, nem moralismo,  como era a vida atrás das grades de um grupo de detentos que chegou a ser de sete mil, dividido em nove pavilhões. E partilhou sua experiência com a sociedade no livro Estação Carandiru, de 1989.

Livro que virou filme com roteiro de Hector Babenco, Fernando Bonassi e Victor Navas.  Coube a Babenco dirigir esta superprodução.  Usando o médico como narrador, Babenco mostra algumas das 70 histórias que Dráuzio viveu, recolheu em livro e que muito lhe ensinaram sobre vida, amizade e medicina.

Como um médico que faz habitualmente na  primeira consulta com seu novo paciente, o doutor pergunta e anota o nome, motivo da estadia no Carandiru e o principal, se usa drogas e tem relações sexuais na cadeia. Um dos entrevistados , o Barba, fala por todos: “quem disser que não tem, está mentindo.” Pergunta seguinte: usa camisinha?  A resposta: “quando tem… “

A princípio, um pouco assustado com a população carcerária, o médico vai ganhando a confiança dos detentos. Vira amigo e confidente de muitos. Não julga, apenas ouve suas histórias. Somente é enfático quando os doentes se recusam a tomar medicamentos.

O doutor Dráuzio também percebeu que o Carandiru era um barril de pólvora, pronto para explodir. Curiosamente, à medida que foi se “aclimatando”, viu que aquela cidade tinha vida própria. Com acerto de contas, hierarquia entre presos, grupos, sofrimentos e privilégios. Nada que impedisse o seu trabalho

No dia 2 de outubro de 2002, após uma tranqüila partida de futebol, eclode um conflito generalizado no pavilhão 9. A polícia de choque, fortemente armada, fecha o local.

O diretor do Carandiru tenta acalmar sua população. Os detentos entregam suas armas, de fabricação caseira. Mas, como era dia de eleição, a tropa de choque não “perdeu a viagem”., Massacrou 111 detentos. O sangue dos presos virou a cor predominante do local. Nenhum membro da tropa foi ferido. Tudo registrado com extrema competência cinematográfica pelo diretor Hector Babenco.

Se minha história aponta um herói para Carandiru, dr. Dráuzio Varella, por salvar centenas de vidas, é justo que eu aponte o nome do seu opositor algoz, o governador Luiz Antonio Fleury Filho, que ordenou a invasão da tropa de choque e tirou a vida de 111 homens.

Um pouco de estatística –  Em 2009, 17 anos depois  do massacre, ainda não tinha sido  concluída a perícia das 392 armas usadas por policiais na ação. Faltavam ser feitos os confrontos balísticos para saber de que arma partiu cada um dos 535 tiros que atingiram os detentos.

Cazuza, o tempo não para

Especial A Aids no Cinema  Brasileiro

 

Cazuza, o tempo não pára
Direção: Sandra Werneck e Walter Carvalho
Brasil, 2004.

Por Edu Jancz

“Sou ariano. E ariano não pede licença, entra, arromba a porta. Nunca tive medo de me mostrar. Você pode ficar escondido em casa, protegido pelas paredes. Mas você tá vivo, e essa vida é pra se mostrar. Esse é o meu espetáculo. Só quem se mostra se encontra. Por mais que se perca no caminho.”

Esta frase dita por Cazuza, pseudônimo de Agenor de Miranda Araújo Neto, define bem seu autor. E o roteiro de como foi estruturado o filme Cazuza, o Tempo não Pára. Esculpido  por Fernando Bonassi e Victor Navas ( baseado no livro Cazuza, Só As Mães São Felizes, escrito pela mãe do cantor, Lucinha Araújo, e pela jornalista Regina Echeverria) o roteiro é de extrema habilidade ao “desenhar” personagem e seu DNA musical em extrema consonância.

O filme, mescla primorosa de ficção que parece documentário – principalmente pela atuação espetacular de Daniel de Oliveira como Cazuza –, segue um caminho de linhas retas ao apresentar o jovem Cazuza, sua atribulada relação com os pais, com a vida. Sua bissexualidade, as drogas e, principalmente, sua extrema vontade em existir, se mostrar, marcar presença.

Nasce a parceria entre Cazuza e Frejat. Parceria quase perfeita – apesar das visíveis diferenças de personalidade. Os primeiros sucessos, as idas e vindas com os amores da vida – todos, sem exceção –  e a marca registrada de Cazuza: ser exagerado, ser intenso, ser amado e odiado. Afinal: só quem se mostra se encontra.

Cazuza, o Tempo não Pára é o retrato de uma geração em busca de seus objetivos, como ele expressa na música Ideologia:

Pois aquele garoto
Que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste a tudo
Em cima do muro
Em cima do muro… 

Meus heróis
Morreram de overdose
Meus inimigos
Estão no poder
Ideologia!
Eu quero uma pra viver
Ideologia!
Pra viver… 

Ou a geração que expressa, aos gritos, suas reivindicações, em um país “em construção”,  onde “O Tempo não Pára”: 

Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam o país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro

A notícia de Cazuza portador do vírus HIV é impactante. Não inesperada. No início dessa doença fatal, começo dos anos 80, mesmo com todo o esforço dos seus pais – de ótimo poder aquisitivo – o destino estava selado e era breve.

Cazuza nunca se entregou à doença, como nunca se entregou em vida. Mesmo debilitado, não tendo forças para se locomover, faz a última aparição numa cadeira de rodas.  Sua imagem dessa apresentação é o retrato emblemático da AIDS, antes dos  remédios de ponta, dos coquetéis.

Cazuza, o Tempo não Pára é o retrato digno de um artista exagerado, controvertido, genial e sua época. Ver o filme para “julgar” o cantor e compositor é pura perda de tempo. Um exercício inútil.  Cazuza faz parte da nossa história. É um ser humano como, praticamente, todos nós, que “de perto” somos muito estranhos. A obra de Cazuza “fala” profundamente para os seus fãs e detratores.

Dzi Croquettes

Especial A Aids no Cinema Brasileiro

 

Dzi Croquettes
Direção: Tatiana Issa e Rafael Alvarez
Brasil, 2010

Por Ailton Monteiro

Ver Dzi Croquettes é como viajar no tempo. Mesmo não conhecendo o grupo de teatro que influenciou tantos outros artistas brasileiros e fez sucesso até fora do Brasil, tendo Liza Minelli como madrinha, acompanhar o documentário de Tatiana Issa e Rafael Alvarez traz reflexões sobre um tempo que parece distante diante das mudanças operadas na contemporaneidade, mas que parecem próximas quando nos trazem lembranças fortes, ainda mais à medida que a tão bem contada história da trupe vai se tornando mais próxima de nossa época e de nossas lembranças, algumas delas escondidas no porão da memória.

Um pouco de preconceito pode surgir inicialmente na cabeça de um espectador heterossexual, ao ver aquele grupo gay rebolando seminu no palco de maneira estranha, mas não tão estranha assim se pensarmos no quanto fez sucesso um artista como Ney Matogrosso, presente entre os vários que ajudaram a contar a história do grupo. E a história no final ganha uma narradora que a princípio parece intrusiva, mas que não é, já que é a própria diretora, e que é filha de um dos homens que fizeram parte da equipe dos Dzi.

Depois da metade do filme, já estava gostando daqueles homens estranhos que ousaram desafiar o comportamento sexual da época. Até porque os depoimentos de gente como Cláudia Raia, Betty Faria, Maria Zilda Bethlem, Jorge Fernando, Elke Maravilha, Ney Matogrosso, Miéle, Pedro Cardoso, Liza Minelli, Marília Pêra e dos próprios sobreviventes do grupo, são inflados de emoção genuína. Sente-se a sensibilidade e o amor por aqueles que fizeram os Dzi Croquettes.

E a história é tão bem contada a partir desses depoimentos, com um ritmo tão dinâmico e uma edição tão bem recortada, que fica difícil não reparar nesse aspecto do filme. Afinal, fazer um documentário de um grupo de teatro pouco conhecido nacionalmente, já que teatro é uma arte que não trafega por todos os lugares do país, não deixa de ser algo arriscado. Mas não é mesmo um filme para se ganhar dinheiro, é um trabalho feito com amor e feito para ser bem sucedido artisticamente.

Como os Dzi Croquettes, que formavam uma verdadeira comunidade ao morarem juntos, enfrentando juntos tanto a aprovação quanto o preconceito da sociedade. Brincando com a falta de recursos e com a necessidade de um glamour que faz parte do jeito gay de ser, o grupo chamou a atenção de muitos, inclusive de muitas mulheres que se tornaram fãs.

O filme vai ficando mais emocionante quando começa a falar sobre o “câncer gay”, que é como a Aids era tratada no início, quando se acreditava que a doença era exclusividade dos homossexuais. É quando vemos o quanto ela foi impiedosa para com vários membros do grupo. Os depoimentos emocionados nos comovem, principalmente depois que já estamos mais próximos do grupo, depois que fomos apresentados a essas pessoas especiais. E que bom que o filme está aí para apresentá-los a quem não os conhece e a emocionar mais ainda aqueles que com eles de alguma forma foram mais próximos.

 

Romance

Especial A Aids no Cinema Brasileiro

 

Romance
Direção: Sérgio Bianchi
Brasil, 1988. 

Por Filipe Chamy 

           

Estamos em 1988 e o Brasil está finalmente saindo de uma longuíssima ditadura (de um quarto de século), só não considerada mais terrível porque a censura, a alienação e a violência da repressão fizeram sua tarefa de acobertar bem as vilanias cometidas pelas mãos oficializadas dos detentores do poder. 

Um filme como Romance seria impossível anos antes de sua feitura, ou no mínimo seria engavetado sem muita esperança de resgate. 

Ou teria, recurso muito apreciado por certos artistas (sobretudo na música), vindo à luz sob mil máscaras de disfarce, com metáforas contra a opressão e com toda sorte de símbolo escondendo as reclamações “reais”. 

O filme de Bianchi não é assim tão poetizado. É, antes, cru e incisivo. Não que diga algo exatamente novo; mas naqueles anos ainda traumáticos — ou traumatizados — era com um certo pudor com que as coisas legítimas eram pronunciadas, pois vai que se arrependiam de tanta liberdade e de novo o cassetete comia. 

Pois bem, aqui temos um caldeirão explosivo: denúncias de imoralidade administrativa, conchavos políticos, degradação moral de uma sociedade por demais fragilizada pela estrutura arcaica em que se inseria, doenças sexualmente transmissíveis etc. Tudo que os generais e poderosos da ditadura tentavam a todo custo negar, seja com censura, com informações manipuladas ou, simplesmente, com a truculência exercida pelos repressores das rotas da vida. 

Romance é atual ao mesmo tempo em que não é. É, porque todas essas coisas ainda existem e persistem, estão cada vez mais naturalizadas no inconsciente de todos; não é, porque critica de uma maneira meio infantilizada, teatral, com o convencionalismo cênico de uma peça em que os atores gritam um texto artificial, travado, mesmo ingênuo. Porque é tudo verdade, mas em cinema é capital lembrar que o importante não é o que é dito, mas como. Nesse ponto é bastante perceptível que Bianchi não tem tanta pretensão (ou talvez competência) de ir além de sua mensagem. E isso é mais um fator limitante: é um cinema engajado, mas esse tipo de expressão é datada, daquela maneira desagradável, como ler um manifesto parado no tempo. E se pensarmos que Romance tem pouco mais de vinte anos, essa distância criada pela própria obra parece bastante incômoda. 

Caio Fernando Abreu, o célebre escritor, é um dos roteiristas deste Romance — e a ironia é que ele morreu por complicações advindas da AIDS/SIDA, o mesmo mal que persegue (não se sabe se apenas em sua cabeça) um dos personagens do filme, acuado pela culpa e pela incerteza, reflexo de um novo olhar para os relacionamentos (não apenas homoafetivos, é evidente) e uma nova necessidade de se cuidar e refletir sobre os tempos atuais. Não se trata bem de uma “ética”; a AIDS é um grande mal contemporâneo e não exatamente de uma condição exótica. Está aí pelos cantos, nas crianças (não só da África, como gostam de pensar os acomodados), nas famílias, nos amantes, nos companheiros, nas mulheres grávidas, é onipresente e avassaladora. O silêncio dos nossos chumbados anos não extirpou a doença, apenas contribuiu para engrossar a camada de ignorância acerca das formas de contágio e prevenção. Portanto, era mister reforçar o combate educando as pessoas com informação e exemplos, e obviamente a arte não poderia fugir desse quadro, ignorando completamente essa (triste) experiência humana, o drama dos soropositivos e todo o quadro anexo, como a tortura da suspeita, a dor da confirmação do diagnóstico e a possibilidade de se viver dignamente mesmo portando o vírus maligno. 

Então Romance não chega nunca a ser um grande filme, mas dá sim a sua ajuda.

Cinema de Lágrimas

Especial A Aids no Cinema Brasileiro

Cinema de Lágrimas
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Brasil, 1995.

Por Adilson Marcelino

 

Um dos gigantes do cinema brasileiro, Nelson Pereira dos Santos tem filmografia extensa e marcada por ótimos filmes – alguns verdadeiras obras-primas – e poucos outros de menor relevância. Injustamente, Cinema de Lágrimas é quase sempre alocado nesse último time.

Nelson sempre pensou o país por diferentes abordagens, seja pela literatura, religião, cultura popular e erudita. Em Cinema de Lágrimas, ele se debruçou sobre todo um ideário da América Latina: o melodrama. Com roteiro seu e de Silvia Oroz, e baseado no livro dela, Melodrama: O Cinema de Lágrimas da América Latina, o filme integrou projeto comemorativo do British Film Institute para os 100 anos do cinema naquele 1995.

Na trama, Raul Cortez é um ator e diretor de teatro em crise, Sua última peça fracassou e ele se dá férias para se afastar de tudo e de todos. Um fato trágico marca sua vida e o atormenta dia e noite: o suicídio de sua mãe – bela aparição de Christiane Torloni – quando ele tinha apenas quatro anos.

Para enfrentar seu tormento, ele empreende uma pesquisa sobre os melodramas da década de 40, uma das paixões da mãe, e sai a campo para aplacar sua dor emocional e psicológica. O endereço primeiro é a Cinemateca do MAM, onde o saudoso Cosme Alves Neto o orienta a procurar material na Universidade Autônoma do México, endereço essencial para seu intento.

E é para a terra do melodrama que ele vai, levando junto como assistente um jovem interpretado por André Barros, com quem vai iniciar fugidia e atormentada relação de trabalho e atração. Daí, os dois assistem,  juntos ou não – nem sempre o jovem aparece, para desconforto crescente de Raul -, vários melodramas em p&b protagonizados por estrelas como Maria Félix, que irrompem na tela também para nosso deleite.

Enquanto as cenas são apresentadas na tela, Barros situa os fundamentos do gênero que marcou grande parte do continente, e de forma muito forte o Brasil. Um dos elementos focalizados pelo melodrama são as doenças fatais, e o filme faz interessante desdobramento histórico entre os grande males que assolaram/assolam a humanidade: a tuberculose, o câncer, e a Aids.

Ao trazer um tema urgente e pouco abordado pelo cinema brasileiro, tanto da época como ainda nos dias de hoje – a produção é dos anos 90 – Nelson Pereira dos Santos focaliza a Aids e os soropositivos com respeito e humanidade.

E é esse olhar do grande mestre para a tragédia de nosso tempo e suas vítimas, mais as imagens acachapantes das cenas dos melodramas exibidos dentro do filme, que marcam  com encanto esse subestimado Cinema de Lágrimas.

Positivas

Especial A Aids no Cinema Brasileiro

Positivas
Direção: Susanna Lira
Brasil, 2009

Por Adilson Marcelino

 

Positivas, de Susanna Lira, focaliza um grupo de sete mulheres soropositivas que vivem em locais diferentes no país: Salvador, Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre

O título do filme, apropriadíssimo, tem duplo sentido: todas foram infectadas pela Aids, e, sobretudo, todas encarnam postura positiva frente à doença e à vida ao se engajarem na militância para dizimar o preconceito que envolve os portadores do HIV e os doentes.

Integrantes do movimento Cidadãs Posithivas, elas foram contaminadas pelos seus maridos, namorados e companheiros. Convivendo com o vírus há 8, 12, 15 anos, elas são exemplo de que ainda que a doença seja fatal, o  diagnóstico de Aids não é sinônimo de morte e que é possível levar uma vida com a dignidade resgatada em meio a tanto preconceito.

Cada uma delas divide os afazeres da militância com o dia a dia de qualquer outra pessoa: família, namorado, religiosidade, diversão.  E todas fazem de suas experiências militância, engajadas em campanhas de conscientização e de apoio, pronunciando palestras, fazendo corpo a corpo na rua para panfletar e organizando ações do movimento.

O grande mérito de Positivas é que aqui a voz é do próprio sujeito de sua história. Ele traz para a cena os relatos de suas personagens, abrindo espaço também para os familiares, amigos e companheiros, além de focalizar suas ações de conscientização.

Há, ainda, seus testemunhos sobre como é viver soropositiva com os recursos médicos atuais. Ainda que os coquetéis prolongaram a vida dos infectados, todas deixam claro que seu uso não é um mar de rosas, pois há efeitos colaterais, além da exigência de uma disciplina rigorosa no tratamento. Daí, alertam para o uso do preservativo, já que, inclusive, com os estimulantes sexuais, as relações também se prolongaram, com idosos também contaminando e sendo contaminados.

E chamam a atenção para o principal motivo das mulheres se tornarem soropositivas: o tabu da exigência da camisinha em um casamento – “amor não imuniza”, reforçam. Há relatos trágicos, como a de uma que se contaminou com o marido depois de 31 de casados; a de outra que foi se casar só aos 40 anos para se separar três meses depois e se descobrir contaminada pelo marido; e a da mãe que foi afastada dos netos pela filha. Só que o que poderia render relatos melodramáticos – e com toda a razão – jamais se resvala por essa chave, pois são guerreiras. E, mais que isso, fazem de suas vidas uma postura política.

Positivas é documentário que realmente tem o que dizer, e a direção de Susanna Lira é sempre respeitosa, sem jamais ser subserviente. Vencedor do Troféu Redentor de Melhor Documentário pelo Júri Popular no Festival do Rio, o filme vem ganhando o país e o mundo, com exibições em vários estados e em festivais na França, Colômbia, Argentina e Uruguai.

Estou com Aids

Especial A Aids no Cinema Brasileiro

 

Estou com Aids
Direção: David Cardoso
Brasil, 1986.

Por Adilson Marcelino

A década de 1980 revelou para o mundo uma das maiores tragédias do nosso tempo: A Aids. Ainda hoje sem cura, mesmo que com tratamentos avançados que prolongam a vida dos infectados com o vírus HIV, a Aids vem ceifando vidas no mundo inteiro, independente de idade, classe social, raça e identidade sexual.

Mas no princípio, a ciência e a sociedade apontavam, equivocadamente,  os tais grupos de risco: homossexuais masculinos, prostitutas, usuários de drogas injetáveis e hemofílicos. E os homossexuais, principalmente, foram os que mais sofreram, na pele e no preconceito, já que a Aids era chamada, inclusive, de câncer gay.

O filme Estou com Aids, produzido pela Dacar Filmes, de David Cardoso, é pioneiro na abordagem sobre o tema nos nossos cinemas, aliando ficção e documentário. Cardoso dirige e também comanda a cena no filme, já que é o entrevistador que sai a campo para ouvir médicos, psicólogos, anônimos, artistas e celebridades sobre o assunto.

Há em Estou com Aids toda a imperfeição de algumas produções mais pobres da Boca, sobretudo a estética descuidada, sem o famoso recurso da criatividade para driblar as dificuldades – não se pode perder de vista que foi um filme realizado totalmente de forma independente por Cardoso, que, inclusive, apostou que seria um sucesso, mas resultou em tremendo fracasso de público.

 O roteiro de Luiz Castillini é implacável com os personagens, para os quais a única saída é a morte. E esse fator é, inclusive, potencializado pela direção no uso exagerado da maquiagem. Mas é necessário salientar que David Cardoso, como repórter, vai em busca de diferentes fontes na época e tenta se manter neutro diante dos entrevistados, ainda que sua expressão facial pareça querer traí-lo.

Daí, temos tanto o esperado discurso alarmado de Pedro de Lara quanto um inesperado da cantora Alcione que joga a culpa nas costas nos turistas estrangeiros de olhos azuis.

Na parte ficcional da trama, o destaque fica com a personagem de Débora Muniz, uma empregada doméstica que é infectada pelo patrão bissexual. Durante o filme, acompanhamos sua tragédia, desde a perda do emprego, a recusa de abrigo da família no interior e seu final anunciado.

Estou com Aids é filme conduzido com mão pesadíssima, mas jamais deixa de ser interessante – além da importãncia pelo seu pioneirismo no cinema brasileiro.

A Aids sob a lente do cinema

Especial A Aids e o Cinema Brasileiro

 

Por Adilson Marcelino

 

Como bem argumentou o pesquisador Carlos Alberto de Carvalho no artigo exclusivo para a Zingu! Memória e esquecimento da Aids  no filme Cazuza, o tempo não para, muito rapidamente o cinema se debruçou o tema. E brilhantemente, ele discorre sobre esse recorte, desaguando em considerações sobre o filme dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho.

Agora quando o recorte é quantidade de produções em longas, principal carro-chefe da produção,  nesses mais de 30 anos desde o surgimento da Aids, aí a situação não é nada atraente.

Se compararmos com outras tragédias que assolaram a humanidade,  como a peste negra, as grandes guerras mundiais, o holocausto,  e suas representações no cinema mundial, quando o assunto é Aids, o que se pode constatar é que o número de produção de filmes é bem inferior, sobretudo no campo de longa-metragem de ficção. Ou pelo menos do que chega até nós no circuito comercial.

Nesse universo nos lembramos de cara de filmes como  Mauvais Sang (1986), de Leo Carax, Filadélfia (1993), de Jonathan Demme,  Antes do Anoitecer (2000), de Julian Schnabel.

No cinema brasileiro não é diferente.

Desde o pioneiro docudrama produzido e dirigido por David Cardoso em 1986, Estou com Aids, com pouquíssima constância o tema resultou em longas de ficção no cinema nacional. E mesmo quando o formato é documentário em longa, quase sempre essas produções ficam confinadas nas TVs  Educativas.

Sérgio Bianchi foi outro pioneiro com seu interessante Romance (1988), perfeito representante do talento e do estilo cru e certeiro do cineasta.

Nelson Pereira dos Santos, considerado por muitos como o mais importante cineasta brasileiro vivo, foi dos poucos diretores do primeiro time que abordaram o tema. E ele fez isso elegantemente no subestimado Cinema de Lágrimas (1995).

Já nos anos 2000, foi a vez de chegar às telas a grande produção Carandiru (2003), de Hector Babenco, e a biografia Cazuza, o tempo não para (2004), de Sandra Werneck e Walter Carvalho.

Dentre os documentários, vale ressaltar O Olhar Triste (1995), de Olívio T. de Araújo, Positivas (2009), de Susanna Lira, e Dzi Croquettes (2010 – foto), de Tatiana Issa e Rafael Alvarez.

Todos esses longas estão focalizados nesse especial da Zingu! A Aids e o Cinema Brasileiro.

O Olhar Triste

Especial A Aids no Cinema Brasileiro

 

O Olhar Triste
Direção: Olívio T. de Araujo
Brasil, 1995.

Por Adilson Marcelino

 

Não foi nada fácil ser homossexual, prostituta, usuário de drogas injetáveis e hemofílico nos anos 1980. Não que não seja quase sempre, mas ali foi o epicentro em que a Aids surgiu como câncer gay, cujo vírus era transmitido via sangue e sexo. E o elenco acima era o acusador grupo de risco.

Não foi fácil também ver tanta gente, amigos, companheiros, familiares, caindo feito moscas, não sem antes sofrer todo tipo de preconceito e falta de estrutura médica.

Com o tempo, o termo grupo de risco caiu por terra, e a Aids se tornou uma tragédia mundial que ataca a todos.

Daí que, uma década e meia depois de seu surgimento, mas ainda em tempos de medo e cerceamento, o filme O Olhar Triste, de 1995, surgiu como um consolo. Não por despir-se de dor, pois os relatos são marcados por ela, por pessoas infectadas pelo vírus HIV em pleno susto. Mas por banhar esses depoimentos e essas pessoas com um olhar de tanta ternura e respeito.

O espaço aberto pela lente de Olívio T. de Araújo é para que os infectados e os doentes pudessem falar sobre suas vidas a partir daquele acontecimento trágico. Não como relatos de condenados à morte, como as manchetes da época propagavam, mas sobre um cotidiano ainda possível de abrigar sonhos e planos.

Triste triste triste, como está registrado em seu título, o filme, realizado no formato vídeo, é também uma aposta na esperança, pois aposta na vida. O Olhar Triste aposta na ternura.