Especial A Aids no Cinema Brasileiro
Memória e esquecimento da Aids no filme Cazuza, o tempo não para
Por Carlos Alberto de Carvalho
Em um artigo que publiquei em 2008 na revista portuguesa da Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação (Cinema e Aids no mundo da vida: representações de vida e morte), tentei responder à seguinte pergunta: por que, em tempo tão rápido, o cinema, inclusive o “hollywoodiano”, marcado pela perspectiva comercial em grande parte dos filmes, demorou tão pouco tempo para tomar a Aids como temática, considerando o seu surgimento e as primeiras produções a retratá-la? A indagação levou em conta que, inscrita inicialmente sob a ideia de incidência sobre “grupos de risco”, dentre eles destacadamente homossexuais masculinos, a temática poderia levar tempos para ganhar abordagens diretas, o que ocorreu com a própria homossexualidade, por décadas tema tabu, quando não proscrito, na indústria cinematográfica norteamericana. Assim nos descreve Vito Russo, no livro The celluloid closet, transformado em documentário com mesmo título, dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman. Retomo mais adiante as respostas que me pareceram plausíveis à época.
No Brasil, como em diversos outros países, a aparição pública da Aids, considerando a divulgação por produtos jornalísticos dirigidos a amplos consumidores, esteve muito associada a pessoas e/ou produtos culturais. Marcos Vinicius Resende Gonçalves, o famoso costureiro Markito, morto em consequência de complicações provocadas pela Aids em junho de 1983, foi provavelmente o primeiro brasileiro de fama a ajudar na disseminação de informações da síndrome entre nós, nos marcos da suposta incidência exclusiva sobre homossexuais masculinos. Tempos de terror, com manchetes escandalosas em publicações diversas, como “peste gay’, “câncer rosa” e derivadas. Mas no campo da ampliação dos conhecimentos no Brasil sobre a Aids, suas consequências e formas de transmissão, foi outra figura cultural importante e emblemática dos anos 1980 quem deu a maior colaboração, o cantor Cazuza. Sem medo de dizer sobre sua sexualidade, assim como encarando de frente a síndrome, Cazuza representou personagem única em um cenário marcado pelo pânico da exposição. E pagou preço elevado, de que a mais triste memória é a capa da revista Veja, publicada em 1989, que traz o cantor fotografado abatido, sob o título “Cazuza, uma vítima da Aids agoniza em praça pública”.
Passadas três décadas do surgimento público da Aids, o que é possível pensar sobre ela e seus primeiros impactos a partir do filme Cazuza, o tempo não para, dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho, com o ator Daniel de Oliveira em interpretação magistral como o cantor? Embora responder a essa pergunta implique em alguns riscos, sendo o maior pretender que o filme dedicasse mais tempo à temática da Aids e da homofobia que lhe foi fortemente associada nos anos iniciais da síndrome, é precisamente sobre este ponto que quero refletir. Diferentemente de um filme como Filadélfia, cuja história absolutamente verossímil não dizia imediatamente de um compromisso para além do ficcional, o filme sobre Cazuza, em que pesem licenciosidades poéticas aqui e acolá, retrata mais ou menos fielmente a trajetória do cantor, notadamente das suas primeiras investidas musicais ao aparecimento da Aids, que embora mostrada alterando suas rotinas, métodos então disponíveis de tratamento e a necessidade de encarar a morte, não vem associada aos preconceitos mais danosos que ela suscitou para pessoas, como Cazuza, também vítimas dos rechaços sociais advindos da vivência homoafetiva.
As indicações de preconceitos aparecem no filme de forma esparsa, como em uma fala de Cazuza em que ele diz que suas roupas e demais objetos de uso pessoal deverão ser separados, e no uso de máscara cirúrgica por sua mãe, no período de tratamento nos Estados Unidos. No mais, a Aids aparece como uma enfermidade qualquer, embora de tratamento difícil e pouco eficaz, como se naqueles anos ela não tivesse implicado às pessoas por ela atingidas sofrimentos psicológicos talvez mais graves do que as consequências físicas por ela imposta, sempre visíveis, como emagrecimento e manchas na pele, que dificultavam o ocultamento dos portadores da síndrome. Não cabe aqui um julgamento de qualquer ordem sobre a escolha da direção, produção e negociações de direitos de imagem sobre Cazuza quanto às escolhas da abordagem da Aids pelo filme. O que propomos, por outro lado, é uma reflexão sobre como o filme poderia também ter abordado, com a mesma coragem que Cazuza demonstrou ao longo da vida e no enfrentamento da Aids, temáticas mais espinhosas, como os preconceitos de diversas ordens implicados em ser diagnosticado com uma “doença” misteriosa, que deixava marcas corporais de difícil ocultamento, mas sobretudo, associada equivocadamente a “grupos de risco”, todos eles já de longa data marginalizados socialmente: homossexuais masculinos, prostitutas, usuários de drogas injetáveis e haitianos (estes nos Estados Unidos, devido ao tráfico de sangue). Somente hemofílicos, também apontados como pertencentes aos “grupos de risco”, não eram associados negativamente à síndrome, posto que vítimas involuntárias da necessidade de receberem hemoderivados para sobrevivência.
O rol de preconceitos é longo e incluiu discursos religiosos sobre castigos divinos dirigidos a pessoas que abusavam da sexualidade, sempre associando-a à promiscuidade, ao abuso no uso de drogas e a vidas desregradas. No Brasil, assim como em diversos países, os preconceitos chegaram a absurdos como slogans homofóbicos, dentre eles alguns associados, dentre nós, ao próprio Cazuza, como pesquisas em jornais da época mostrarão. Nesse sentido, o filme omite detalhes da trajetória do cantor que seriam didáticas para as gerações que não viveram os anos de terror do aparecimento da Aids. Mas a ausência mais significativa no filme de referências outras aos desafios enfrentados por Cazuza é sem dúvida a capa da revista Veja a que já fizemos referência antes. O filme poderia ter dado destaque a este episódio de triste memória de um tipo de jornalismo covarde, antiético, sensacionalista e desrespeitoso que, lamentavelmente ainda prolifera.
Antes de ser uma cobrança sobre o que deveria ter sido tematizado, destacar temáticas avivadas como memória e aquelas destinadas ao esquecimento no filme Cazuza, o tempo não para, tem aqui o objetivo de mostrar o quanto a Aids continua de difícil abordagem, mesmo após transcorridas três décadas do seu surgimento como questão pública. Retomar as hipóteses que levantei no artigo de 2008 sobre Aids e cinema, desse modo, ajuda a compreender um pouco dos desafios impostos pela Aids à sociedade. Ali eu propus que dentre os motivos plausíveis para entender as razões de a Aids ter aparecido “precocemente” como tema para o cinema, apesar de ser de difícil abordagem, poderiam estar: 1) o fato de a indústria cinematográfica ter vivenciado em seu interior o impacto da Aids, que atingiu produtores, agentes, e artistas, dos quais o mais importante foi certamente Rock Hudson, cuja homossexualidade acabou revelada junto com a notícia da causa de sua morte; 2) mesmo quando pautado pelo ficcional, o cinema tem historicamente fabulado sobre questões candentes do mundo da vida, não lhe sendo possível ignorar temas como a Aids; 3) A Aids apareceu em diversos filmes quase como uma “personagem” a humanizar outras personagens, como em Filadélfia, no qual o advogado homofóbico revê seus valores e preconceitos, ou no filme A cura, uma espécie de conto de fadas no qual o menino bad boy transforma-se em amigo atento em busca de cura para a doença do novo amigo, inicialmente vitimizado pelas maldades de quem agora luta contra a morte e aqueles que demonstram preconceito contra o coleguinha.
Assim como no artigo de 2008, encerro as reflexões aqui lembrando uma ambiguidade da Aids, qual seja, a de que se ela representou uma séria ameaça de extinção da espécie humana, em determinado período de desconhecimentos sobre suas causas, consequências para os portadores e formas de transmissão, por outro ela foi a oportunidade para revisão de valores equivocados agravados pelo preconceito. Desse modo, a Aids chamou atenção para as dificuldades que a própria ciência médica tem na determinação exata das doenças que tem sob objeto de pesquisa, mas sobretudo trouxe à tona a homofobia de uma forma até então desconhecida por nossas sociedades, contribuindo, contraditoriamente, para que o combate de preconceitos homofóbicos se intensificasse. No filme Cazuza, o tempo não para, temos apenas alguns desses elementos em destaque, restando lacunas de memória sobre a Aids que os anos 1980 trouxeram de forma assustadora para alguns.
Carlos Alberto de Carvalho é professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, onde desenvolve pesquisa sobre as relações entre Aids, homofobia e cobertura jornalística, com financiamento da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFMG e da Fapemig.