Dossiê Jair Correia
Parte 1: Infância e inspirações artísticas
Zingu! – Como era sua infância?
Jair Correia – Minha infância foi normal, como a de qualquer outro garoto da periferia paulistana da década de 60: brincar na rua, jogar bola, fazer e soltar pipa, mas encontrava tempo para atividades pessoais com meus livros infantis e minha grande coleção de brinquedos de forte-apache. Tive um tio que me presenteou com sua coleção de Seleções Reader’s Digest, aproximadamente 200 revistas. Na verdade, ele queria se livrar daquilo e não teve idéia do efeito que este gesto teve em minha educação. O meu gosto pela leitura surgiu de um volume muito grande livros que me possibilitou de ler. Aprendi muito cedo a ler e escrever; entrei na escola com cinco anos, no meio do primeiro ano, e já sabia ler, escrever e a “tabuada”. Já tinha noções de desenho – naturalista, of course: o lápis preto e os coloridos passaram a ser meus objetos de brincadeira, desenhava tudo e todos.
Z – Como foi crescer em São Paulo?
JC – Cresci em clima de repressão política, meu pai era metalúrgico do ABC e havia em casa certo desconforto, principalmente quando ele ia às reuniões sindicais. Mas meu pai sempre procurou tornar tudo tranqüilo. Morava numa região que parecia cidade do interior, era tudo muito campestre. A primeira vez que vi cinema foi uma projeção de Paixão de Cristo numa área ao ar livre. Tive a sorte de ter bons amigos de infância e adolescência. Eram pessoas diferentes e multi-raciais, que me ofereceram o gosto de conhecer gente de todos os lugares. Estudei nas melhores escolas da região. Quando optei por estudar numa escola particular para cursar o colégio, minha família não tinha condições de arcar com as despesas, então ofereci, em troca de minha bolsa, criar e pintar, ou colar em 20 painéis que haviam nos corredores do colégio. Eles aceitaram e esta parceria durou quatro anos. Na disciplina de artes, fui cenógrafo de uma peça teatral, era “O Planeta dos Palhaços”, de Lourenço Paschoal Teudech. A professora inscreveu esta peça no Festival de Teatro de Santo André e ganhamos nove prêmios, inclusive o de melhor cenografia. Foi uma professora também que me inscreveu numa exposição de artes plásticas na Galeria Prestes Maia em São Paulo, e considero como sendo a minha primeira exposição coletiva, em 1970; tinha 14 anos.
Z – O que o levou a se interessar pelas artes, em geral? E pelo desenho e pelas artes plásticas, mais especificamente?
JC – As possibilidades e as oportunidades. De certa forma, tudo foi caindo em minhas mãos. Ganhava muitos livros, ia ao cinema em São Caetano do Sul, participava de trabalhos escolares com meus amigos de curso que exigiam grande esforço para garantir boas notas. Minhas primeiras pinturas foram feitas em papelão de caixa de embalagens, pintadas com tintas que sobravam durante a reforma da casa de meus pais. Com poucos anos de vida, seis/sete anos de idade, gostava muito de desenhar as pessoas, parentes, etc. Desenhei meus avôs, meus tios, minha mãe, meu pai. Lembro de ter desenhado meu tio com sua Harley Davidson detalhadamente. Um primo meu deixava que eu visse os comics que ele conseguia. Isto era escondido no forro de uma varanda – é bom que se esclareça que naquela época era proibitiva a leitura de gibis, de histórias em quadrinhos; fazíamos isto às escondidas. Assim conheci o Príncipe Valente, Thor, Batman, Super Homem, além dos cômicos, Luluzinha e Bolinha, Riquinho, enfim, os desenhos da época. Maurício de Souza estava lançando seus desenhos na Folha de São Paulo e também acompanhava. Quando saiu a Mônica em revista, fui logo comprar. Colecionei as revistas da Disney desde o número 1, o que incluía Pato Donald, Mickey e Tio Patinhas. Este universo me chamou a atenção e comecei a desenhar quadrinhos.
Z – Você chegou a trabalhar em jornal, certo? Como foi isso?
JC – Jornal era praticamente uma leitura obrigatória, em casa, aos domingos. Meu pai comprava o Estadão, que era uma massa de papel com informação de todo tipo. Eu ia com ele à banca de jornal para fazer a compra e aproveitava para ver as novidades que haviam por lá. Além da leitura, me interessava a estética. Em 69, surge o O Pasquim, que para mim representou a revolução da forma de fazer jornal. Comecei a comprá-lo no início dos anos 70. O dono do colégio onde estudava me procurou para dizer que queria fundar um jornal e me propôs que fizesse a editoria de arte e desta forma iniciou-se um novo trabalho em minha vida. No jornal, havia espaço para uma diagramação contemporânea e avançada que precedeu a transformação gráfica introduzida pelos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde. Havia espaço também para quadrinhos e divertimentos como forma de atrair pessoas jovens ao hábito da leitura. Com isso, fui criando um arsenal de material gráfico que possibilitou a distribuição de clichês do meu trabalho de história em quadrinhos e páginas de divertimentos para diversos jornais do estado de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Como aos 16 anos já era auto-suficiente, pedi ao meu pai que me emancipasse, fomos ao cartório e tudo foi legalizado. O jornalismo me deu muito conhecimento e abriu muitas portas, conheci muita gente importante e influente, de artistas a políticos, e meus amigos passaram a ter o dobro de minha idade. Não que fossem velhos, eu que era muito moço. Entrevistei e fotografei Johnny Mathis, Gal Costa, Rita Lee em todas as fases, Billy Paul, entre vários outros artistas para o jornal. A atleta Simone, que se transformaria em cantora, também foi entrevistada por mim quando a Seleção Brasileira de Basquete Feminino ganhou a medalha de ouro no Campeonato Sul-Americano em 70. Enfim, tive uma adolescência bem agitada.