O Que É Cinema Brasileiro?

Por André Setaro 

  

Walter Hugo Khouri e Odete Lara nos bastidores de Noite Vazia

Qual o fator gerador da nacionalidade de um filme? Creio que seria a produção, a origem do capital, mas a questão é controversa. O que faz de um filme ser brasileiro? Se o capital investido é oriundo do Brasil, o filme é nacional. Mas aí entra outra questão polêmica. Se o capital é brasileiro, mas o diretor e a equipe técnica e, mais importante, a temática abordada, não possuem afinidade com o Brasil? Neste caso, o filme seria ainda brasileiro? 

O caso das co-produções, raras no país, remete para a predominância dos recursos. O resultado, no entanto, é sempre híbrido, e o filme, muitas vezes, torna-se apátrida. Vejam-se os exemplos das obras cinematográficas co-produzidas na Europa nos anos 60 e 70, principalmente as vinculadas aos thrillers e aos westerns-spaghettis. Nestes, havia até três países associados na produção, e os exemplos são numerosos de filmes co-produzidos entre a Itália, a Espanha, e a Alemanha. 

Quando Marcel Camus veio filmar a peça de Vinicius De Morais Orfeu da Conceição, em 1959, o filme que brotou da empreitada, Orfeu negro, foi considerado, por muitos críticos, entre eles o ensaísta baiano Walter da Silveira, um “filme estrangeiro”. É que, apesar de rodado no Rio de Janeiro, com boa parte de seu elenco constituído de atores brasileiros, a produção era de fora, e o diretor, na verdade, aproveitou-se do décor exuberante para dar uma visão estrangeira do onírico e poético texto dramático do célebre Vinicius. 

O que faz um filme ser brasileiro? O ideal seria que tanto o capital investido como a equipe técnica e a temática escolhida tivessem raízes nacionais. Alguém pode contestar que Vidas secas (1964) e Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, entre tantos outros, não sejam filmes genuinamente brasileiros? 

Na época de seu lançamento, Noite vazia, de Walter Hugo Khoury, foi contestado na sua brasilidade pelos cinemanovistas de plantão e de patrulha. Acusaram Khoury de expressar uma visão burguesa influenciada pelo cinema de Bergman e de Antonioni. Mas não se trata também, ainda que em outro prisma e em outra estética, do drama de homens brasileiros envoltos em seus traumas existenciais? A questão, aqui, é representativa de uma radicalização, de um sectarismo, poder-se-ia dizer, do que é brasileiro em relação a suas raízes verdadeiras – questão, aliás, que me parece bizantina e anacrônica nestes tempos chamados pós-modernos. A filmografia de Walter Hugo Khoury, e de todos os outros que lhe seguiram os passos estéticos e temáticos, é tão brasileira quanto os filmes oriundos dos postulados cinemanovistas (que, por outro lado, tinham também influências alienígenas: neorrealismo italiano, nouvelle vague etc). 

Para problematizar um pouco, recorro da memória em relação a um debate ocorrido para se definir o que seria o filme baiano. Alguns, mais radicais, consideravam que para um filme ser baiano precisaria que o capital fosse totalmente oriundo do estado. Outros, mais abertos, mas, nem por isso, menos sectários, apegaram-se à temática. Acredito, neste caso, que o fator gerador da baianidade de um filme tenha muito a ver com a origem de sua produção. Na ocasião da discussão, citou-se o exemplo de Deus e o diabo na terra do sol. Sobre ser uma obra baiana na sua essência e nas suas raízes, com a equipe técnica formada em sua maioria por gente da terra (exceção de Yoná Magalhães, Waldemar Lima, o fotógrafo, entre poucos), o filme, no entanto, foi produzido inteiramente pela Copacabana (Rio de Janeiro), de Álvaro Barbosa. Não se pode negar, entretanto, que Deus e o diabo na terra do sol seja um filme baiano, enquanto que há casos nos quais, realmente, a questão é mais polêmica. Cidade Baixa e Quincas Berro D’Água, ambos de Sérgio Machado, aproveitam, apenas, o décor soteropolitano, mas são obras financiadas por produtores sulinos (Walter Salles, primeiro caso, a Globo, Quincas). Não poderiam, em minha opinião, constar de um catálogo que porventura fosse inserir uma filmografia genuinamente baiana. 

O Brasil, pulverizado por vários tipos de culturas regionais, não é, portanto, um monolito cultural. Brasileiros são todos os filmes que, obedecendo a alguns critérios, como os já citados, espelhem as ambigüidades, as contradições, as maneiras de ser do homem que habita o nosso território. O cinema é, em consequência, um corolário de uma cultura rica e multifacetada, desde os filmes de Mazzaropi, as chanchadas, as diatribes da Boca do Lixo, o cinema underground ou marginal, o Cinema Novo, as pornochanchadas, as películas da Vera Cruz, a obra de Humberto Mauro etc. Algumas fases do cinema nacional foram desprezadas, por contrariedade de uma crítica ideológica, mas que estão, nos tempos atuais, sendo resgatadas (como a efervescência pornochanchadística e o chamado cinema popular pornoerótico) por investigações de uma nova crítica, a exemplo das análises de Andrea Ormond feitas em site do espaço virtual (Estranho Encontro). 

Há, portanto, uma série de elementos a considerar: a produção, a temática, o oportunismo para o aproveitamento do décor, do cenário, de sua cultura etc.