Meu tio matou um cara
Direção: Jorge Furtado
Brasil, 2004
Meu tio matou um cara não é um filme considerado um jovem clássico do cinema brasileiro, como já parecem consagrar as “sociochanchadas” (feliz termo cunhado por Andrea Ormond, colega da Zingu!) — filmes que alegadamente debatem o cotidiano cívico da realidade brasileira, como se falar em “realidade” em cinema já não fosse bastante questionável. Meu tio matou um cara também é sobre realidade, mas não a forjada nas manchetes politiqueiras de jornais rabo-preso: é a realidade do cinema, a vida dos personagens, sua empatia e seus dramas, sua presença e sua capacidade de atração. E como eu já fui adolescente, sinto que o filme me captura também aí: como sou barco de mil portos, tenho vários faróis, e este filme de Jorge Furtado pode bem ser um deles.
A relevância de tudo está em seu descompromisso: não há um grande tema, um monólogo sobre a vida e a morte ou um debate acerca de mídia, guerra, violência. É uma aventura urbana de um garoto, em meio a sua família e seus desejos. Mas é importante por isso: porque quem chega com discurso entalado na garganta não fala nada de realmente espontâneo, e a retórica geralmente mata a oratória; Meu tio matou um cara é tremendamente simples de vários pontos de vista, e isso não só não enfraquece sua estrutura como ainda é uma de suas bases.
Em superfície, a história de um menino investigando um delito. Mais além, sua relação com os parentes, a menina por quem tem uma quedinha (e que, evidentemente, não parece corresponder), sua própria persona evoluindo para quem age ao invés de cogitar, e que cria pessoalmente sua história. Cercando tudo, o olhar atento de um diretor que sabe o que é uma câmera, conhece cinema e sabe criar planos, fugindo da estética televisiva dos filmes com elenco global — e este filme volta e meia passa na Globo —, construindo uma trama atraente e que não deixa de ter sua malícia, seus subentendidos, sua sutileza.
A sutileza, aliás, não está só nos minutos finais da fita, que surpreendem pela singeleza das revelações, mas por todo o filme; então, ainda que o protagonista pareça apático e expresse-se meio preguiçosamente, seu esforço em entender o que ocorreu com o tio e o tal crime que lhe é imputado comprovam que, para Furtado, esse disfarce é mais uma aparência falsa, reflexo da idéia que o cinema apresenta de encontro àquelas pessoas referenciadas no primeiro parágrafo (os maníacos por “realidade”): cinema é imagem, imagem pode ser falsa, mas, mesmo falsa, a imagem é verdadeira porque foi filmada desse jeito e o filme são imagens em movimento.
Isso na verdade não é algo metido a filosófico, mas uma simples constatação do grande mérito do filme: ele é honesto, mas sinceridade não implica bobice. É um filme nada bobo, a despeito de sua despretensão e visível relaxamento. O frescor é na verdade para contradizer as evidências, pois o cinema de Jorge Furtado não é indolente a ponto de reforçar-se com insistência pegajosa: assim, a “gostosa” feita por Deborah Secco é em verdade uma mulher perigosa, que faz do corpo e da manha uma arma protetora contra tudo que a persegue e desagrada — ela é a clássica mulher da última palavra, que convence com “biquinho” (ou, no caso, “biquininho”), deixa os homens na mão com sua vontade escorrida de madame ingênua, “inocente”; e Sophia Reis, a menina do corpo ainda em formação, muito jovem, é ela quem representa a maturidade, a sabedoria adquirida, crescendo ao longo do filme enquanto mulher e enquanto pessoa. Não é um novo tipo de feminismo que Jorge Furtado propõe em Meu tio matou um cara, que, acima de tudo, passa longe do panfleto: é que o filme não força nada para parecer científico ou moral, então nada mais natural que esses enganos advindos do preconceito, revelando as faces humanas.