Entrevista Especial: Hernani Heffner – Segunda Parte – Parte 6

Entrevista com Hernani Heffner
Parte 6 – Cursos de cinema

Por Luiz Alberto Benevides

Z: Dando aula especificamente dessa cadeira? 

Hernani: Eu dava aula no Mam, vivia no mesmo espaço, os dois lados da moeda. 

Z: Os alunos iam de bom grado assistir aula no Mam? 

Hernani: Foram… 

Z: De manhã? 

Hernani: De manhã (risos), supostamente às oito, começava às nove. Eles gostavam muito, porque eu tinha na minha cabeça algumas premissas de trabalho… não obrigo ninguém a estudar, então os mecanismos clássicos didáticos, presença, nota, tudo eu implodia no primeiro dia de aula quando eu chegava pra eles e: “Olha, todo mundo ganhou dez, todo mundo tem 100% de presença; quem quiser vir ao curso vem, quem não quiser já sabe que tá aprovado e pode ir embora”. Você não tem uma obrigação; você tem que ter um desejo, e não uma obrigação. Estudar obrigado é a pior coisa que existe na face da terra e eu não conheço ninguém que tenha se dado bem por ter estudado obrigado. Por outro lado era película, então você já tinha VHS e tava começando o DVD, mas eu queria mostrar que o filme brasileiro tinha uma qualidade estética maior, e que essa qualidade só podia ser percebida se você visse os filmes da maneira adequada. O que chegava ao vídeo, o que chegava ao DVD eram materiais muito inferiores porque a opção econômica para a produção desses materiais era ruim. Por exemplo, os filmes brasileiros lançados em VHS eram telecinagem de cópias 16 mm, a imagem era degradada e o som era abafado ao extremo. 

Z: E a janela? 

Hernani: A janela cortava, etc. Então você tinha tido um contato com o filme brasileiro ali àquela altura completamente errado. Por outro lado, a projeção tem características particulares próprias, que você só entende a beleza de um Os Fuzis, a beleza de um O Grande Momento, a beleza de um Ganga Bruta se você vir isso projetado! Se você não vê isso projetado, perde essa referência de forma total e absoluta. 

Z: Você conhece, com os avanços da tecnologia, você consegue explicar se existe alguma espécie de equipamento de reprodução/projeção da imagem que consiga ter uma fidelidade à película? 

Hernani: A Jabulani é uma bola de material sintético, não é uma bola de couro como nos anos 50; o Pelé chutava a bola de couro, o Kaká chuta a bola plástica. São bolas? São bolas. Mas o efeito, o traço, a trajetória muda de uma coisa pra outra. Não tem como você reproduzir um filme de película em um outro meio, não se tem como se reproduzir 100% uma tecnologia. Ela não é duplicável, ela tem especificidades que não serão alcançadas por uma outra equivalente. E não é o caso de achar que uma é melhor que a outra e coisas do gênero, é simplesmente respeitar as especificidades disso. Se você quer ver uma pintura em afresco, você necessariamente vai ver uma pintura rachada, porque o gesso racha; se você for ver uma pintura a óleo ou a pasta, você vai ver uma outra coisa; você tem imagem, você tem quadro, você tem pintura; mas a relação com isso é necessariamente diferente. Então você ver uma projeção em película e você ver uma projeção em vídeo é diferente. 

Z: E como é que um, vamos dizer, um Bertolucci, que já sabia que um filme dele iria sair em DVD como Os Sonhadores… como você acha que um cineasta que foi criado no sistema analógico….(Hernani interrompe) 

Hernani: Presta atenção, você está misturando duas coisas: eu estava dando aula para pessoas que iam fazer cinema; e nesse sentido elas tinham que ter a percepção do que tinha sido todo o momento anterior. O Bertolucci, quando faz o filme dele, ele sabe que o filme vai chegar ao espectador comum; nesse momento, esse espectador comum não está interessado se a textura é fotoquímica ou se a textura é geográfica, porque ele não segue a textura, segue a história. Do ponto de vista da história é a mesma coisa: eu vi televisão nos anos 70, preto e branco, som mono e mesmo assim gostava dos filmes porque não me interessavam as questões técnicas. Quando eu me interessei pelas questões técnicas dos filmes, aí eu tive o interesse se o filme está sendo projetado da maneira correta, na velocidade correta, com a janela correta etc. Pro espectador isso não quer dizer nada, ele nem sabe disso, o filme não vem com bula. Os Sonhadores pode ser um filme 1:85 e ser projetado 1:66 que o espectador não vai saber, pode ser 1:85 e ser projetado com uma lente 1:66 que ele não vai saber; então ele assume tudo aquilo como parte artística do filme. O espectador nunca foi treinado pra perceber essas coisas, basicamente segue a história e aceita como a história se apresenta ali na frente dele. Se ele entrou em contato com Os Sonhadores só em DVD, o filme pra ele é aquilo; e isso não é demérito pro filme, é só uma forma do filme se apresentar. Que ele vai ter uma diferença em relação ao formato original vai, mas isso não o afeta como uma narrativa, e basicamente o cinema comercial é um cinema narrativo. Aqueles artistas que têm preocupações na forma como o espectador vai ver, aí ele põe lá as restrições todas, “só veja em tais e tais e tais circunstâncias”, ele controla. Mas estes são raros, bem raros. 

Z: Terrence Malick… 

Hernani: Então, como eu estava ensinando para estudantes de cinema, aí tinha esse rigor. Aí se justificava você ter essa preocupação de se deixar os alunos à vontade, ou seja, vem se quiser, estuda se quiser, e ter ali uma circunstância que ele descobriria que “aaah, não é aquilo que eu pensava, não é aquilo que eu via em VHS, não é aquilo que me falaram”… não, não era, né? 

Z: E qual a reação que você teve deles nesse sentido? 

Hernani: Ah, uma reação muito entusiasmada, uma reação de fascínio pelo filme brasileiro em película. Uma reação de descoberta porque aquela já era uma geração formada ou no VHS ou no DVD. 

Z: 2001, isso? 

Hernani: 2000, 2001. Então esse contato com o filme brasileiro antigo em película, que era bem raro ali naquela altura – porque poucos tinham chegado ao VHS e nenhum tinha chegado em DVD, hoje em dia isso já é um pouco melhor – era de descoberta absoluta, de você ver Os Óculos do Vovô em película, de você ver Fragmentos da Vida em película, ver uma chanchada da Atlântida, ver Ganga Bruta, ver Deus e o Diabo na Terra do Sol em película… isso já não circulava mais amplamente ali àquela altura. Então eu acho que isso foi importante pra eles. Inclusive os levou a ficarem pedindo cursos com película; foi daí que surgiu o famoso curso do Odeon, que foi um curso pra comunidade em geral e não especificamente para alunos universitários. E eu tive lá desde gente com 13/14/15 anos até senhores e senhoras com 60/70 anos… e como era no cinema, como era em película e como era um curso longo, de 1 ano e 3 meses, as pessoas tiveram os mesmos resultados. 

Z: Você deu aula na Uff até…? 

Hernani: Eu dei aula na Uff de 2000 a 2007. Cinema brasileiro dentro do Mam, preservação eu dei no Mam e lá na Uff também, porque preservação não tinha projeção. 

Z: Então o curso do Odeon chega depois de sete anos de aula? 

Hernani: Não, o curso do Odeon aconteceu em 2005. Ele foi, na origem, um pedido dos voluntários que trabalhavam ali no Mam, que eram estudantes, que tinham estudado comigo (eu já não dava mais cinema brasileiro na Uff, só dava preservação) e eles queriam ter um curso diferente, queriam ter um curso não-linear do cinema brasileiro. 

Z: Não-linear? 

Hernani: É, que não viesse lá do final do século XIX e chegasse progressivamente até o início do século XXI. Eles queriam um curso que tivesse recortes temáticos. E aí eu comecei com uma coisa em torno da classe média, formação da classe média e da apreensão ou não desse segmento pelo cinema brasileiro. A gente teve dois meses de aulas e projeções lá no Mam, mas depois ele se tornou inviável lá e eles continuaram insistindo em ter o curso. Alguns destes alunos pertenciam ao cineclube Tela Brasilis, todos os membros tinham sido meus alunos, e eles continuaram insistindo “vamos fazer, vamos fazer, o cineclube apresenta o curso” e tal, e eu disse “olha, fora a Cinemateca, onde é que a gente vai arranjar um cinema?”. A gente tentou alguns lugares e não deu certo, a certa altura eles insistiram “pô, é uma pena não ter” e eu disse “olha, a gente pode tentar o Estação, vamos ver se eles cedem na parte da manhã um cinema maior.” Ai eu fui conversar com o Estação, que disse “o Estação mesmo não dá, mas poderia ser feito no Odeon”; e ai tinha um custo alto e pra mim aquilo ia inviabilizar completamente o curso. 

Z: Qual foi o horário e a freqüência proposta? 

Hernani: Era sábado de oito e meia da manhã à uma da tarde… 

Z: Durante um ano e três meses? 

Hernani: Não, num primeiro momento eles só cederam R$ 7500 o aluguel por seis meses. Eu fui falar com os rapazes do Tela Brasilis e eles pra minha surpresa resolveram tentar conseguir os alunos para pagar este curso. Eu impus uma restrição, porque eu sempre dei curso de graça, eu sou contra cobrar, eu não queria cobrar; mas sem cobrar não tinha como viabilizar o curso no Odeon, e ai eu disse “olha, vamos tentar, mas cobra uma taxa simbólica por mês, cobra dez reais por mês de cada pessoa. Eles viram que era difícil conseguir o dinheiro cobrando isso mas também concordaram que não era pra ganhar dinheiro com isso, era pra difundir o conhecimento, estabelecer uma relação com o cinema brasileiro. E eles correram atrás, o Estação ajudou muito lá com a mala direta deles, e eles surpreendentemente conseguiram 400 alunos pagantes. A gente inclusive fez uma coisa muito legal que foi oferecer 200 vagas para Ongs, gratuito. 

Z: Tinha algum limite de idade? 

Hernani: Não, não tinha, algumas coisas você diz pró-forma como “inapropriado para dez anos” mas se entrar um bebê entrou (risos). Eu não tenho problema com isso, a malícia está na cabeça das pessoas. E aí eles conseguiram viabilizar, a primeira aula foi absolutamente assustadora porque eles me colocaram lá no palco e o Odeon ficava na penumbra, então eu não enxergava ninguém, eu só sabia que estava cheio, um mar de gente ali. 

Z: Você estava na luz e eles no escuro? 

Hernani: É, jogaram a luz em cima de mim e eu em cima do palco, uma situação extremamente desconfortável, fiquei muito nervoso com aquilo, mas fiz lá a aula, apresentei lá. Duas semanas depois disse “ah, não vou ficar lá em cima não, e vim pra baixo” (risos). Eles tiveram que se virar lá pra registrar , e registraram o curso inteiro, mas eu fiquei embaixo. 

Z: Na segunda aula você já desceu? 

Hernani: Não, eu fiquei acho que duas ou três aulas. E depois eu não sou estrela, não sou candidato a nada… isso é muito estranho, eu também quero ver as pessoas, então aí eu vim pra baixo e fiquei ali embaixo… e é óbvio, era um curso que se propunha a ser muito longo, no final das contas ficaram ali umas 200 pessoas, o resto fazia uma aula ou outra, aparecia uma vez ou outra, mas o núcleo real do curso foram umas 200 pessoas. E a gente conseguiu viabilizar um segundo módulo que foi bem maior e bem mais caro também, foi R$ 11.500 que o Estação cobrou… e aí o curso total durou um ano e três meses. Basicamente foi no Odeon e, quando o Estação precisava do Odeon, a gente fazia no Paissandu, onde a projeção era pior, mas era um cinema mais aconchegante, mais legal. Então tudo certo e o curso foi muito bem-sucedido e a gente conseguiu passar… 

Z: Quantos alunos? 400? 

Hernani: A gente chegou a  ter quase 600 alunos, mas que freqüentaram 1 ano e 3 meses eu te diria uns 200. Isso os meninos lá do Tela Brasilis podem te dizer melhor do que eu. Coisa do Rodrigo Bouillet, que fez a coisa de dar diplomas… mas uns 200, que pra um curso era muita gente e tal, mas o grande atrativo era ver os filmes, o curso se propunha a fazer uma introdução, eu dava lá um tópico mas o que se propunha era passar os filmes. 

Z: O Odeon tem mais de 580 lugares. Tinha gente no balcão também? 

Hernani: Ah, nos primeiros dias tínhamos o balcão lotado (risos). Eu ficava maluquinho… foi de janeiro de 2005 a… março de 2006, alguma coisa assim. E enfim, deu certo, foi super bem sucedido, a produção enorme, mas que funcionou. 

Z: Aí, de outubro a dezembro de 2008 e de março a maio de 2009, você volta com aquele curso de história do cinema brasileiro no Mam… 

Hernani: É, aquilo foi uma obrigação que a Petrobras impôs ao Museu, por conta do patrocínio. No contrato tinha algumas obrigações da parte do museu, e uma delas era a criação de cursos e a colocação deles à disposição da sociedade. A certa altura a direção do Museu pediu pra eu dar o curso, e aí eu resolvi fazer um curso menor, mas relativamente grande ainda, durou 5 meses. Idealizei um curso menor, inicialmente era para funcionários da Petrobras, depois se abriu pra comunidade. Você tinha ali no começo umas 80 pessoas, depois ficaram freqüentando mesmo umas 30, 40 no máximo. Mas também foi muito bem realizado, superdivertido, e diferente do curso do Odeon; a maior parte dos filmes que eu passei no curso do Mam não passou no do Odeon. Então foi um curso na verdade diferente, com outras perspectivas, outras discussões etc. E isso cumpriu lá a exigência, e era um curso mais tranqüilo porque era à noite, durante a semana, dentro da Cinemateca, a produção era mais simples, ficou mais tranqüilo de se realizar.

Parte 7

Entrevista Especial: Hernani Heffner – Segunda Parte – Parte 5

Entrevista com Hernani Heffner – Segunda Parte
Parte 5 – Crise na Cinemateca

Por Luiz Alberto Benevides

Z: de 99 a 2002? 

Hernani: Isso, porque você sempre acreditou que a instituição Cinemateca do Mam era de uma importância auto-evidente. E o que se descobriu através desse processo foi que não; por exemplo, a comunidade cinematográfica não apoiou a permanência dela, muito pelo contrário, né? Virou as costas pra ela. E se a Cinemateca tivesse desaparecido ali, não teria gerado maiores questões, o que pra mim soava como um absurdo completo: a mesma coisa que de repente você pegar a Biblioteca Nacional, lá tem um problema, uma crise… “ah, então vamos fechar e criar outra coisa”. Se esquece o passado de uma forma muito rápida, muito violenta… e enfim, parece não ter maior repercussão de um ponto de vista concreto. 

Z: Explique um pouco dessa crise, as origens dela. 

Hernani: As origens remotas têm a ver com o incêndio do Mam em 68. A partir desse momento o Mam perdeu a proeminência de difusão cultural na cidade do Rio de Janeiro, ficou fechado durante anos… perdeu espaço, né? Perdeu o acervo de artes plásticas quase todo e de cinema não perdeu nada! Mas alguns erros já foram cometidos ali àquela altura… a diretoria do museu, com medo de um novo incêndio, pegou o acervo de nitrato da Cinemateca do Mam e mandou pra Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Aí se perdeu lá, uma grande ironia, né? 

Z: Se perdeu quando? 

Hernani: Em 81 e 82, em dois incêndios na Cinemateca Brasileira. De outro lado, em 85, reabriu o museu, mas sempre com muito pouca verba, sempre com uma equipe com uma formação não adequada ou minimamente adequada, e sempre com muita dificuldade em se conseguir recursos. Essa dificuldade se aprofundou ao longo daquele período de crise econômica no Brasil e isso chegou a uma crise monumental ali em 97, quando o Museu deixou de pagar salários durante vários meses. Isso acabou levando o presidente do Museu, que era o Manuel Francisco do Nascimento Brito, que era o dono do Jornal do Brasil – e a tradição do Mam é que seus presidentes são ligados a empresas jornalísticas, o Niomar do Correio da manhã, o Nascimento Brito do JB e atualmente o Chateaubriand que é ligado aos Diários Associados -, a colocar sua filha pra dirigir o Museu ali em 98, que é a Maria Regina do Nascimento Brito, e ela decidiu reorganizar administrativamente o Museu. O Mam tinha 250 funcionários e caiu pra menos de 50 em 2 anos; e a certa altura ela decidiu que o Museu não tinha condições de guardar filmes, e que se tinha que devolver estes filmes aos seus produtores. Isso acabou sendo feito de uma forma muito autoritária e gerou um escândalo público, porque ela literalmente ligou para os produtores dizendo “seus filmes estão aqui, não queremos mais, não podemos mais guardar, por favor venha aqui e retire”. Nesse momento a comunidade cinematográfica, em vez de incentivar a manutenção da Cinemateca do Mam, acabou assumindo uma atitude muito dispersiva, né? Dizendo “não, então me dá de volta, vou pra um outro lugar, não quero mais saber da Cinemateca”; virou as costas para a Cinemateca. E ela perdeu quase 90% do seu acervo: no ano 2000 tinha 100.000 rolos e em 2002 ficou só com 17.000. Isso quase destruiu a Cinemateca. Foi um período muito difícil internamente, de muito atrito. E felizmente isso também provocou um desgaste do papel, da posição da Maria Regina dentro do Museu, e ela acabou saindo em 2003. A nova diretoria entendeu que a Cinemateca era algo importante, que devia permanecer, ela começou a se reconstituir lentamente e ainda está neste processo. Mas hoje, por exemplo, a Cinemateca tem 60.000 rolos. Conseguimos recuperar em parte, continua com alguns problemas estruturais, enfim, dificuldades de sobreviver. 

Z: Qual era a função da Susana Schild em novembro de 95 quando ela te contratou? 

Hernani: Ela era diretora da Cinemateca. Ficou até 97. No auge da crise ela saiu. Aí entrou em 97 a Telma de Souza Mello, que durou um ano e pouquinho, entrou o Francisco Moreira, que durou um ano e pouquinho, entrou a Lucia Lobo que não durou nem um ano, e a partir de 2000 assumiu o Gilberto Santeiro como curador. 

Z : E a Maria Regina era diretora da Cinemateca? 

Hernani: Diretora executiva do Museu. De 98 a 2003. 

Z: Ficou 5 anos então? Te chamaram pra trabalhar no Mam, você aceitou e não sabia, foi pego de surpresa por essas crises? 

Hernani: É, todas essas crises foram novidades, quando eu entrei em 96 eu não tinha conhecimento do quão profunda era a crise interna. Ela estourou pra mim de uma forma surpreendente em 97. Eu sempre tive a ideia de que o Mam tinha problemas, mas que os problemas não eram tão profundos assim tendo em vista a magnitude da instituição, a importância da instituição, o fato de ser uma instituição tombada. Mas o tamanho da crise era realmente muito grande, isso ficou muito complicado a partir de 97 e só foi se aprofundando. Até 2003. 

Z: Eram discordâncias entre os mantenedores, basicamente isso? 

Hernani: Não, não, eram discordâncias de filosofias de trabalho: de que o museu, em função da escassez de recursos, não tinha condições de cuidar de duas áreas ao mesmo tempo, a área de artes plásticas e a área de cinema, e como o Museu tinha como objetivo original ser basicamente focado nas artes plásticas tradicionais, a Maria Regina acabou entendendo que o cinema era algo muito caro, muito complexo que exigia muito dinheiro, pessoal com uma formação técnica muito alta, e que o Museu não tinha como dar conta. 

Z: Quando a Cinemateca foi criada? 

Hernani: Em 1955. 

Z: E o Museu? 

Hernani: Em 48. Ambos foram criados antes da construção do prédio que está lá hoje. A Cinemateca foi criada em 55 e funcionou até 60 no auditório da ABI. Então o Mam cresceu com a Cinemateca, faz parte da sua história. O grande problema é que você nunca teve condições estruturais, porque o Museu não foi criado para ter acervo; aquele prédio nunca foi pensado para ter reserva técnica. E uma instituição que hoje tem 25 mil obras de arte, 60 mil rolos de filme, mais de 2 milhões de itens documentais, tem problemas estruturais. Então o problema é que na hora em que as coisas se tornam críticas, a primeira solução aventada – e isso não é novo na história do Museu – sempre é tirar a Cinemateca. 

Z: E quando houve esta determinação, quanto mais ou menos desse acervo foi pra outra cinemateca como a Brasileira ou pra algum outro centro de conservação? 

Hernani: A rigor, 83% do acervo da Cinemateca se perderam, foram para o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Cinemateca Brasileira, CTAv… e alguns produtores levaram para casa, o Silvio Tendler e o Alexandre Niemeyer, do Canal 100, levaram pra casa. Então a rigor, se aquele processo tivesse continuado, a Cinemateca de fato tinha desaparecido. Foi muito difícil recomeçar quase do zero. 

Z: Quem substituiu a Maria Regina? 

Hernani: Foi o Hélio Portocarrero. 

Z: E ele estancou esse processo imediatamente? 

Hernani: Não só estancou como reverteu. Deu todo apoio à Cinemateca, conseguiu uma verba junto ao BNDES pra reconstituir a reserva técnica, ter equipamentos de trabalho, ter uma nova estanteria… e a gente pode recomeçar a trabalhar. 

Z: E quanto tempo durou este processo de retomada? 

Hernani: De reconstituição, até 2007, 4 anos. De 2007 em diante eu posso dizer que a Cinemateca retomou suas atividades básicas, mais tradicionais. Porque até a exibição de filmes na época da Maria Regina foi suspensa. 

Z: Mesmo com cobrança de ingressos? 

Hernani: Ela suspendeu a cobrança de ingressos e depois suspendeu as sessões, isso só foi retomado de uma forma regular na época do Hélio. 

Z: Quem foram as pessoas da comunidade cinematográfica que defenderam a Cinemateca nesse período, publicamente, dignas de menção? 

Hernani: Todas as pessoas que defenderam são dignas de menção. Houve uma tentativa de defender a Cinemateca através de um abaixo-assinado organizado pela Ieda Rozenfeld, cineasta e pesquisadora, e ela conseguiu coletar 4 mil assinaturas. Muita gente se manifestou ali nesse documento, vários cineastas se manifestaram ali nesse documento. 

Z: Em 2002? 

Hernani: Ao longo de 2002 e 2003. Mas na prática, na hora em que o Museu solicitou que você tirasse os filmes da instituição, muito pouco se fez. Eu lembro que o Sérgio Santeiro, por exemplo, se recusou terminantemente a retirar seus negativos de lá. Havia às vezes ameaças de mandar o filme pra casa da pessoa, deixar no meio da rua. E ele dizia, “não, pode deixar; eu não vou tirar, pra mim a Cinemateca tem que continuar, eu quero que meus filmes continuem aí e eu não vou retirar nada”. Mas como ele, poucos; a imensa maioria acabou atendendo ao pedido do Museu, retirou seus materiais, acreditou no discurso de que a Cinemateca não tinha condição alguma de preservação e isso determinou inclusive um momento em que a Cinemateca passou por uma imagem pública muito ruim. As pessoas acreditaram nessa ideia de que a Cinemateca era o pior dos mundos, com condições trágicas etc. etc. etc., como se não houvesse ali um trabalho mínimo de conservação, que há. Tem problemas? Tem, mas não muito diferentes de várias outras cinematecas do mundo. Aliás, a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro está melhor que a grande maioria das cinematecas, mesmo com todos os seus problemas. 

Z: A maresia seria um problema? 

Hernani: Claro. O problema estrutural da Cinemateca vem de algumas questões básicas. Primeiro, a instituição ter sido criada pra não ter acervo, portanto não conceber na sua planta original um conjunto de áreas que funcionaria como reserva técnica. Nesse sentido, você está trabalhando com um prédio que tem que ser adaptado, e que só pode ser adaptado até certo ponto, porque é um prédio tombado, é uma glória da arquitetura modernista mundial, então você não pode mexer estruturalmente no prédio. 

Z: O prédio é de quem? 

Hernani: Do Reidy. Afonso Eduardo Reidy. Outra coisa: é um prédio modernista, de concreto e vidro, ou seja, é um prédio onde a transmissão de energia, de luz e de calor é total. Se você faz uma reserva técnica, é tudo contra o que você luta o tempo todo. Além do fato da instituição ter sido concebida pra não ter acervo, o museu era pra ter um conjunto de exposições temporárias e não permanentes, ele foi instalado literalmente no mar! Foi instalado num aterro ao lado da Baia de Guanabara, do Oceano Atlântico, da maior porção de água do mundo e isso evidentemente, numa cidade que já é uma cidade tropical, uma cidade extremamente úmida, você estando ao lado do oceano, tem uma taxa de umidade astronômica. Ali na beira do Museu você tem uma umidade que gira em torno de 80%. Significa uma luta permanente contra a umidade que afeta muito negativamente os filmes. Só pra você ter uma ideia, no depósito principal da gente, nós temos quatro desumidificadores ligados 24 horas por dia pra baixar esta taxa, pra trazer pra em torno de 50%, 55%, que ainda não é a ideal. O ideal seria baixar esta taxa para 30%, mas isso implica num maquinário e numa área que não há condições ali de se estabelecer uma estratégia desse tipo. A outra questão é: se você está ao lado de um oceano, está ao lado de água salinizada, popularmente conhecida como maresia. Então originalmente os cinemas trabalhavam com latas: você mandava pras salas de exibição os rolos em latas, d os mais variados materiais, desde um alumínio bruto até uma lata que recebia uma laca anti-aderente… e essas latas em geral se oxidava muito fortemente, essa oxidação reage quimicamente, provoca detritos físicos, gera abrasão etc. E você tem uma dificuldade muito grande de acesso a estojos de plástico. Hoje, mais da metade do acervo da Cinemateca do Mam está em estojo, não está em lata; mas ali, quando eu assumi em 99, era 100% lata. Então você teve um esforço muito grande ao longo destes 10 últimos anos, de passar de um material que oxidava tremendamente, que gerava um custo enorme e tinha uma implicação de conservação muito grande, para um outro material que pelo menos evita esse tipo de conseqüência, embora não evite a umidade. 

Z: Plástico? 

Hernani: É, mas pelo menos as conseqüências da maresia você tem conseguido evitar e tem conseguido gerar ali uma nova condição de conservação, Hoje em dia a gente tem ar condicionado industrial, ele funciona 24 horas por dia, ele tem backup, você trabalha com uma temperatura de 14 graus lá dentro… quer dizer, conseguiu dar uma outra condição de guarda dentro do museu que eu considero bastante satisfatória e atingiu uma premissa interna que a gente tinha colocado que era cumprir o pré-requisito da Unesco. A Unesco estabelece que só há conservação de qualidade quando o objeto, o bem, ele dura mais de cem anos; então pra você conseguir condições de temperatura e de umidade que reunisse condições  que projetasse a vida útil dos rolos para mais de 100 anos, isso foi atingido em 2006 através da reforma patrocinada pelo BNDES. O plástico pelo menos minora os efeitos. O prédio do museu, das áreas de reservas técnicas esta do lado do oceano, mas essa condição não favorece a preservação dos filmes por conta desta altíssima taxa de umidade, por conta desta maresia, e pela dificuldade e do custo que você tem em enfrentar tudo isso. 

Z: E o momento da distribuição, quando a Cinemateca se desfez de boa parte do seu acervo, quanto desse acervo foi pra lugares que tivessem condições de conservação adequadas? 

Hernani: Naquele momento, o lugar que você tinha melhor condição era a Cinemateca Brasileira, mas foi o que talvez menos tenha recebido. O Arquivo Nacional teve que criar condições para abrigar o material que saiu do Mam, e a maior parte foi pro Arquivo Nacional…

 Z: E ele não tinha uma cinemateca? 

Hernani: Não, ele tinha um acervo muito pequeno, esse acervo era guardado em condições bem básicas, e com o volume de material que chegou do Mam, quase 50 mil rolos, eles tiveram que criar outras condições, e estas condições são bastante razoáveis, mas não são melhores que as do Mam. 

Z: A taxa de umidade não é menor? 

Hernani: É um pouco menor, mas o Arquivo Nacional guarda os filmes no centro da cidade do Rio de Janeiro, do lado da Presidente Vargas. 

Z: Fuligem? 

Hernani: Fuligem, gases, o fato de você estar em uma área muito quente da cidade, não tão longe do mar, se você pensar que depois da Candelária você tem o mar, isso não evita tanto… enfim, eles também tiveram que enfrentar o mesmo problema que o Mam porque o prédio que eles ocupam foi criado pra Casa da Moeda, não foi designado para a guarda de filmes. É um prédio de concreto e que também transmite muito calor, essas coisas todas. O CTAv tinha uma condição bastante razoável também, com um volume não muito grande, mas com um certo volume, mas de uma maneira geral, quer dizer, você tinha condições melhores em São Paulo, não tinha tão boas condições aqui no Rio… mas nada muito significativamente melhor que a Cinemateca do Mam. Por exemplo, em São Paulo você guarda em torno de 10 a 16 graus e  a gente guarda a 14; no Arquivo Nacional se guarda de 14 a 18 graus e a gente guarda a 14; no CTAV se guarda de 12 a 16 graus e a gente  guarda a 14; quer dizer, tá todo mundo muito próximo ali de uma média que é em torno de 14 a 15 graus, que não se altera significativamente se você sair de um lugar para o outro. 

Z: E a desumidificação? 

Hernani: Ai é que esta a grande diferença porque a Cinemateca Brasileira conseguiu uma desumidificação em torno de 30 a 40% de umidade relativa do ar. Eles tem uma desumidificação industrial, isso nenhum outro arquivo brasileiro tem, nem o CTAv, nem o Arquivo Nacional, nem o Mam, nem a Cinemateca Paranaense, nem a Fundação Joaquim Nabuco ou o arquivo do Distrito Federal. Nenhuma outra tem uma desumidificação industrial e isso faz muita diferença, isso aumenta significativamente a vida útil do material se você tem desumidificação num nível controlável. Então isso hoje dá uma vantagem à Cinemateca Brasileira bastante grande sobre os outros arquivos, mas não é algo que você não possa introduzir. Ali no Mam a gente tem o planejamento de se colocar as resistências industriais e aí puxar essa umidade para em torno de 40%, o que levaria a perspectiva dos nossos filmes pra mais ou menos 250 anos. Então você estabeleceria de fato um trabalho de longo prazo junto ao acervo do Mam. E isso, pra gente que ressurgiu das cinzas em 2003, constituímos a infra-estrutura básica em 2006, se a gente conseguir implantar isso em 2011 ou 2012, quer dizer, em menos de uma década a gente saiu do nada para uma base que vai levar o acervo para 250 anos! Eu diria que é a recuperação mais rápida na história dos arquivos brasileiros desde que eles existem ali a partir do final dos anos 40/50, tanto que a maior parte dos arquivos leva de 20 a 30 anos para se estruturar, a gente conseguiu com toda a dificuldade do mundo, com uma equipe mínima, mas com muito apoio da atual diretoria, a gente conseguiu se recuperar em menos de uma década. E temos uma perspectiva de finalmente estabelecer a base definitiva no próximo ano ou no máximo em 2012. Desde 2003 a gente vem fazendo um trabalho de requalificação do acervo, o acervo cresceu, o acervo brasileiro voltou a ter importância, a gente tem vários materiais… 

Z: Alguém devolveu? 

Hernani: A gente não quis. A gente não quis ter a atitude que os outros arquivos tiveram conosco. A grande questão é que nós não tivemos o apoio da comunidade cinematográfica e dos principais produtores, isso inclui os profissionais, isso inclui as instituições e isso inclui os arquivos. Nenhum arquivo se recusou e tentou manter de fato a Cinemateca do Mam. Nesse sentido, quando nós nos recuperamos, nos reestabelecemos e reabrimos de fato de uma forma regular. Em 2003, a gente podia ter vindo a público e dizer “nós não desaparecemos, por favor devolvam nossos acervos”. Não. A gente não foi atrás de ninguém, nós não fomos cobrar uma fatura que supostamente nos era devida. A gente tinha, digamos, talvez um argumento moral, uma argumento ético de dizer “isso nos pertencia, por favor nos devolva”. A gente deixou cada um com sua consciência, cada um com sua postura. 

Z: Mas houve devolução espontânea? 

Hernani: Muito poucas. Alguns poucos vieram e recolocaram ali, porque tinham uma ligação histórica com a Cinemateca, porque entenderam que o que tinha sido feito era algo criminoso, porque achavam que tinham que dar força para a Cinemateca. 

Z: Alguém que vale a pena ser mencionado? 

Hernani: Eu não gostaria de destacar um ou outro e ficar… eu acho que as pessoas que tiveram este gesto tiveram a consciência e o carinho devido para com a instituição, enquanto os outros não, e a nossa postura foi uma postura de “olha, nós não vamos fazer com ninguém o que fizeram com a gente”. Eu acho que a gente manteve ao longo deste processo uma posição ética pública, porque eu participei de muitos debates ali em torno das questões envolvendo a Cinemateca. Sempre deixei claro pra todo mundo que estava havendo uma falta de apoio para a preservação não dos filmes, porque o que eu sempre coloquei que o que estava em jogo e estava em risco ali não era o desaparecimento de um ou outro rolo, de um ou outro filme, o que estava em jogo ali era o desaparecimento da instituição. O que eu sempre cobrei é: “Ninguém está interessado em preservar a Cinemateca do Mam?”. Uma instituição que tinha uma história gloriosa, que tinha apoiado a atividade cinematográfica de forma decisiva ali nos anos 60, nos anos 70, que tinha se colocado ao lado de todas as lutas do cinema brasileiro e na hora que ela precisou ninguém se colocou ao lado dela? Então, no momento seguinte que a gente sobreviveu praticamente por conta própria, por nossa própria conta e risco – com ajudas sim, com apoio sim, mas de uma parcela muito pequena da comunidade cinematográfica – a gente não quis assumir esta atitude predatória e selvagem de “vamos lá, agora tem que devolver tudo porque isso é nosso”. Primeiro, porque a gente sempre teve consciência de que não era nosso, era da comunidade, da sociedade, era de todos aqueles que se preocupam com isso. Se naquele momento aquela preocupação foi deixada de lado, agora a gente não ia assumir a mesma atitude, correndo todos os riscos que ela envolve. Riscos técnicos, toda vez que você move um acervo ele perde durabilidade; riscos éticos, quer dizer, você assumir esta atitude de que você é dono no grito; riscos políticos, quer dizer, você gerar uma luta intestina sobre quem tem direito de preservar o quê, quando todos deveriam estar trabalhando para preservar o conjunto. No meu ponto de vista, e no da Cinemateca do Mam, é que isso não é uma disputa, não é uma corrida, não é quem joga melhor ou quem faz mais: todos estão jogando o mesmo jogo, todos estão no mesmo lado, não estão em lados opostos. Então pra gente não tinha muito sentido você reabrir a questão, reabrir a ferida, reabrir a disputa, porque se transformou numa disputa. Se você pegar as matérias que saíram na época, parecia uma briga Rio-São Paulo, parecia uma briga Fla-Flu, parecia um jogo. Pensou-se muito pouco no que estava em jogo ali naquele momento. Então a gente não assumiu essa disputa. Assumimos as perdas, né? Porque pra nós o mais importante era preservar a Cinemateca. A Cinemateca sobreviveu, se recuperou, foi adiante, e tanto isso se tornou significativo que hoje ela esta aí com todos os seus problemas, mas também com todas as suas qualidades, e continuou sua história: tem mais de 55 anos, e enfim, mais de meio século de existência, e vai chegar a um século, independentemente do que quer que aconteça lá. 

Z: Então voltando: você no meio disso, porque você não estava querendo trabalhar lá, e te chamaram para trabalhar e de repente você foi surpreendido nisso, como no pior da crise você arrumou forças pra conseguir…? 

Hernani: Olha, você tem que tomar algumas decisões, e a minha primeira decisão lá no Mam foi não compactuar com aquilo. Cheguei a pedir demissão à Maria Regina, ela me pediu o prazo de um mês, porque ela não tinha ninguém que soubesse lidar com aquilo e ela precisava encontrar alguma pessoa. Aí essa informação de que eu tinha pedido demissão circulou, algumas pessoas me ligaram preocupadas com o destino dos filmes, eventualmente com o destino dos próprios filmes, eventualmente preocupada com o destino dos filmes em geral, o que ia acontecer se não tivesse alguém que minimamente zelasse por aquilo, controlasse e desse uma saída organizada e etc. 

Z: Você estava sozinho, né? Porque em 99 tinha saído o Francisco. 

Hernani: Isso, exatamente. Outras pessoas me ligaram dizendo que era preciso resistir de alguma maneira e eventualmente tentar fazer com que a Cinemateca sobrevivesse. E era uma decisão difícil, né? Porque ali naquele momento, você não tinha perspectiva palpável de que a diretoria fosse trocada, de que aquele processo fosse interrompido, de que você poderia vir a ter uma espécie de final feliz adiante. Tudo se desenhava no sentido negativo, num sentido de que a Cinemateca talvez viesse a se encaminhar pro seu fim. E era uma decisão difícil, porque estar associado não só ao desmonte, mas ao encerramento de uma instituição… por outro lado tinha um compromisso ético em relação ao material. Qualquer que fosse o destino da instituição, eventualmente o material era algo a ser cuidado, a ser preservado, a ser levado adiante independente de qualquer coisa, porque era um acervo cultural, um acervo histórico, um acervo documental da maior importância para a sociedade brasileira e você não podia colocá-lo a mercê de perdas de qualquer natureza, por falta até de intimidade com aquilo. E aí eu acabei tomando a decisão de ficar, foi uma decisão difícil, uma decisão muito complicada, que levou a um desgaste pessoal muito grande… porque era preciso enfrentar aquilo cotidianamente e ir trabalhar todo dia num clima muito adverso, numa atmosfera muito ruim, vendo colegas sendo despedidos, as pessoas tendo suas vidas transformadas de uma hora pra outra e isso às vezes era muito complicado, eu tinha filhos pequenos naquele momento: meu primeiro filho nasceu em 98, meu segundo filho nasceu no meio da loucura, em 2001. Enfim, eu tinha que dar atenção a uma coisa e outra. Então foi uma decisão muito complicada, uma decisão que me levou a um desgaste pessoal muito grande, uma decisão que implicava inclusive em resistir, um trabalho de resistência a tudo que estava acontecendo, mas com uma perspectiva muito nebulosa de que se fosse conseguir sair daquilo de uma forma positiva. Até se conseguir sair daquilo de uma forma positiva, mas isso eu só fiquei sabendo depois; durante é sempre complicado. Aí, inclusive esta coisa de dar aulas acabou se transformando em algo bastante positivo, porque era o momento de você pensar em outra coisa, era o momento de você dar um tempo daquele processo, era uma forma inclusive de você rejuvenescer um pouco, porque eu já tinha 30 e tantos anos, aí se encontram jovens de 17/18/19, que vivem num outro mundo, numa outra perspectiva, com uma outra discussão, e você trabalhava – pelo menos no curso de história do Cinema Brasileiro –sobretudo a coisa estética, não é nem a história pela história, é muito mais a ideia de que existia uma arte no filme brasileiro e que aquilo tinha que ser exposto, reconhecido, discutido… e isso era bacana, trazia uma energia muito positiva naquele momento.

Parte 6

Entrevista Especial: Hernani Heffner – Segunda Parte – Parte 4

Entrevista com hernani Heffner – Segunda Parte
Parte 4 – Mam, Cinédia, pesquisa

Por Luiz Alberto Benevides

Z: Você não teve uma série de cadeiras básicas, né? 

Hernani: É, eu fui aprender por conta própria, tanto uma coisa quanto outra, porque você não tinha cursos dedicados a isso, ou porque você tinha deficiências grandes na universidade naquele momento sobretudo porque era um período de formação, de crise econômica. 

Z: E em 83 foi o ano do concurso? 

Hernani: Foi o ano do concurso, o resultado saiu em novembro de 83 e a gente começou a trabalhar em 84. Na Cinearte a gente ficou um ano e meio, e no Edgar a gente ficou até 88. 

Z: Então você começou a ter uma oportunidade com a Cinédia antes de terminar esses trabalhos? 

Hernani: Bem antes, no meio do caminho, na verdade, 86. E no Mam desde 84 eu já era voluntário, além da indexação da Cinearte eu fazia outras coisas, participava de outras coisas. Já a partir de 86, ora eu ajudava na documentação, ora ajudando nos arquivos do Chico. Durante quase dez anos eu e Chico fomos apanhar coisas nos mais variados locais e buracos, lugares estranhos etc., sempre tinha alguém com um bando de filmes, e ele era sozinho… O Chico –Francisco Moreira – era o responsável pelo arquivo de filmes da Cinemateca. E eu ia muito com ele e a gente conversava sobre um assunto que ninguém gostava, que era tecnologia de cinema antigo. Então ele conhecia muito e eu gostava daquilo e ficava chateando ele: “Conta aí, e a tal câmera? E gravador, e tal isso, e tal aquilo”. E ele conhecia bastante, aí a gente se aproximou e de vez em quando ele tinha essas tarefas de arrumar a lataria, ou ir buscar um lote de filmes em tal lugar, eu ia junto, achava aquilo divertidíssmo, e aí enfim, fui me aproximando cada vez mais desse universo do arquivo de filmes propriamente dito. A gente fez dezenas de viagens por todo o estado pra ir buscar coisas. 

Z: Sempre no Rio? 

Hernani: Sempre no Rio. Fora do Rio não dava (risos), a verba era complicada. Mas no Rio a gente se aventurava, ia buscar coisas, às vezes entupia um caminhão, às vezes era só um carrinho, mas a gente estava sempre indo atrás das coisas. 

Z: Não só filmes? 

Hernani: Não, às vezes documentação, enfim, quando a gente foi à RFF, distribuidora do Roberto Farias, tinha muita documentação num galpão ali na Pereira da Silva [rua do bairro carioca de Laranjeiras], e a gente entrava naqueles galpões absolutamente infectos e tirava as coisas de lá. 

Z: Era perto do [morro] Pereirão ou mais pra cá? 

Hernani: Mais pra cá, bem mais pra cá. Era na verdade na primeira curva da rua, a sede da RFF ficava um pouco mais acima. Mas pegávamos equipamentos, um monte de coisas, e íamos aumentando significativamente o acervo da Cinemateca. Então eu passei de 86 até 2000 me dividindo entre a Cinédia e a Cinemateca e basicamente entre pesquisa e voluntariado na área de filmes. Em 2000 é que isso mudou, porque fui convidado a dar aula na Uff. A universidade estava novamente em crise, uma carência de professores muito grande, vários professores regulares tinham ido fazer doutorado e pós-doutorado… alguns tinham falecido, Antonio Carlos, que foi meu professor, tinha falecido recentemente… tinha menos da metade do corpo docente naquela altura e a Universidade arrumou um concurso de professor substituto naquela altura, alguns professores lembraram de mim e me contataram. Num primeiro momento eu não quis, porque eu nunca quis dar aula. Achava que esse negócio de dar aula era muito delicado, uma coisa específica que requeria um talento particular que eu achava que não tinha, e também porque eu achava que a Uff era muito bagunçada. 

Z: Você gostava do quê? De pesquisar? 

Hernani: É… minha vida sempre foi mais a pesquisa do que qualquer outra coisa. Naquela altura eu já não fazia mais pesquisa… curiosamente, em fevereiro de 1996 aconteceu a tragédia com a Cinédia que foi a enchente em Jacarepaguá. Então eu deixei de fazer pesquisas pra ir cuidar dos filmes. A Cinédia tinha um estúdio, né? Um estúdio que o Adhemar Gonzaga tinha construído lá a partir de 56, e era um conjunto de estúdios e palcos, tinha 4 palcos na época. A empresa alugava principalmente pra Rede Globo, tinha lá Malhação, telenovela, de vez em quando faziam um filme, e todo o acervo de filmes documentais da companhia estava lá. Isso significava que você tinha um tesouro ali. E de um dia pro outro, devido à chuvarada na cidade, e ao fato de que lá em Jacarepaguá você tinha uma represa um pouco além da Cinédia… por uma imperícia do responsável, ele abriu as comportas, pois ele ficou com medo da represa estourar, então ele abriu as comportas. E aquilo se tornou em uma tragédia monumental em Jacarepaguá com dezenas de mortos, mais de 70 pessoas, e a força das águas atingiu tudo que tinha pela frente, inclusive a Cinédia. Os filmes ficaram embaixo d’água, debaixo da lama. Então, como toda a história da companhia estava ali, se deixasse se perder, tinha acabado. Então eu parei com as pesquisas todas e fui trabalhar com isso, e a gente decidiu restaurar esse acervo que havia se perdido. 

Z: E você já tinha algum know-how de conservação no Mam? 

Hernani: Nenhum. 

Z: Então você era um pesquisador, você não conhecia nada de conservação? 

Hernani: Não, não tinha o menor interesse real por isso. Só trabalhava com a pesquisa histórica. Tinha noções muito vagas pois convivia com o Francisco Moreira… 

Z: E o Francisco Moreira? Me fala da formação dele. 

Hernani: Ele tinha feito Cinema na Uff e depois tinha se especializado em preservação de filmes. Estudou na Alemanha Oriental, na Staatliches Filmarchiv [Arquivo de Filmes do Estado] e depois nos Estados Unidos, no UCLA Film Archive, passou um ano em cada um desses lugares, nos anos 80. Como ele conhecia muito eu não me via ligado a isso, só o acompanhava pelos filmes que nós recolhíamos: quando você recolhe o filme, recolhe a possibilidade de ver o filme, estudá-lo, conhecer dados técnicos; mas não de conservá-los, isso era uma tarefa só dele. Aí naquele momento, tendo que cuidar do acervo de filmes da Cinédia, a D. Alice não confiava em ninguém… e aí eu não tive muita opção: eu tive que assumir essa tarefa, a gente começou logo no ano seguinte em 97, começamos pelo Ébrio e vínhamos fazendo isso até agora em 2010. Todo o material da companhia foi duplicado ou restaurado ao longo destes 13 anos. Em 99, passou uma diretoria bastante atribulada que acabou despedindo o Francisco. E eu acabei assumindo o lugar dele por falta absoluta de opção, pois não tinha mais ninguém. Foram despedidas tantas pessoas do setor que, quando despediram o Francisco, acabaram jogando no meu colo essa batata quente que era cuidar do arquivo de filmes. E logo em seguida veio o convite para dar aula na Uff, e esse convite também era em um caráter desesperador, a escola estava com poucos professores, com dificuldades de oferecer as disciplinas para os alunos. Eu em um primeiro momento recusei, depois foi feito um pequeno lobby, Serra, Tonico, Cordeiro, que eram professores de lá, ficaram me cantando pra pelo menos ir fazer a prova… era uma coisa muito engraçada… eu nem me inscrevi para fazer a prova; eles me inscreveram (risos). 

Z: Era prova pra qual cargo? 

Hernani: Professor substituto. Aí eu acabei indo fazer a prova, me provocaram. Aí fui fazer a prova, prova prática, dei uma aula lá… no final eles vieram conversar comigo dizendo que era importante que eu trabalhasse, que a escola precisava desse apoio naquele momento, que achava que eu tinha capacidade pra isso etc. E eu acabei topando, na verdade era uma vaga, mas entraram dois professores, que éramos eu e o Lécio, nós dois fomos dar aula no curso de cinema da Uff e aí eu impus uma condição, quer dizer, a matéria que deram era história do cinema brasileiro… aí eu impus uma condição que era dar aula do meu jeito, nos meus termos e onde eu quisesse. Eu tentei dar aula em Niterói, mas não tinha condição nenhuma porque a minha premissa era dar aula com película, aula do jeito que os filmes são, ou seja, pra serem projetados em sala grande, com som adequado e isso não tinha condição na Uff porque o cinema da universidade [Arte-Uff], em geral, estava cedido na parte da manhã – que era quando eu dava aula – pra ensaio de orquestra, pra uma série de outras atividades que, enfim, tinham mais importância do que a aula. E aí eu acabei trazendo a aula para a Cinemateca, no Rio, e eu dava a aula pela manhã ali no Mam. Aí dei aula durante um ano de história do cinema brasileiro. Nesse meio tempo, a crise particular da Cinemateca se aprofundou. 

Z: Qual foi esse período? 

Hernani: Entre 2000 e 2002. Essa crise se aprofundou, aí por sugestão do professor João Luiz Vieira, se criou uma disciplina de preservação de filmes na Uff. De um lado, com intenção de formação mesmo de mão-de-obra, já que inclusive eu estava sozinho na Cinemateca. De outro lado, como uma tentativa difusa de eventualmente criar um fato novo e impedir o desmonte da Cinemateca do Mam, que acabou acontecendo. E aí, eu passei a dar aula de história do cinema brasileiro e de preservação. 

Z: Isso em 2000? 

Hernani: Preservação a partir de 2001. Quando acabou o período lá como professor substituto, eu não quis continuar dando a cadeira de cinema brasileiro, porque tinha um professor regular que era o Roberto Moura. Mas a cadeira de preservação, eu me ofereci para continuar dando porque eu achava que aquilo ali era importante, porque não tinha nada regular no Brasil, porque achava que, enfim, ao longo de 50 anos se tinham formado 4 ou 5 pessoas no máximo e essas pessoas não tinham conseguido transmitir esse conhecimento e essa informação de uma forma mais ampla. E eu resolvi continuar na Uff como professor voluntário e fiquei como professor voluntário de 2001 a 2007. Em 2007, eu achei que a missão de ensinar preservação já estava concluída. É um tipo de matéria em que você tem que dar a mesma coisa todo ano. É técnica. Eu não gosto de ficar repetindo a mesma coisa, chega uma hora que satura. Aí em 2007, eu deixei de dar a disciplina. Aí entrou um outro professor, o Rafael De Luna e, em 2009, houve um concurso, a e a disciplina se tornou obrigatória no currículo da Uff. Hoje em dia ela tem um professor regular, que é o Fabián Nuñez. Ela se institucionalizou. 

Z: Voltando pra 96, você teve a enchente em fevereiro de 96, e qual foi a época que você foi contratado para trabalhar no Mam? Antes você era voluntário… 

Hernani: Janeiro de 96. 

Z: E você tinha sido contratado como..? 

Hernani: Eu era curador de documentação. Se criou um vazio na documentação da Cinemateca, que estava sem chefe já havia algum tempo… 

Z: Anos? 

Hernani: Não lembro. A chefe era a Silvia Oroz, ela deixou de ir a certa altura, eu não sei exatamente quando. Mas enfim, a Susana Schild, que era diretora da Cinemateca naquele momento, já vinha conversando comigo a rigor, desde 94, queria que eu entrasse na Cinemateca e eu estava sempre recusando, eu queria ficar só na Cinédia e só nas pesquisas, eu fazia voluntariado etc. e tal, ajudava mas não queria um compromisso formal. 

Z: O seu primeiro emprego foi mesmo a Cinédia? 

Hernani: Cinédia. 

Z: Carteira assinada? 

Hernani: Isso, a gente brincava, eu e Lécio, que éramos os únicos pesquisadores cinematográficos de carteira assinada do mundo (risos). 

Z: Tirando o leste europeu (risos). 

Hernani: Não existia, né? Pesquisador de carteira assinada era um negócio meio esquisito. Mas a gente era. Aí em novembro de 95, a Suzana me pressionou na parede dizendo “Vem, vamos fazer uma experiência e tal, você vem e começa”, aí eu fui adiando e adiando, mas em janeiro eu fui e comecei a ir todo dia, e na época você trabalhava meio período só mas eu chegava as nove da manhã e saia às dez da noite, e ela viu que eu ficava lá praticamente o tempo todo, que tinha muito problema… 

Z: E a Cinédia enquanto isso? 

Hernani: Cinédia, eu ia de tempos em tempos, porque quando eu entrei na Cinédia em 86, estabeleci uma regra pra D. Alice: eu venho quando necessário. Apesar de ser um funcionário de carteira assinada eu não batia ponto, e pesquisa você faz muito mais fora do ambiente de trabalho do que no ambiente de trabalho, e escrever você escreve em casa. Eu ia quando ela precisava de mim. Quando não precisava, e naquela altura eu já tinha dez anos de Cinédia e já sabia exatamente o que precisava e o que não precisava, se eu tinha que fazer isso ou aquilo. Era o ano em que ela estava lançando o Palácios e Poeiras, livro pro qual eu tinha feito a pesquisa toda alguns anos antes, de 92 até mais ou menos 95… e quando você sai de uma pesquisa tão longa, tão exaustiva, você na realidade quer fazer outra coisa completamente diferente, quer dar um tempo daquele assunto… foi o momento que coincidiu de eu ir parar na Cinemateca, até um pouco pra refrescar um pouco a cabeça… tinha muitos problemas, aí mergulhei mesmo nos trabalhos lá. E a Susana disse “Não, se você tá trabalhando tem que receber de forma regular”… ela me contratou meio que na marra. Logo depois eu vinha pra Cinédia, eu me dividia entre as duas coisas e na Cinemateca fiquei três anos como curador de documentação, de 96 a 99; em setembro de 99 o Francisco foi despedido e eu virei o responsável pelo arquivo de filmes. Assumi a função de conservador. 

Z: Isso teve alguma relação com o know-how de conservação que você teve por causa da enchente da Cinédia? 

Hernani: Olha, o caso da enchente da Cinédia era um trabalho muito pontual: não se tratava mais só de conservar o que tinha sido atingido pela chuva, pois aquilo ia deteriorar – como deteriorou – anos mais tarde. No caso da Cinédia era uma questão ou de restaurar ou de duplicar; então, se fazer um material novo e obviamente ter a preocupação de salvaguardar esse material novo. A questão da Cinemateca era diferente: tinha um acervo, e você tinha que conservar esse acervo, que era uma coisa muito complicada nessa altura porque era um acervo muito grande; quando o Francisco saiu a Cinemateca tinha cem mil rolos. Era um acervo pra mim desconhecido; por mais que ele me ajudasse, toda hora telefonava pra ele e tal, mas por mais que ele me ajudasse eu tinha que dar conta de uma coisa física à minha frente e isso foi muito difícil porque eu não sabia de forma mais profunda o que era o trabalho de conservação, tinha vagas noções. Isso em 99, então eu tive que aprender, estudar, ler, e inclusive na prática gerar alguma experiência. E logo em seguida veio a crise da Cinemateca em 2002 e parte dessa experiência se perdeu. De qualquer maneira foi importante ali entender os mecanismos de uma cinemateca, de alguma maneira tentar salvar a Cinemateca do Mam, aquele período foi um período muito difícil e de um aprendizado muito grande.

Parte 5

Entrevista Especial: Hernani Heffner – Segunda Parte – Parte 7

Entrevista com Hernani Heffner
Parte 7 – Preservação, conservação, restauração, novas tecnologias

Por Luiz Alberto Benevides

Z: A essa altura você já tinha várias noções de conservação e você explicou alguns efeitos químicos de deterioração da película. Você aprendeu isso ao longo do seu tempo de cinéfilo mesmo ou…? 

Hernani: Não, eu aprendi isso basicamente a partir de 96, a partir da tragédia dos filmes da Cinédia, e depois trabalhando na Cinemateca do Mam. Aí eu fui ler a literatura técnica, procurar alguns livros, conversei com pessoas… aí eu fui descobrir o que era. Eu não me considero uma pessoa profundamente esclarecida. Li até o ponto que foi suficiente pra cuidar basicamente dos filmes, pra ter uma atuação positiva sobre eles… e pra ensinar, né? Na Uff eu ofereci um curso de introdução para a preservação e a restauração, um curso com os conceitos, as ideias, as práticas, mas não as técnicas. As técnicas em geral as pessoas foram aprender fora do Brasil, eu estimulei muito os alunos, aqueles que realmente se apaixonaram pela área, a fazer os cursos fora, ir pras cinematecas estrangeiras e tal. 

Z: Alguma em especial? Quais são os grandes centros de restauração? 

Hernani: Basicamente, você tem Estados Unidos e Europa, e alguns dos alunos do curso fizeram estágios na Cinemateca Portuguesa que é muito boa, na Filmoteca Española, em Madri, onde você tem um dos maiores especialistas em conservação de filmes do mundo que é o Alfonso Del Amo. Você teve gente que passou pela L. Jeffrey Selznik School of Film Preservation, na George Eastman House… gente que passou pela UCLA, gente que agora está começando a passar pela Cineteca di Bologna… enfim, os grandes centros do mundo começam a ser explorados por essa geração que passou ali pela Uff no começo da década, na primeira década do século XXI e que agora está ganhando o mundo, está ocupando os espaços, os postos, está desenvolvendo um trabalho. Tem um grupo no CTAv que está fazendo um trabalho primoroso, de grande qualidade, que virou referência. 

Z: E a formação de preservador foi mais autodidata? 

Hernani: Foi completamente autodidata, eu nunca fiz curso de preservação. Eu posso dizer que tive um mestre que foi o Francisco Moreira. Conversando com ele, eu pude esclarecer muitas dúvidas, eu pude ter acesso a dados um pouco mais complexos, já que ele tinha tido uma formação regular fora do Brasil. Mas o resto eu fui catar e aí teve uma vantagem, que era o fato que esse momento coincidiu com a chegada da Internet de uma forma mais forte ao Brasil. Com a formação da web, quer dizer, com a passagem lá da época do DOS para o Windows, uma estrutura mais amigável dentro da Internet e com a difusão inicial de conhecimento nessa área e, em particular, um projeto, chamado FAO (Film Archive Online), onde você colocava muitos textos técnicos, muitas discussões etc. E eu usei muito esse material, para estudar, para conhecer, para desenvolver e você tinha também os manuais técnicos da Fiap, não era muitos, mas você tinha ali um conhecimento de base, para se aprofundar, eu fui ler esses manuais. O resto, experiência. Você acaba sacando algumas coisas, tem que ter uma sensibilidade grande para perceber uma coisa importante: como a maior parte dessa bibliografia é desenvolvida na Europa e nos Estados Unidos, ela leva muito em conta as condições ambientais que você tem nesses lugares para a preservação de filmes. E que são muito diferentes no Brasil. Uma das coisas que foi preciso ter sensibilidade, perceber e aplicar é que, nos trópicos, a reação dos filmes é diferente. Tem que saber exatamente como lidar com essa diferença e como, eventualmente, intervir de outra maneira, que não é a maneira ortodoxa que vem de um conhecimento de um outro lugar do mundo, e obter ali algum resultado mais significativo. 

Z: Isso tem a ver com cidade ser litorânea ou não? 

Hernani: Não, não, aí não. Aí, você tem muitos lugares mesmo nas zonas temperadas que são úmidas, né? E eventualmente, você tem lugares nas zonas temperadas que são extremamente secas. Isso não pode ser nem 8 nem 80. 

Z: Mas isso não tem a ver com a proximidade da água? 

Hernani: Não necessariamente. Por exemplo, lá na Arábia, tem água por tudo quanto é lado, mas os lugares são extremamente secos, ficam muito quentes, a evaporação é muito rápida. No Brasil, que é um país tropical, você tem uma cidade que está na linha dos trópicos, perto da linha dos trópicos, que é Brasília e que é extremamente seca. 

Z: Não tem a ver com a distância da água? 

Hernani: Não, não necessariamente. Cuiabá não é tão seco e está na mesma linha. Enfim, isso depende muito da região, das condições geográficas, de um certo regime de chuvas. Aí é coisa pra geógrafo, não é pra mim, mas em relação à temperatura e à umidade há uma série de cuidados que vão mudando de cidade pra cidade, de lugar pra lugar. Você precisa às vezes se adequar. No Brasil, o melhor lugar é Natal, mas Natal não tem produção cinematográfica. É longe, criaria custos. Mas tem uma estabilidade maior de temperatura e umidade. O segredo é a estabilidade. Quanto menor, melhor, mas se for um menor instável, é pior que um maior estável. 

Z: O interior do Rio Grande do Norte, por exemplo, não tem o mesmo… 

Hernani: Não, é Natal. A cidade de Natal, é a cidade com o clima mais estável do Brasil. Então isso daria uma sobrevida aos filmes muito grande, mas geraria um custo enorme e a produção estaria distante dos grandes centros. Os grandes centros são Rio e São Paulo, que são metrópoles, que são cidades poluídas, quentes, enfim, são cidades de instabilidade climática muito grande, mas se faz cinema nessas cidades. 

Z: E em relação a essas mídias digitais? Depois da película, veio o meio magnético… ótico, magnético, digital

Hernani: Olha, têm duas questões muito simples. Primeiro que o passado vai ter que continuar a ser conservado. Da mesma forma que você mantém as pirâmides egípcias, vai ter que manter as películas por séculos e séculos e séculos. Então é uma tarefa que não vai acabar; o cinema em película pode acabar, mas a tarefa de conservar o cinema em película não vai acabar. A primeira questão é que o conhecimento sobre isso vai continuar. Quando você muda de um suporte para o outro, tem que prestar atenção em duas coisas muito simples: não existe nada na humanidade que não tenha suporte. Então essa bobagem de falar em “ah, bota na Internet que tá preservado”… agora as pessoas caíram do cavalo de uma forma muito feia porque tudo que ficou lá nos provedores dos anos 90, sobretudo no GeoCities, acabou de fato, porque o GeoCities não era algo virtual. Era um conjunto de HDs, físicos, que cumpria preservar e ninguém prestou atenção e, quando, se eles forem desativados, essa memória se perdeu. Então, o mundo dito digital, ele é na verdade um mundo físico. Basicamente o mundo digital é o seguinte, é um suporte plástico; então ele tem a mesma natureza do filme, da película, é um suporte plástico e é recoberto por uma camada onde, em geral, o elemento predominante é o ferro. Isso tanto faz com uma fita analógica, VHS, Betacam, tanto faz com uma fita dita digital, como DigiBeta, Betacam Digital, DVCam, quanto o HD de computador, quando o Hard Drive etc. Tudo isso é um suporte plástico com uma “emulsão de óxido de ferro”, que é aquilo que a gente chama corriqueiramente de magnético. O HD é um meio que gera registro através de um pulso eletromagnético. Dígito é outra coisa. 

Z: Não é ótico, né? 

Hernani: Não. Existem mídias óticas: por exemplo, DVD ou CD são mídias óticas. O suporte é uma fina camada de platina mais uma fina camada de ouro. O suporte é um plástico. São plásticos recobertos com platina e ouro. 

Z: Os dados estão no plástico? 

Hernani: Os dados estão na platina. Então todos esses suportes são meios físicos e, portanto, eles precisam ser preservados enquanto tais. Você tem que saber a estrutura física deles, tem que saber o que afeta essa estrutura, tem que poder isolar essa estrutura dos elementos que a agridem… e o que você descobriu tragicamente é que, em sendo plásticos, como a película, eles são plásticos menos resistentes do que a película. Então os meios ditos “digitais”, isso é a inscrição, é o zero-um, não é o suporte. Eles têm menos durabilidade do que a película. Então sua preservação é mais difícil e eles têm outro dado bem complicado: Na película, a inscrição é direta; nos meios digitais, a inscrição é por codificação. Isso significa que você tem que ter um equipamento de leitura e esse equipamento de leitura, em geral, depende de um software e, esse software, depende, em geral, de sua fabricação e manutenção. E depende também de alguém que saiba usar. Pra manter a película, se você manteve a tecnologia mecânica que a reproduz, ótimo: o filme guarda todas as informações necessárias. No meio digital você tem que ter a base de registro da informação, você tem que ter o elemento de conversão da informação, você tem que ter o elemento de difusão da informação, você tem que ter os equipamentos e as pessoas que conhecem o uso daquilo. Se não, não se preserva. Então tem muita coisa feita no final dos anos 80 e no início dos anos 90, que não se lê mais, né?

 Z: Já naquela época? 

Hernani: Passados alguns anos, você jogava fora, sei lá, o Adobe 0.1 não-sei-quê e passava para o Flash. Essas coisas são antigas. O primeiro filme digital que foi feito é de 1970, mas no final dos anos 80 começou-se a difundir isso. Em 93, você teve o crescimento de fato. 

Z: 93? 

Hernani: Você tem isso há muito tempo já. Só que essa produção depende de uma tecnologia que se perde muito fácil, e é substituída muito rápido, né? Você sabe que o tempo de vida útil da informática é dois anos. A cada dois anos, você muda tudo. Se você não preservar as coisas antigas, você não lê. Você tem uma coisa engraçadíssima, por exemplo: a Biblioteca Pública de Nova York conseguiu que o Salman Rushdie, o escritor, doasse seus manuscritos. Um manuscrito, hoje em dia, é o computador e o arquivo lá dentro: ele doou os computadores, os quatro; e nenhum dos quatro é mais acessível, porque ele escrevia em programas antigos. O Word 2007 não lê o Write 93, 94. Eu escrevia em Write. Hoje eu não tenho mais condição de acesso a esses textos. Você tem que ficar convertendo isso tudo o tempo todo, mas quem é que tem tempo, recursos etc., para ficar duplicando isso numa forma alucinante de dois em dois anos? Não há tempo, não há recursos. 

Z: A difusão pela Internet, ou seja, pelo peer-to-peer ou pelos YouTubes da vida, a multiplicação dos arquivos, ela ajuda de alguma forma? 

Hernani: Não, porque as linguagens de máquina que são usadas na Internet também ficam obsoletas. Começam a cair. Além disso, como isso virou um serviço pago, você paga por seu arquivo, por seu blog, por seu site, não sei o quê, ele fica lá durante um ano, dois anos, três anos, então acabou a função econômica dele, a função informativa. Quando você não tem mais dinheiro, você deixa de pagar, o cara tira do ar! No final dos anos 90, todas as páginas que você queria, você acessava. No final de 2010, pra cada dez páginas que você pedia, duas ou três já não estavam mais no ar. Coisas que você acessou dois anos atrás não estão no ar. Na área de cinema, todo o filme quando é lançado tem uma página na Internet. Seis meses depois essa página é retirada do ar porque é uma página meramente publicitária, né? Não há motivo. Então você perde informação muito rápido dentro da Internet. Aí tem que ficar arquivando isso, isso é um custo astronômico. É muito difícil você se manter. 

Z: Qual a solução que se aproxima melhor com relação do que foi criado em digital? 

Hernani: Tem que duplicar! É igual cinema. Se você quiser manter o filme, tem que duplicar o filme. Se você quiser manter o HD, você tem que duplicar o HD. E com cuidados maiores porque, hoje em dia, se diz que você tem que ter sete backups, porque o grau de obsolescência dos equipamentos é muito alto. Eles quebram muito rápido e para ter a condição de duplicar aquilo, se você confiar num backup só, você pode perder o original e perder o backup. Aconteceu comigo, eu tinha um backup de certas coisas, o backup não funcionou também. Mesmo material, mesma mídia do original. Então você tem que ter sete backups, é o que se recomenda hoje em dia. Quem tem dinheiro para duplicar coisas que são milhões de terabytes de informação? É muito caro. Muito mais caro, inclusive, que preservar a mídia fotoquímica. Então você tem uma dificuldade aí muito, muito grande. Isso vai trazer consequências no futuro. O século XX, como teve basicamente um suporte físico mais direto, ele vai sobreviver melhor que o século XXI. As perdas de memória do século XXI vão ser bem maiores do que as do século XX. Pelo simples fato de que não há dinheiro pra você manter. E você não tem uma condição de preservação direta como tinha no momento anterior. Onde é que eu vou buscar esses sites que saem do ar? Quem é que os compôs, quem é que os manteve? Não sei quem pode, não sei quem foi. 

Z: Já existe uma consciência em algum lugar disso? Existe algum historiador da Internet?  

Hernani: Existe. Tem vários museus da Internet. Tem um cara que salvou parte do GeoCities, que agora esta no HellCities, é o Geocities recuperado. Do bolso dele. Ele foi lá e bancou, mas não deu pra salvar tudo. A Cinemateca do Mam faz clipping eletrônico desde 2000, mas não dá pra baixar tudo e guardar tudo, né? 

Z: E quando alguém faz cinema digital, você acha estas pessoas estão pensando na projeção em tela grande? Ou mais pra televisão mesmo? 

Hernani: Não, quem faz cinema digital faz cinema pra todas as mídias, né? vai passar no cinema, vai passar na televisão, vai passar no celular, vai passar na Internet. Não tem nenhum tipo de veleidade de achar que é só pra um ou outro meio. A geração atual não lida mais com isso, hoje em dia é o YouTube. É a prática dessa geração, ela já nasceu sabendo que podia colocar o vídeo ali e  bota. É a forma de publicação, uma forma comunitária diferente. A minha comunidade era física, hoje em dia as comunidades tem laços virtuais, diferentes. 

Z: E a Cinédia? 

Hernani: Eu comecei na Cinédia em Jacarepaguá, em abril de 86, ela só veio pra esta casa aqui na Glória em 2007. 

Z: Então todo aquele processo de restauração foi feito lá? Ainda lá? 

Hernani: Basicamente lá. E lá eu entrei pra trabalhar como pesquisador, não mexia nessas partes. E ai a gente trabalhou num primeiro momento, num livro que não saiu, que era o Barro Humano, depois num segundo momento um livro sobre as salas de exibição do Rio de Janeiro, esse saiu, foi publicado. Pesquisas de base, levantamento de dados, e ai depois aconteceu a enchente, e a partir da enchente eu fui trabalhar com a conservação deste acervo e com a restauração destes arquivos e é o que eu faço até hoje, terminou agora em 2010. Primeiro foi O Ébrio, depois Alô Alô Carnaval, depois Mulher, a partir daí uma série de outros filmes em paralelo que a gente só duplicou, e ai, enfim, a gente veio fazendo isso desde então, o último projeto começou em 2007 e terminou agora em 2010. Foram 17 filmes… Todos foram duplicados, e alguns foram restaurados. 

Z: E esses processos foram feitos simultaneamente? Vocês conseguem restaurar mais de um de cada vez? 

Hernani: As vezes não. O Ébrio e o Alô Alô foram feitos sozinhos; terminava um, começava o outro. A partir do Mulher a gente viu que tinha correr contra o tempo e ampliou o número de filmes, senão, não ia dar conta. Começaram algumas coisas a deteriorar completamente e fazer simultaneamente fica uma loucura, foram sete fitas, sete restaurações ao mesmo tempo, de 2007 a 2010. 

Z: Sete restaurações em três anos? 

Hernani: Sim, foi muito difícil lidar com isso e a gente teve que passar noites em claro pra levar isso a cabo dentro do prazo acordado. Essa parte terminou e a Cinédia agora veio pra Glória, pois a parte de estúdio não tinha mais finalidade. Era um elefante branco, eram 10 mil metros quadrados, tinha um custo de manutenção muito grande e rentabilidade quase nenhuma. Aí viemos pra cá, os filmes foram pra Cinemateca Brasileira e pro Mam, a documentação ficou aqui na Glória e aqui se resolveu desenvolver uma nova atividade que é a questão dos cursos, e transformar a nova sede numa espécie de centro cultural. Isso daria uma sustentação mas não mais do que isso, que só se consegue com patrocínio. A empresa hoje tem um caráter muito mais de atividade cultural do que de atividade empresarial, e aí se decidiu a trabalhar com conhecimento, porque nestes 30 anos a Cinédia se dedicou muito mais à pesquisa, mais à publicação, muito mais à formação do que à produção cinematográfica. No momento em que ela ia retomar suas produções, aconteceu a enchente, acabamos deixando tudo de lado pra salvar o seu acervo. Foram 13 anos fazendo isso, nesse meio tempo mudou de cinema tradicional para cinema digital e ela era uma empresa que não estava preparada para isso, então resolveu trabalhar muito mais com cultura do que com produção audiovisual. A parte de cursos é o primeiro passo nesse sentido, e desde agosto de 2010, quando começou o meu curso de história do cinema mundial, tem vários cursos em andamento. Assim a empresa vai caminhar, e as minhas atividades tendem a diminuir aqui. Também porque eu fiz uma opção de me dedicar e salvar os acervos, as pessoas me conhecem como restaurador, mas eu só trabalho com os filmes da Cinédia, eu não faço restauração pra mais ninguém. 

Z: Nem no Mam? 

Hernani: Nem no Mam. Lá eu sempre fui pesquisador e conservador. 

Z: Qual a diferença de conservação pra restauração? 

Hernani: Conservação é a manutenção dos materiais em si mesmos. A restauração é quando esse material começa a deteriorar. Então, na iminência de perdê-los, tivemos que transferir estas informações para um novo suporte e recuperar algumas informações características que elas tinham e que sejam passíveis de se recuperar. Então é um trabalho diferente. Então aqui na Cinédia eu fiz restaurações porque eu era ligado à empresa, fora daqui eu não faço, e nem tenho qualificação pra isso. Só fiz aqui e acabou agora. 

Z: E terminando o trabalho de restauração na Cinédia, você não teria projetos de 15 anos atrás pra retomar? 

Hernani: A essa altura do campeonato (risos)? Minha vida foi ao sabor dos acontecimentos. Eu tinha me preparado para ser pesquisador, que foi o que eu menos fui durante a vida! As coisas acabaram se definindo por conta dos locais pelos quais eu me liguei, por conta das circunstâncias históricas destes locais, pelo que eles passaram eu acabei indo parar em outras atividades, eu quase não fiz aquilo para o que eu me preparei. 

Z: Pra fechar, eu queria aquela sua definição do Botafogo. 

Hernani: Qual delas? Eu falo tanto do Botafogo (risos). Que é a coisa mais importante do mundo? Tá acima do bem e do mal, né? Não existe nada mais importante que o Botafogo. O Botafogo é a própria essência da vida, e todas as suas loucuras, e ser botafoguense é aprender que o importante não é ganhar, perder. É só ser Botafogo.

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Entrevista Especial: Hernani Heffner – Segunda Parte

Entrevista com Hernani Heffner – Segunda Parte

 

 

Por Luiz Alberto Benevides*
Foto:
William Condé – Transcrição: Tiago Rosas e Adriana Clen

Não tinha como ele não ser botafoguense. Só quem já viveu na carne e na alma as inexoráveis “coisas que só acontecem com o Botafogo” é capaz de captar, na sua plenitude, as coisas que só acontecem no Brasil. E principalmente, as coisas que só acontecem com o cinema no Brasil. 

Só aqui, um país eternamente claudicante no investimento em cultura coincidiria com uma das cinematografias mais originais do mundo. Só aqui, um país demoliria um pobre casario no Estácio para construir uma passarela do samba, indenizando a família de um menino que, juntando a fome pelas apostas de turfe com a vontade de ver qualquer tipo de filme, se tornaria a maior enciclopédia viva do cinema no território nacional. Só aqui, um estudante de cinema que não teve professor de fotografia, nem de montagem nem de som se formaria pelo seu autodidatismo com a competência necessária para salvar do assassinato – e do descaso da classe cinematográfica – uma das cinematecas mais importantes da América Latina. Só aqui, um funcionário de uma represa abriria as comportas durante uma enchente e devastaria um bairro inteiro, matando 70 pessoas e quase destruindo toda a memória de uma das suas maiores companhias cinematográficas. Só aqui, aquele menino suspenderia sua profissão de pesquisador para virar restaurador de filmes na marra, ajudando a salvar 17 longas dessa companhia em 14 anos. 

Na paixão, seja pelo Botafogo ou pelo cinema, não existe ganhar ou perder. É só ser. Do saudoso cinema Comodoro, no bairro carioca do Estácio, à pesquisa e conservação na (e da) Cinemateca do Mam; da precária e apaixonada Uff oitentista à salvação do acervo da Cinédia; das interativas sessões de kung fu no cinema Rex às obstinadas aulas de história do cinema mundial. Só aqui, duas horas e meia com Hernani Heffner.

Confira a segunda e última parte da entrevista.

 

Parte 4 – Mam, Cinédia, pesquisa

Parte 5 – Crise na Cinemateca 

Parte 6 – Cursos de cinema

Parte 7 – Preservação, conservação, restauração, novas tecnologias