Entrevista com Hernani Heffner
Parte 6 – Cursos de cinema
Por Luiz Alberto Benevides
Z: Dando aula especificamente dessa cadeira?
Hernani: Eu dava aula no Mam, vivia no mesmo espaço, os dois lados da moeda.
Z: Os alunos iam de bom grado assistir aula no Mam?
Hernani: Foram…
Z: De manhã?
Hernani: De manhã (risos), supostamente às oito, começava às nove. Eles gostavam muito, porque eu tinha na minha cabeça algumas premissas de trabalho… não obrigo ninguém a estudar, então os mecanismos clássicos didáticos, presença, nota, tudo eu implodia no primeiro dia de aula quando eu chegava pra eles e: “Olha, todo mundo ganhou dez, todo mundo tem 100% de presença; quem quiser vir ao curso vem, quem não quiser já sabe que tá aprovado e pode ir embora”. Você não tem uma obrigação; você tem que ter um desejo, e não uma obrigação. Estudar obrigado é a pior coisa que existe na face da terra e eu não conheço ninguém que tenha se dado bem por ter estudado obrigado. Por outro lado era película, então você já tinha VHS e tava começando o DVD, mas eu queria mostrar que o filme brasileiro tinha uma qualidade estética maior, e que essa qualidade só podia ser percebida se você visse os filmes da maneira adequada. O que chegava ao vídeo, o que chegava ao DVD eram materiais muito inferiores porque a opção econômica para a produção desses materiais era ruim. Por exemplo, os filmes brasileiros lançados em VHS eram telecinagem de cópias 16 mm, a imagem era degradada e o som era abafado ao extremo.
Z: E a janela?
Hernani: A janela cortava, etc. Então você tinha tido um contato com o filme brasileiro ali àquela altura completamente errado. Por outro lado, a projeção tem características particulares próprias, que você só entende a beleza de um Os Fuzis, a beleza de um O Grande Momento, a beleza de um Ganga Bruta se você vir isso projetado! Se você não vê isso projetado, perde essa referência de forma total e absoluta.
Z: Você conhece, com os avanços da tecnologia, você consegue explicar se existe alguma espécie de equipamento de reprodução/projeção da imagem que consiga ter uma fidelidade à película?
Hernani: A Jabulani é uma bola de material sintético, não é uma bola de couro como nos anos 50; o Pelé chutava a bola de couro, o Kaká chuta a bola plástica. São bolas? São bolas. Mas o efeito, o traço, a trajetória muda de uma coisa pra outra. Não tem como você reproduzir um filme de película em um outro meio, não se tem como se reproduzir 100% uma tecnologia. Ela não é duplicável, ela tem especificidades que não serão alcançadas por uma outra equivalente. E não é o caso de achar que uma é melhor que a outra e coisas do gênero, é simplesmente respeitar as especificidades disso. Se você quer ver uma pintura em afresco, você necessariamente vai ver uma pintura rachada, porque o gesso racha; se você for ver uma pintura a óleo ou a pasta, você vai ver uma outra coisa; você tem imagem, você tem quadro, você tem pintura; mas a relação com isso é necessariamente diferente. Então você ver uma projeção em película e você ver uma projeção em vídeo é diferente.
Z: E como é que um, vamos dizer, um Bertolucci, que já sabia que um filme dele iria sair em DVD como Os Sonhadores… como você acha que um cineasta que foi criado no sistema analógico….(Hernani interrompe)
Hernani: Presta atenção, você está misturando duas coisas: eu estava dando aula para pessoas que iam fazer cinema; e nesse sentido elas tinham que ter a percepção do que tinha sido todo o momento anterior. O Bertolucci, quando faz o filme dele, ele sabe que o filme vai chegar ao espectador comum; nesse momento, esse espectador comum não está interessado se a textura é fotoquímica ou se a textura é geográfica, porque ele não segue a textura, segue a história. Do ponto de vista da história é a mesma coisa: eu vi televisão nos anos 70, preto e branco, som mono e mesmo assim gostava dos filmes porque não me interessavam as questões técnicas. Quando eu me interessei pelas questões técnicas dos filmes, aí eu tive o interesse se o filme está sendo projetado da maneira correta, na velocidade correta, com a janela correta etc. Pro espectador isso não quer dizer nada, ele nem sabe disso, o filme não vem com bula. Os Sonhadores pode ser um filme 1:85 e ser projetado 1:66 que o espectador não vai saber, pode ser 1:85 e ser projetado com uma lente 1:66 que ele não vai saber; então ele assume tudo aquilo como parte artística do filme. O espectador nunca foi treinado pra perceber essas coisas, basicamente segue a história e aceita como a história se apresenta ali na frente dele. Se ele entrou em contato com Os Sonhadores só em DVD, o filme pra ele é aquilo; e isso não é demérito pro filme, é só uma forma do filme se apresentar. Que ele vai ter uma diferença em relação ao formato original vai, mas isso não o afeta como uma narrativa, e basicamente o cinema comercial é um cinema narrativo. Aqueles artistas que têm preocupações na forma como o espectador vai ver, aí ele põe lá as restrições todas, “só veja em tais e tais e tais circunstâncias”, ele controla. Mas estes são raros, bem raros.
Z: Terrence Malick…
Hernani: Então, como eu estava ensinando para estudantes de cinema, aí tinha esse rigor. Aí se justificava você ter essa preocupação de se deixar os alunos à vontade, ou seja, vem se quiser, estuda se quiser, e ter ali uma circunstância que ele descobriria que “aaah, não é aquilo que eu pensava, não é aquilo que eu via em VHS, não é aquilo que me falaram”… não, não era, né?
Z: E qual a reação que você teve deles nesse sentido?
Hernani: Ah, uma reação muito entusiasmada, uma reação de fascínio pelo filme brasileiro em película. Uma reação de descoberta porque aquela já era uma geração formada ou no VHS ou no DVD.
Z: 2001, isso?
Hernani: 2000, 2001. Então esse contato com o filme brasileiro antigo em película, que era bem raro ali naquela altura – porque poucos tinham chegado ao VHS e nenhum tinha chegado em DVD, hoje em dia isso já é um pouco melhor – era de descoberta absoluta, de você ver Os Óculos do Vovô em película, de você ver Fragmentos da Vida em película, ver uma chanchada da Atlântida, ver Ganga Bruta, ver Deus e o Diabo na Terra do Sol em película… isso já não circulava mais amplamente ali àquela altura. Então eu acho que isso foi importante pra eles. Inclusive os levou a ficarem pedindo cursos com película; foi daí que surgiu o famoso curso do Odeon, que foi um curso pra comunidade em geral e não especificamente para alunos universitários. E eu tive lá desde gente com 13/14/15 anos até senhores e senhoras com 60/70 anos… e como era no cinema, como era em película e como era um curso longo, de 1 ano e 3 meses, as pessoas tiveram os mesmos resultados.
Z: Você deu aula na Uff até…?
Hernani: Eu dei aula na Uff de 2000 a 2007. Cinema brasileiro dentro do Mam, preservação eu dei no Mam e lá na Uff também, porque preservação não tinha projeção.
Z: Então o curso do Odeon chega depois de sete anos de aula?
Hernani: Não, o curso do Odeon aconteceu em 2005. Ele foi, na origem, um pedido dos voluntários que trabalhavam ali no Mam, que eram estudantes, que tinham estudado comigo (eu já não dava mais cinema brasileiro na Uff, só dava preservação) e eles queriam ter um curso diferente, queriam ter um curso não-linear do cinema brasileiro.
Z: Não-linear?
Hernani: É, que não viesse lá do final do século XIX e chegasse progressivamente até o início do século XXI. Eles queriam um curso que tivesse recortes temáticos. E aí eu comecei com uma coisa em torno da classe média, formação da classe média e da apreensão ou não desse segmento pelo cinema brasileiro. A gente teve dois meses de aulas e projeções lá no Mam, mas depois ele se tornou inviável lá e eles continuaram insistindo em ter o curso. Alguns destes alunos pertenciam ao cineclube Tela Brasilis, todos os membros tinham sido meus alunos, e eles continuaram insistindo “vamos fazer, vamos fazer, o cineclube apresenta o curso” e tal, e eu disse “olha, fora a Cinemateca, onde é que a gente vai arranjar um cinema?”. A gente tentou alguns lugares e não deu certo, a certa altura eles insistiram “pô, é uma pena não ter” e eu disse “olha, a gente pode tentar o Estação, vamos ver se eles cedem na parte da manhã um cinema maior.” Ai eu fui conversar com o Estação, que disse “o Estação mesmo não dá, mas poderia ser feito no Odeon”; e ai tinha um custo alto e pra mim aquilo ia inviabilizar completamente o curso.
Z: Qual foi o horário e a freqüência proposta?
Hernani: Era sábado de oito e meia da manhã à uma da tarde…
Z: Durante um ano e três meses?
Hernani: Não, num primeiro momento eles só cederam R$ 7500 o aluguel por seis meses. Eu fui falar com os rapazes do Tela Brasilis e eles pra minha surpresa resolveram tentar conseguir os alunos para pagar este curso. Eu impus uma restrição, porque eu sempre dei curso de graça, eu sou contra cobrar, eu não queria cobrar; mas sem cobrar não tinha como viabilizar o curso no Odeon, e ai eu disse “olha, vamos tentar, mas cobra uma taxa simbólica por mês, cobra dez reais por mês de cada pessoa. Eles viram que era difícil conseguir o dinheiro cobrando isso mas também concordaram que não era pra ganhar dinheiro com isso, era pra difundir o conhecimento, estabelecer uma relação com o cinema brasileiro. E eles correram atrás, o Estação ajudou muito lá com a mala direta deles, e eles surpreendentemente conseguiram 400 alunos pagantes. A gente inclusive fez uma coisa muito legal que foi oferecer 200 vagas para Ongs, gratuito.
Z: Tinha algum limite de idade?
Hernani: Não, não tinha, algumas coisas você diz pró-forma como “inapropriado para dez anos” mas se entrar um bebê entrou (risos). Eu não tenho problema com isso, a malícia está na cabeça das pessoas. E aí eles conseguiram viabilizar, a primeira aula foi absolutamente assustadora porque eles me colocaram lá no palco e o Odeon ficava na penumbra, então eu não enxergava ninguém, eu só sabia que estava cheio, um mar de gente ali.
Z: Você estava na luz e eles no escuro?
Hernani: É, jogaram a luz em cima de mim e eu em cima do palco, uma situação extremamente desconfortável, fiquei muito nervoso com aquilo, mas fiz lá a aula, apresentei lá. Duas semanas depois disse “ah, não vou ficar lá em cima não, e vim pra baixo” (risos). Eles tiveram que se virar lá pra registrar , e registraram o curso inteiro, mas eu fiquei embaixo.
Z: Na segunda aula você já desceu?
Hernani: Não, eu fiquei acho que duas ou três aulas. E depois eu não sou estrela, não sou candidato a nada… isso é muito estranho, eu também quero ver as pessoas, então aí eu vim pra baixo e fiquei ali embaixo… e é óbvio, era um curso que se propunha a ser muito longo, no final das contas ficaram ali umas 200 pessoas, o resto fazia uma aula ou outra, aparecia uma vez ou outra, mas o núcleo real do curso foram umas 200 pessoas. E a gente conseguiu viabilizar um segundo módulo que foi bem maior e bem mais caro também, foi R$ 11.500 que o Estação cobrou… e aí o curso total durou um ano e três meses. Basicamente foi no Odeon e, quando o Estação precisava do Odeon, a gente fazia no Paissandu, onde a projeção era pior, mas era um cinema mais aconchegante, mais legal. Então tudo certo e o curso foi muito bem-sucedido e a gente conseguiu passar…
Z: Quantos alunos? 400?
Hernani: A gente chegou a ter quase 600 alunos, mas que freqüentaram 1 ano e 3 meses eu te diria uns 200. Isso os meninos lá do Tela Brasilis podem te dizer melhor do que eu. Coisa do Rodrigo Bouillet, que fez a coisa de dar diplomas… mas uns 200, que pra um curso era muita gente e tal, mas o grande atrativo era ver os filmes, o curso se propunha a fazer uma introdução, eu dava lá um tópico mas o que se propunha era passar os filmes.
Z: O Odeon tem mais de 580 lugares. Tinha gente no balcão também?
Hernani: Ah, nos primeiros dias tínhamos o balcão lotado (risos). Eu ficava maluquinho… foi de janeiro de 2005 a… março de 2006, alguma coisa assim. E enfim, deu certo, foi super bem sucedido, a produção enorme, mas que funcionou.
Z: Aí, de outubro a dezembro de 2008 e de março a maio de 2009, você volta com aquele curso de história do cinema brasileiro no Mam…
Hernani: É, aquilo foi uma obrigação que a Petrobras impôs ao Museu, por conta do patrocínio. No contrato tinha algumas obrigações da parte do museu, e uma delas era a criação de cursos e a colocação deles à disposição da sociedade. A certa altura a direção do Museu pediu pra eu dar o curso, e aí eu resolvi fazer um curso menor, mas relativamente grande ainda, durou 5 meses. Idealizei um curso menor, inicialmente era para funcionários da Petrobras, depois se abriu pra comunidade. Você tinha ali no começo umas 80 pessoas, depois ficaram freqüentando mesmo umas 30, 40 no máximo. Mas também foi muito bem realizado, superdivertido, e diferente do curso do Odeon; a maior parte dos filmes que eu passei no curso do Mam não passou no do Odeon. Então foi um curso na verdade diferente, com outras perspectivas, outras discussões etc. E isso cumpriu lá a exigência, e era um curso mais tranqüilo porque era à noite, durante a semana, dentro da Cinemateca, a produção era mais simples, ficou mais tranqüilo de se realizar.