Entrevista Especial: Hernani Heffner – Segunda Parte – Parte 5

Entrevista com Hernani Heffner – Segunda Parte
Parte 5 – Crise na Cinemateca

Por Luiz Alberto Benevides

Z: de 99 a 2002? 

Hernani: Isso, porque você sempre acreditou que a instituição Cinemateca do Mam era de uma importância auto-evidente. E o que se descobriu através desse processo foi que não; por exemplo, a comunidade cinematográfica não apoiou a permanência dela, muito pelo contrário, né? Virou as costas pra ela. E se a Cinemateca tivesse desaparecido ali, não teria gerado maiores questões, o que pra mim soava como um absurdo completo: a mesma coisa que de repente você pegar a Biblioteca Nacional, lá tem um problema, uma crise… “ah, então vamos fechar e criar outra coisa”. Se esquece o passado de uma forma muito rápida, muito violenta… e enfim, parece não ter maior repercussão de um ponto de vista concreto. 

Z: Explique um pouco dessa crise, as origens dela. 

Hernani: As origens remotas têm a ver com o incêndio do Mam em 68. A partir desse momento o Mam perdeu a proeminência de difusão cultural na cidade do Rio de Janeiro, ficou fechado durante anos… perdeu espaço, né? Perdeu o acervo de artes plásticas quase todo e de cinema não perdeu nada! Mas alguns erros já foram cometidos ali àquela altura… a diretoria do museu, com medo de um novo incêndio, pegou o acervo de nitrato da Cinemateca do Mam e mandou pra Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Aí se perdeu lá, uma grande ironia, né? 

Z: Se perdeu quando? 

Hernani: Em 81 e 82, em dois incêndios na Cinemateca Brasileira. De outro lado, em 85, reabriu o museu, mas sempre com muito pouca verba, sempre com uma equipe com uma formação não adequada ou minimamente adequada, e sempre com muita dificuldade em se conseguir recursos. Essa dificuldade se aprofundou ao longo daquele período de crise econômica no Brasil e isso chegou a uma crise monumental ali em 97, quando o Museu deixou de pagar salários durante vários meses. Isso acabou levando o presidente do Museu, que era o Manuel Francisco do Nascimento Brito, que era o dono do Jornal do Brasil – e a tradição do Mam é que seus presidentes são ligados a empresas jornalísticas, o Niomar do Correio da manhã, o Nascimento Brito do JB e atualmente o Chateaubriand que é ligado aos Diários Associados -, a colocar sua filha pra dirigir o Museu ali em 98, que é a Maria Regina do Nascimento Brito, e ela decidiu reorganizar administrativamente o Museu. O Mam tinha 250 funcionários e caiu pra menos de 50 em 2 anos; e a certa altura ela decidiu que o Museu não tinha condições de guardar filmes, e que se tinha que devolver estes filmes aos seus produtores. Isso acabou sendo feito de uma forma muito autoritária e gerou um escândalo público, porque ela literalmente ligou para os produtores dizendo “seus filmes estão aqui, não queremos mais, não podemos mais guardar, por favor venha aqui e retire”. Nesse momento a comunidade cinematográfica, em vez de incentivar a manutenção da Cinemateca do Mam, acabou assumindo uma atitude muito dispersiva, né? Dizendo “não, então me dá de volta, vou pra um outro lugar, não quero mais saber da Cinemateca”; virou as costas para a Cinemateca. E ela perdeu quase 90% do seu acervo: no ano 2000 tinha 100.000 rolos e em 2002 ficou só com 17.000. Isso quase destruiu a Cinemateca. Foi um período muito difícil internamente, de muito atrito. E felizmente isso também provocou um desgaste do papel, da posição da Maria Regina dentro do Museu, e ela acabou saindo em 2003. A nova diretoria entendeu que a Cinemateca era algo importante, que devia permanecer, ela começou a se reconstituir lentamente e ainda está neste processo. Mas hoje, por exemplo, a Cinemateca tem 60.000 rolos. Conseguimos recuperar em parte, continua com alguns problemas estruturais, enfim, dificuldades de sobreviver. 

Z: Qual era a função da Susana Schild em novembro de 95 quando ela te contratou? 

Hernani: Ela era diretora da Cinemateca. Ficou até 97. No auge da crise ela saiu. Aí entrou em 97 a Telma de Souza Mello, que durou um ano e pouquinho, entrou o Francisco Moreira, que durou um ano e pouquinho, entrou a Lucia Lobo que não durou nem um ano, e a partir de 2000 assumiu o Gilberto Santeiro como curador. 

Z : E a Maria Regina era diretora da Cinemateca? 

Hernani: Diretora executiva do Museu. De 98 a 2003. 

Z: Ficou 5 anos então? Te chamaram pra trabalhar no Mam, você aceitou e não sabia, foi pego de surpresa por essas crises? 

Hernani: É, todas essas crises foram novidades, quando eu entrei em 96 eu não tinha conhecimento do quão profunda era a crise interna. Ela estourou pra mim de uma forma surpreendente em 97. Eu sempre tive a ideia de que o Mam tinha problemas, mas que os problemas não eram tão profundos assim tendo em vista a magnitude da instituição, a importância da instituição, o fato de ser uma instituição tombada. Mas o tamanho da crise era realmente muito grande, isso ficou muito complicado a partir de 97 e só foi se aprofundando. Até 2003. 

Z: Eram discordâncias entre os mantenedores, basicamente isso? 

Hernani: Não, não, eram discordâncias de filosofias de trabalho: de que o museu, em função da escassez de recursos, não tinha condições de cuidar de duas áreas ao mesmo tempo, a área de artes plásticas e a área de cinema, e como o Museu tinha como objetivo original ser basicamente focado nas artes plásticas tradicionais, a Maria Regina acabou entendendo que o cinema era algo muito caro, muito complexo que exigia muito dinheiro, pessoal com uma formação técnica muito alta, e que o Museu não tinha como dar conta. 

Z: Quando a Cinemateca foi criada? 

Hernani: Em 1955. 

Z: E o Museu? 

Hernani: Em 48. Ambos foram criados antes da construção do prédio que está lá hoje. A Cinemateca foi criada em 55 e funcionou até 60 no auditório da ABI. Então o Mam cresceu com a Cinemateca, faz parte da sua história. O grande problema é que você nunca teve condições estruturais, porque o Museu não foi criado para ter acervo; aquele prédio nunca foi pensado para ter reserva técnica. E uma instituição que hoje tem 25 mil obras de arte, 60 mil rolos de filme, mais de 2 milhões de itens documentais, tem problemas estruturais. Então o problema é que na hora em que as coisas se tornam críticas, a primeira solução aventada – e isso não é novo na história do Museu – sempre é tirar a Cinemateca. 

Z: E quando houve esta determinação, quanto mais ou menos desse acervo foi pra outra cinemateca como a Brasileira ou pra algum outro centro de conservação? 

Hernani: A rigor, 83% do acervo da Cinemateca se perderam, foram para o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Cinemateca Brasileira, CTAv… e alguns produtores levaram para casa, o Silvio Tendler e o Alexandre Niemeyer, do Canal 100, levaram pra casa. Então a rigor, se aquele processo tivesse continuado, a Cinemateca de fato tinha desaparecido. Foi muito difícil recomeçar quase do zero. 

Z: Quem substituiu a Maria Regina? 

Hernani: Foi o Hélio Portocarrero. 

Z: E ele estancou esse processo imediatamente? 

Hernani: Não só estancou como reverteu. Deu todo apoio à Cinemateca, conseguiu uma verba junto ao BNDES pra reconstituir a reserva técnica, ter equipamentos de trabalho, ter uma nova estanteria… e a gente pode recomeçar a trabalhar. 

Z: E quanto tempo durou este processo de retomada? 

Hernani: De reconstituição, até 2007, 4 anos. De 2007 em diante eu posso dizer que a Cinemateca retomou suas atividades básicas, mais tradicionais. Porque até a exibição de filmes na época da Maria Regina foi suspensa. 

Z: Mesmo com cobrança de ingressos? 

Hernani: Ela suspendeu a cobrança de ingressos e depois suspendeu as sessões, isso só foi retomado de uma forma regular na época do Hélio. 

Z: Quem foram as pessoas da comunidade cinematográfica que defenderam a Cinemateca nesse período, publicamente, dignas de menção? 

Hernani: Todas as pessoas que defenderam são dignas de menção. Houve uma tentativa de defender a Cinemateca através de um abaixo-assinado organizado pela Ieda Rozenfeld, cineasta e pesquisadora, e ela conseguiu coletar 4 mil assinaturas. Muita gente se manifestou ali nesse documento, vários cineastas se manifestaram ali nesse documento. 

Z: Em 2002? 

Hernani: Ao longo de 2002 e 2003. Mas na prática, na hora em que o Museu solicitou que você tirasse os filmes da instituição, muito pouco se fez. Eu lembro que o Sérgio Santeiro, por exemplo, se recusou terminantemente a retirar seus negativos de lá. Havia às vezes ameaças de mandar o filme pra casa da pessoa, deixar no meio da rua. E ele dizia, “não, pode deixar; eu não vou tirar, pra mim a Cinemateca tem que continuar, eu quero que meus filmes continuem aí e eu não vou retirar nada”. Mas como ele, poucos; a imensa maioria acabou atendendo ao pedido do Museu, retirou seus materiais, acreditou no discurso de que a Cinemateca não tinha condição alguma de preservação e isso determinou inclusive um momento em que a Cinemateca passou por uma imagem pública muito ruim. As pessoas acreditaram nessa ideia de que a Cinemateca era o pior dos mundos, com condições trágicas etc. etc. etc., como se não houvesse ali um trabalho mínimo de conservação, que há. Tem problemas? Tem, mas não muito diferentes de várias outras cinematecas do mundo. Aliás, a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro está melhor que a grande maioria das cinematecas, mesmo com todos os seus problemas. 

Z: A maresia seria um problema? 

Hernani: Claro. O problema estrutural da Cinemateca vem de algumas questões básicas. Primeiro, a instituição ter sido criada pra não ter acervo, portanto não conceber na sua planta original um conjunto de áreas que funcionaria como reserva técnica. Nesse sentido, você está trabalhando com um prédio que tem que ser adaptado, e que só pode ser adaptado até certo ponto, porque é um prédio tombado, é uma glória da arquitetura modernista mundial, então você não pode mexer estruturalmente no prédio. 

Z: O prédio é de quem? 

Hernani: Do Reidy. Afonso Eduardo Reidy. Outra coisa: é um prédio modernista, de concreto e vidro, ou seja, é um prédio onde a transmissão de energia, de luz e de calor é total. Se você faz uma reserva técnica, é tudo contra o que você luta o tempo todo. Além do fato da instituição ter sido concebida pra não ter acervo, o museu era pra ter um conjunto de exposições temporárias e não permanentes, ele foi instalado literalmente no mar! Foi instalado num aterro ao lado da Baia de Guanabara, do Oceano Atlântico, da maior porção de água do mundo e isso evidentemente, numa cidade que já é uma cidade tropical, uma cidade extremamente úmida, você estando ao lado do oceano, tem uma taxa de umidade astronômica. Ali na beira do Museu você tem uma umidade que gira em torno de 80%. Significa uma luta permanente contra a umidade que afeta muito negativamente os filmes. Só pra você ter uma ideia, no depósito principal da gente, nós temos quatro desumidificadores ligados 24 horas por dia pra baixar esta taxa, pra trazer pra em torno de 50%, 55%, que ainda não é a ideal. O ideal seria baixar esta taxa para 30%, mas isso implica num maquinário e numa área que não há condições ali de se estabelecer uma estratégia desse tipo. A outra questão é: se você está ao lado de um oceano, está ao lado de água salinizada, popularmente conhecida como maresia. Então originalmente os cinemas trabalhavam com latas: você mandava pras salas de exibição os rolos em latas, d os mais variados materiais, desde um alumínio bruto até uma lata que recebia uma laca anti-aderente… e essas latas em geral se oxidava muito fortemente, essa oxidação reage quimicamente, provoca detritos físicos, gera abrasão etc. E você tem uma dificuldade muito grande de acesso a estojos de plástico. Hoje, mais da metade do acervo da Cinemateca do Mam está em estojo, não está em lata; mas ali, quando eu assumi em 99, era 100% lata. Então você teve um esforço muito grande ao longo destes 10 últimos anos, de passar de um material que oxidava tremendamente, que gerava um custo enorme e tinha uma implicação de conservação muito grande, para um outro material que pelo menos evita esse tipo de conseqüência, embora não evite a umidade. 

Z: Plástico? 

Hernani: É, mas pelo menos as conseqüências da maresia você tem conseguido evitar e tem conseguido gerar ali uma nova condição de conservação, Hoje em dia a gente tem ar condicionado industrial, ele funciona 24 horas por dia, ele tem backup, você trabalha com uma temperatura de 14 graus lá dentro… quer dizer, conseguiu dar uma outra condição de guarda dentro do museu que eu considero bastante satisfatória e atingiu uma premissa interna que a gente tinha colocado que era cumprir o pré-requisito da Unesco. A Unesco estabelece que só há conservação de qualidade quando o objeto, o bem, ele dura mais de cem anos; então pra você conseguir condições de temperatura e de umidade que reunisse condições  que projetasse a vida útil dos rolos para mais de 100 anos, isso foi atingido em 2006 através da reforma patrocinada pelo BNDES. O plástico pelo menos minora os efeitos. O prédio do museu, das áreas de reservas técnicas esta do lado do oceano, mas essa condição não favorece a preservação dos filmes por conta desta altíssima taxa de umidade, por conta desta maresia, e pela dificuldade e do custo que você tem em enfrentar tudo isso. 

Z: E o momento da distribuição, quando a Cinemateca se desfez de boa parte do seu acervo, quanto desse acervo foi pra lugares que tivessem condições de conservação adequadas? 

Hernani: Naquele momento, o lugar que você tinha melhor condição era a Cinemateca Brasileira, mas foi o que talvez menos tenha recebido. O Arquivo Nacional teve que criar condições para abrigar o material que saiu do Mam, e a maior parte foi pro Arquivo Nacional…

 Z: E ele não tinha uma cinemateca? 

Hernani: Não, ele tinha um acervo muito pequeno, esse acervo era guardado em condições bem básicas, e com o volume de material que chegou do Mam, quase 50 mil rolos, eles tiveram que criar outras condições, e estas condições são bastante razoáveis, mas não são melhores que as do Mam. 

Z: A taxa de umidade não é menor? 

Hernani: É um pouco menor, mas o Arquivo Nacional guarda os filmes no centro da cidade do Rio de Janeiro, do lado da Presidente Vargas. 

Z: Fuligem? 

Hernani: Fuligem, gases, o fato de você estar em uma área muito quente da cidade, não tão longe do mar, se você pensar que depois da Candelária você tem o mar, isso não evita tanto… enfim, eles também tiveram que enfrentar o mesmo problema que o Mam porque o prédio que eles ocupam foi criado pra Casa da Moeda, não foi designado para a guarda de filmes. É um prédio de concreto e que também transmite muito calor, essas coisas todas. O CTAv tinha uma condição bastante razoável também, com um volume não muito grande, mas com um certo volume, mas de uma maneira geral, quer dizer, você tinha condições melhores em São Paulo, não tinha tão boas condições aqui no Rio… mas nada muito significativamente melhor que a Cinemateca do Mam. Por exemplo, em São Paulo você guarda em torno de 10 a 16 graus e  a gente guarda a 14; no Arquivo Nacional se guarda de 14 a 18 graus e a gente guarda a 14; no CTAV se guarda de 12 a 16 graus e a gente  guarda a 14; quer dizer, tá todo mundo muito próximo ali de uma média que é em torno de 14 a 15 graus, que não se altera significativamente se você sair de um lugar para o outro. 

Z: E a desumidificação? 

Hernani: Ai é que esta a grande diferença porque a Cinemateca Brasileira conseguiu uma desumidificação em torno de 30 a 40% de umidade relativa do ar. Eles tem uma desumidificação industrial, isso nenhum outro arquivo brasileiro tem, nem o CTAv, nem o Arquivo Nacional, nem o Mam, nem a Cinemateca Paranaense, nem a Fundação Joaquim Nabuco ou o arquivo do Distrito Federal. Nenhuma outra tem uma desumidificação industrial e isso faz muita diferença, isso aumenta significativamente a vida útil do material se você tem desumidificação num nível controlável. Então isso hoje dá uma vantagem à Cinemateca Brasileira bastante grande sobre os outros arquivos, mas não é algo que você não possa introduzir. Ali no Mam a gente tem o planejamento de se colocar as resistências industriais e aí puxar essa umidade para em torno de 40%, o que levaria a perspectiva dos nossos filmes pra mais ou menos 250 anos. Então você estabeleceria de fato um trabalho de longo prazo junto ao acervo do Mam. E isso, pra gente que ressurgiu das cinzas em 2003, constituímos a infra-estrutura básica em 2006, se a gente conseguir implantar isso em 2011 ou 2012, quer dizer, em menos de uma década a gente saiu do nada para uma base que vai levar o acervo para 250 anos! Eu diria que é a recuperação mais rápida na história dos arquivos brasileiros desde que eles existem ali a partir do final dos anos 40/50, tanto que a maior parte dos arquivos leva de 20 a 30 anos para se estruturar, a gente conseguiu com toda a dificuldade do mundo, com uma equipe mínima, mas com muito apoio da atual diretoria, a gente conseguiu se recuperar em menos de uma década. E temos uma perspectiva de finalmente estabelecer a base definitiva no próximo ano ou no máximo em 2012. Desde 2003 a gente vem fazendo um trabalho de requalificação do acervo, o acervo cresceu, o acervo brasileiro voltou a ter importância, a gente tem vários materiais… 

Z: Alguém devolveu? 

Hernani: A gente não quis. A gente não quis ter a atitude que os outros arquivos tiveram conosco. A grande questão é que nós não tivemos o apoio da comunidade cinematográfica e dos principais produtores, isso inclui os profissionais, isso inclui as instituições e isso inclui os arquivos. Nenhum arquivo se recusou e tentou manter de fato a Cinemateca do Mam. Nesse sentido, quando nós nos recuperamos, nos reestabelecemos e reabrimos de fato de uma forma regular. Em 2003, a gente podia ter vindo a público e dizer “nós não desaparecemos, por favor devolvam nossos acervos”. Não. A gente não foi atrás de ninguém, nós não fomos cobrar uma fatura que supostamente nos era devida. A gente tinha, digamos, talvez um argumento moral, uma argumento ético de dizer “isso nos pertencia, por favor nos devolva”. A gente deixou cada um com sua consciência, cada um com sua postura. 

Z: Mas houve devolução espontânea? 

Hernani: Muito poucas. Alguns poucos vieram e recolocaram ali, porque tinham uma ligação histórica com a Cinemateca, porque entenderam que o que tinha sido feito era algo criminoso, porque achavam que tinham que dar força para a Cinemateca. 

Z: Alguém que vale a pena ser mencionado? 

Hernani: Eu não gostaria de destacar um ou outro e ficar… eu acho que as pessoas que tiveram este gesto tiveram a consciência e o carinho devido para com a instituição, enquanto os outros não, e a nossa postura foi uma postura de “olha, nós não vamos fazer com ninguém o que fizeram com a gente”. Eu acho que a gente manteve ao longo deste processo uma posição ética pública, porque eu participei de muitos debates ali em torno das questões envolvendo a Cinemateca. Sempre deixei claro pra todo mundo que estava havendo uma falta de apoio para a preservação não dos filmes, porque o que eu sempre coloquei que o que estava em jogo e estava em risco ali não era o desaparecimento de um ou outro rolo, de um ou outro filme, o que estava em jogo ali era o desaparecimento da instituição. O que eu sempre cobrei é: “Ninguém está interessado em preservar a Cinemateca do Mam?”. Uma instituição que tinha uma história gloriosa, que tinha apoiado a atividade cinematográfica de forma decisiva ali nos anos 60, nos anos 70, que tinha se colocado ao lado de todas as lutas do cinema brasileiro e na hora que ela precisou ninguém se colocou ao lado dela? Então, no momento seguinte que a gente sobreviveu praticamente por conta própria, por nossa própria conta e risco – com ajudas sim, com apoio sim, mas de uma parcela muito pequena da comunidade cinematográfica – a gente não quis assumir esta atitude predatória e selvagem de “vamos lá, agora tem que devolver tudo porque isso é nosso”. Primeiro, porque a gente sempre teve consciência de que não era nosso, era da comunidade, da sociedade, era de todos aqueles que se preocupam com isso. Se naquele momento aquela preocupação foi deixada de lado, agora a gente não ia assumir a mesma atitude, correndo todos os riscos que ela envolve. Riscos técnicos, toda vez que você move um acervo ele perde durabilidade; riscos éticos, quer dizer, você assumir esta atitude de que você é dono no grito; riscos políticos, quer dizer, você gerar uma luta intestina sobre quem tem direito de preservar o quê, quando todos deveriam estar trabalhando para preservar o conjunto. No meu ponto de vista, e no da Cinemateca do Mam, é que isso não é uma disputa, não é uma corrida, não é quem joga melhor ou quem faz mais: todos estão jogando o mesmo jogo, todos estão no mesmo lado, não estão em lados opostos. Então pra gente não tinha muito sentido você reabrir a questão, reabrir a ferida, reabrir a disputa, porque se transformou numa disputa. Se você pegar as matérias que saíram na época, parecia uma briga Rio-São Paulo, parecia uma briga Fla-Flu, parecia um jogo. Pensou-se muito pouco no que estava em jogo ali naquele momento. Então a gente não assumiu essa disputa. Assumimos as perdas, né? Porque pra nós o mais importante era preservar a Cinemateca. A Cinemateca sobreviveu, se recuperou, foi adiante, e tanto isso se tornou significativo que hoje ela esta aí com todos os seus problemas, mas também com todas as suas qualidades, e continuou sua história: tem mais de 55 anos, e enfim, mais de meio século de existência, e vai chegar a um século, independentemente do que quer que aconteça lá. 

Z: Então voltando: você no meio disso, porque você não estava querendo trabalhar lá, e te chamaram para trabalhar e de repente você foi surpreendido nisso, como no pior da crise você arrumou forças pra conseguir…? 

Hernani: Olha, você tem que tomar algumas decisões, e a minha primeira decisão lá no Mam foi não compactuar com aquilo. Cheguei a pedir demissão à Maria Regina, ela me pediu o prazo de um mês, porque ela não tinha ninguém que soubesse lidar com aquilo e ela precisava encontrar alguma pessoa. Aí essa informação de que eu tinha pedido demissão circulou, algumas pessoas me ligaram preocupadas com o destino dos filmes, eventualmente com o destino dos próprios filmes, eventualmente preocupada com o destino dos filmes em geral, o que ia acontecer se não tivesse alguém que minimamente zelasse por aquilo, controlasse e desse uma saída organizada e etc. 

Z: Você estava sozinho, né? Porque em 99 tinha saído o Francisco. 

Hernani: Isso, exatamente. Outras pessoas me ligaram dizendo que era preciso resistir de alguma maneira e eventualmente tentar fazer com que a Cinemateca sobrevivesse. E era uma decisão difícil, né? Porque ali naquele momento, você não tinha perspectiva palpável de que a diretoria fosse trocada, de que aquele processo fosse interrompido, de que você poderia vir a ter uma espécie de final feliz adiante. Tudo se desenhava no sentido negativo, num sentido de que a Cinemateca talvez viesse a se encaminhar pro seu fim. E era uma decisão difícil, porque estar associado não só ao desmonte, mas ao encerramento de uma instituição… por outro lado tinha um compromisso ético em relação ao material. Qualquer que fosse o destino da instituição, eventualmente o material era algo a ser cuidado, a ser preservado, a ser levado adiante independente de qualquer coisa, porque era um acervo cultural, um acervo histórico, um acervo documental da maior importância para a sociedade brasileira e você não podia colocá-lo a mercê de perdas de qualquer natureza, por falta até de intimidade com aquilo. E aí eu acabei tomando a decisão de ficar, foi uma decisão difícil, uma decisão muito complicada, que levou a um desgaste pessoal muito grande… porque era preciso enfrentar aquilo cotidianamente e ir trabalhar todo dia num clima muito adverso, numa atmosfera muito ruim, vendo colegas sendo despedidos, as pessoas tendo suas vidas transformadas de uma hora pra outra e isso às vezes era muito complicado, eu tinha filhos pequenos naquele momento: meu primeiro filho nasceu em 98, meu segundo filho nasceu no meio da loucura, em 2001. Enfim, eu tinha que dar atenção a uma coisa e outra. Então foi uma decisão muito complicada, uma decisão que me levou a um desgaste pessoal muito grande, uma decisão que implicava inclusive em resistir, um trabalho de resistência a tudo que estava acontecendo, mas com uma perspectiva muito nebulosa de que se fosse conseguir sair daquilo de uma forma positiva. Até se conseguir sair daquilo de uma forma positiva, mas isso eu só fiquei sabendo depois; durante é sempre complicado. Aí, inclusive esta coisa de dar aulas acabou se transformando em algo bastante positivo, porque era o momento de você pensar em outra coisa, era o momento de você dar um tempo daquele processo, era uma forma inclusive de você rejuvenescer um pouco, porque eu já tinha 30 e tantos anos, aí se encontram jovens de 17/18/19, que vivem num outro mundo, numa outra perspectiva, com uma outra discussão, e você trabalhava – pelo menos no curso de história do Cinema Brasileiro –sobretudo a coisa estética, não é nem a história pela história, é muito mais a ideia de que existia uma arte no filme brasileiro e que aquilo tinha que ser exposto, reconhecido, discutido… e isso era bacana, trazia uma energia muito positiva naquele momento.

Parte 6