Especial Francisco di Franco
Cordélia, Cordélia
Direção: Rodolfo Nanni
Brasil, 1971.
Por Sérgio Andrade
O primeiro plano é inusitado: um relógio dentro de uma gaiola. A câmera se movimenta até enquadrar o casal na cama. Ficamos conhecendo Cordélia (Lilian Lemmertz, maravilhosa como sempre) no auge de uma crise conjugal.
Ex-modelo fotográfica, abandonou a profissão para casar, embora pose ocasionalmente para Otto (o artista plástico Wesley Duke Lee). Agora ela trabalha como secretária de uma empresa do setor de transportes.
O problema é que o marido não quer ouvir falar em trabalhar. Com a maior cara de pau ele afirma que sempre foi um aposentado nato, o trabalho e ele não foram feitos um para o outro, para desespero de Cordélia. Acompanhamos então a troca de acusações entre os dois, as ofensas mútuas, os insultos, as trocas de farpas. Ao mesmo tempo vemos suas fantasias, sonhos e lembranças de infância (quando é interpretada por Julia Lemmertz).
Mas ainda resta um pouco de carinho, como fica explicitado nos acordes da música de Rogério Duprat.
O marido, Leônidas, guarda um segredo: faz parte de um grupo de esquerda clandestino, e numa cena vemos eles prepararem uma ação. Já Cordélia vai levando sua vidinha do jeito que dá: presta pequenos favores sexuais, bem remunerados, aos clientes mais poderosos da empresa ou flerta com o patrão (Pedro Paulo Hathayer) durante uma visita à capitania dos portos, tudo sem demonstrar muito entusiasmo. Ao arrumar um amante, um vendedor de carros, alimenta por um momento a ilusão de que poderá iniciar uma nova vida, ilusão logo desfeita pela reação do moço à simples menção de morarem juntos. O que mais ela queria mesmo era poder se matar.
A peça de Antonio Bivar, Cordélia Brasil, foi bastante modificada pelo diretor Rodolfo Nanni em sua transposição para o cinema. Na interpretação da grande Lilian, Cordélia é uma dessas pessoas que desejam mais da vida, mas percebem que serão sempre insatisfeitas, à medida que a idade avança. Não por acaso abundam as referências ao tempo (o relógio na gaiola, a ampulheta que ela compra num antiquário, as lembranças da infância, a própria bomba relógio que Leônidas constrói no final). O tema de Cordélia, Cordélia é mesmo o tempo, a inexorável passagem do tempo que leva embora sonhos de felicidade e prosperidade.
Francisco di Franco, nosso homenageado, dá o contraponto exato para Lilian, revelando uma excelente química entre os dois. Como o folgado Leônidas, que passa a maior parte do tempo deitado na cama, fica pelado naturalmente diante da empregada doméstica ou lê a Bíblia para a esposa após ouvir o sermão de uma pregadora (Celia Helena), ele demonstra que era muito mais do que apenas um rosto bonito num corpo sarado. Foi realmente um ótimo ator. Não se fazem mais galãs como ele.