Nossa Canção

Por Vlademir Lazo


Sergio Ricardo e Deus e o Diabo na Terra do Sol

Sergio Ricardo continuará eternamente lembrado pela imagem do homem nervoso quebrando o violão diante das vaias da platéia num dos festivais da canção dos anos sessenta (momento histórico recuperado na integra no ótimo documentário Uma Noite em 67, co-dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil).  A sequência é emblemática: Sergio Ricardo sempre foi um dos mais revoltados da MPB da época, cuja fúria geralmente se refletiu no lirismo dos seus versos, ao abraçar a chamada Canção de Protesto com um empenho que poucos tiveram na mesma medida (podemos pensar em Geraldo Vandré como outro exemplo parecido).  Sua obra resiste pela poética de suas letras, porém não admira que nem na época ou hoje em dia tenha tido a popularidade de outros cânones da música brasileira, tão fixado em problemas políticos e sociais como ficou marcado. Vale a pena destrinchar alguns títulos de sua discografia, pela riqueza melódica e verbal de suas canções, mas não é uma obra para todos ou para ouvir todo dia. No conjunto não seria exagero dizer que parte de sua obra ficou datada, sobrevivendo se não pela estética criadora, então como um marco histórico de um momento especifico da história e da música brasileira no século XX.

Como muitos de sua geração, Sergio começou mesmo cantando Bossa Nova, tendo sido convidado no começo da década de sessenta a dirigir na TV Tupi um programa sobre Bossa Nova ─ o primeiro da TV brasileira a ser transmitido em cadeia nacional. Ao mesmo tempo em que apresenta outros programas na TV, inicia seu trabalho no cinema, financiando e dirigindo seu primeiro curta, Menino da Calça Branca, realizado em 35 mm, com um jovem Ziraldo no elenco, na época já conhecido como o responsável pela primeira revista em quadrinhos brasileira feita por um só autor, Turma do Pererê, que também foi a primeira história em quadrinhos a cores totalmente produzida no Brasil, e que alcançou uma das maiores tiragens da época, tendo sobrevivido até o inicio do regime militar, quando a publicação foi cancelada.  Menino da Calça Branca marcou também a estréia como cinegrafista do irmão de Sergio Ricardo, lendário Dib Lutfi, o homem que deu forma a teoria de uma câmera na mão e uma idéia na cabeça. Desnecessário dizer que Sergio Ricardo tinha o cinema em seu sangue. Ao ver o copião do curta, Nelson Pereira dos Santos se ofereceu para montar de graça o filme, que depois seria exibido em Karlov-Vary (Tchecoslováquia). Em seguida, Ruy Guerra montaria o primeiro longa de Sergio, Esse Mundo é Meu (1964), também com Ziraldo, que Luc Moullet na Cahiers Du Cinema considera um dos cinco melhores que viu no ano.

Sergio dirigiria ainda mais dois longas bastante interessantes, Juliana do Amor Perdido (1971) e A Noite do Espantalho (1974), mas sua maior marca no cinema foi deixada mesmo com a música, ao dar voz e acordes com seu violão aos versos do clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. As bachianas de Villa-Lobos musicam veementemente o longa do começo ao fim, porém as canções cantadas por Sergio dão tom e pontuam o filme. Deus e o Diabo na Terra do Sol foi concebido como uma mistura de faroeste, ópera, misticismo e cordel. Glauber compôs os versos que com freqüência irrompem na narrativa, comentando, explicando ou ilustrando passagens e personagens. O filme é quase que narrado em forma de balada. Sergio Ricardo e seu violão dão corpo e forma às canções. Difícil ver ou rever o filme e ao escutar as faixas não pensar que se trata de um autêntico violeiro e intérprete de cordel como o personagem do cego Julio saído dos confins do sertão.

Nos extras do DVD de Deus e o Diabo na Terra do Sol conta-se que Glauber Rocha obrigava Sergio a gritar no momento das gravações para que algumas das faixas saíssem com a intensidade que ele tinha em mente. A própria condição de cineasta de Sergio Ricardo certamente contribuiu para pensar em relação à estrutura da trilha dentro do filme. Cinema e música adquirindo forma ao mesmo tempo. O tom já pode ser sentido na primeira canção, Abertura, anunciando ao público, marcante e lento, com seu vocal e versos apocalípticos: “Vou contar uma história/ Na verdade e imaginação/ Abra bem os seus olhos/ Pra enxergar com atenção/ É coisa de Deus e Diabo/ Lá nos confins do sertão”. Há algo de bíblico na ficção tecida pela imaginação de Glauber em cima de histórias reais e figuras de um Nordeste nem tão remoto naquele tempo. Realizado nos anos 60, Deus e o Diabo na Terra do Sol é um filme perdido no tempo entre um passado rural marcado pelo banditismo e religião, e novos tempos marcados pelo êxodo para as cidades e chegada da urbanização e rodovias (ciclo que se completaria com a sua continuação, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, feito cinco anos depois). Algumas das faixas seguintes cantadas por Sergio Ricardo fazem a apresentação dos personagens e de seus contextos e presenças no mundo: Manuel e Rosa, narrativo e lento, cantada com melancólica desolação, Sebastião, agitado, na freira, sobre o messiânico santo milagreiro, ou A Mãe, cantiga sobre a morte da mãe de Manoel (Geraldo Del Rey), fúnebre, triste e lento. E também Antonio das Mortes, lento, dramático, que ilustra até a forma de o personagem andar, de caminhar entre a paisagem inóspita do cenário, e de sua condição de matador de cangaceiro e de sem religião.

Deus e o Diabo é um filme claramente dividido em duas partes, de cuja dialética se resulta em uma síntese. Ouvindo a trilha, percebe-se que a faixa que ilustra essa divisão é Corisco, cujo aparecimento na tela do personagem com esse nome faz com que o filme adquira um sentido mais raivoso e vibrante. Outras canções de Sergio Ricardo contam de um flahsback do passado recente de Corisco (Lampião), e do périplo de Antonio das Mortes (Mauricio do Valle) com um sentido trágico anunciador de desgraças e seu remorso pela matança dos beatos (São Jorge) e caçada para eliminar Corisco (A Procura). O disco-trilha do filme (lançado na época num LP hoje raríssimo, mas não difícil de encontrar em mp3) contém ainda fragmentos de algumas outras passagens sem a voz e o violão de Sergio: o Discurso de Sebastião (em cima de uma das bachianas de Villa-Lobos), o Monólogo de Corisco (Othon Bastos) com a intervenção de Dada e Manoel, e a Reza de Corisco, cujos versos são de uma oração nordestina recolhida por José Lins do Rego. A letra da última canção, Perseguição, que começa com o celebre refrão “Te entrega, Corisco”, também é de origem popular, com alteração de um único verso (“eu não sou passarinho para viver lá na prisão” em vez do original “eu não sou papagaio para viver lá na prisão”, que Glauber mudou por considerar que o vocábulo em questão não caberia bem na música), e é continuada com Sertão Vai Virar Mar, que retoma parafraseando um verso da abertura dizendo “ta contada minha história/ verdade e imaginação” para deixar o seu recado final de que a terra é do homem não é de Deus nem do Diabo. Vale a pena procurar o disco-trilha ou mesmo outras gravações com diferentes versões de algumas das faixas, como a releitura que o próprio Sergio Ricardo faria no seu disco mais recente, Ponto de Partida (2008), ou então Perseguição, gravada com o título diferente de Corisco numa bela versão de Nara Leão que abre o disco O Canto Livre de Nara, de 1965.