Por Leo Cunha
O título desta coluna, proposta mensalmente pela Zingu!, é menos uma pergunta (já que é quase irrespondível) e mais uma provocação, que nos leva a refletir sobre como a questão do cinema brasileiro aparece em nossa cinefilia cotidiana e nossa atuação profissional. É este último tópico que vai guiar minha resposta.
Como professor do curso de jornalismo do UNI-BH, nas disciplinas “Jornalismo Cultural” (há 12 anos) e “Fundamentos do Cinema” (há 3 anos), costumo ouvir dos alunos inúmeras opiniões, avaliações e questionamentos sobre o cinema brasileiro. Embora sejam universitários e possivelmente mais afeitos à cultura e às artes do que a maioria da população, a visão dos alunos sobre o nosso cinema é marcada – com poucas exceções – por uma boa dose de preconceito e desconhecimento. Ainda predomina a ideia de que, em termos técnicos, os filmes brasileiros seriam frágeis (quando não “incompetentes”, ou ainda “toscos”) e, a nível temático, muito “apelativos”, explorando excessivamente a miséria, a violência e o sexo.
Acredito que os professores (assim como os jornalistas, que um dia meus alunos serão) têm, como uma de suas funções, justamente questionar os preconceitos e minimizar esse tipo de desconhecimento (levando em conta, claro, que tais lacunas são menos uma falha pessoal do espectador e muito mais o resultado de um sistema de distribuição e exibição que inviabiliza o acesso a grande parte dos filmes produzidos no país).
A disciplina de “Fundamentos de Cinema”, por exemplo, permite que os alunos conheçam vários filmes brasileiros para além do que é exibido no circuito comercial. Muitos assistem, pela primeira vez, alguns clássicos (ou pelo menos trechos), mas também filmes relevantes da produção brasileira recente, como Madame Satã, de Karim Ainouz, Falsa loura, de Carlos Reichenbach, À margem da imagem, de Evaldo Mocarzel, 33, de Kiko Goifman, Santiago, de João Moreira Salles, Carmem Miranda – bananas is my business, de Helena Solberg, entre outros. Após momentos iniciais de apreensão e desconfiança (“mais um filme brasileiro, professor?”), o resultado geralmente é uma curiosidade e uma ânsia por conhecer mais e melhor o nosso cinema.
Já uma disciplina como “Jornalismo Cultural” permite um outro tipo de abordagem e reflexão sobre o cinema brasileiro. No trabalho final da disciplina, que eu batizei de “Assistir e analisar filmes: um processo”, eu parto da premissa de que nossa opinião sobre um filme (até mesmo o fato de gostarmos ou não dele, ou de gostarmos menos ou mais) começa a ser elaborada, quase inconscientemente, já no momento em que decidimos assisti-lo (ou, nesse caso, no instante em que o professor solicita o trabalho e estabelece o deadline, a data de entrega).
Nesse primeiro momento entram em ação dois elementos fundamentais e poderosos para a nossa apreciação de um filme: nossas expectativas e nossos pré-conhecimentos. A expectativa é influenciada e alimentada por diversos elementos paratextuais (o título do filme, o cartaz, o trailer, o making-of) assim como por outras informações às quais o espectador tenha tido acesso, tais como resenhas, números de bilheteria, prêmios obtidos etc. Também é fortemente influenciada pelos conhecimentos que o espectador já possui (antes mesmo de assistir ao filme, reforço) acerca do diretor, dos atores, do gênero, inclusive um eventual preconceito que ele tenha a favor ou contra o diretor F, a produtora G, o gênero H. É nesse momento, também, que eu peço aos alunos que indiquem a expectativa criada pela nacionalidade do filme. Quando se trata de um filme brasileiro, é o instante em que o aluno pode apresentar seu menor ou maior conhecimento do cinema nacional, assim como sua simpatia, antipatia, curiosidade ou mesmo desinteresse por esse universo.
Numa etapa posterior, em que os alunos já assistiram ao filme e já registraram uma primeira reação (não a crítica, ainda), gosto de discutir com eles essa reação. O que eles consideram, afinal, um bom filme? Que critérios entram em ação? No caso do cinema brasileiro, é fácil perceber que uma reação negativa resulta muitas vezes de uma expectativa frustrada, quase sempre moldada pelo padrão hollywoodiano. Esperava-se uma narrativa mais clássica, ou mais tradicional, e o que se encontrou foi um filme com trama menos fluente, ou menos amarrada, ou ainda com um final que o aluno considera abrupto ou impreciso (em oposição ao cinema hollywoodiano, onde prevalece a sensação de closure, como explica David Bordwell em diversos livros).
Foi esse estranhamento, por exemplo, que um aluna relatou diante do filme É proibido fumar, de Anna Muylaert. Como gosto muito desse filme (mas não só por isso), encontrei ali uma boa oportunidade para discutir a importância ou obrigatoriedade desta sensação de fechamento, e como muitos filmes – sejam da Nouvelle Vague, sejam do Cinema Novo, sejam de outras épocas e vertentes – renegam ou relativizam este princípio básico da narrativa hollywoodiana.
A sensação de “imperícia técnica” também é relatada frequentemente pelos alunos, diante de filmes nacionais, assim como o apuro de um Cidade de Deus ou Tropa de Elite costuma ser festejado nos trabalhos. Sem tirar os méritos destes filmes, dos quais eu, particularmente, gosto muito, também encontro ali uma janela para problematizar a questão do apuro e mesmo do virtuosismo técnico. Neste particular, um bom ponto de apoio é a discussão de Laurent Jullier em seu excelente livro O que é um bom filme? (Qu’est-ce qu’un bon film?) Ao contrário do que possa parecer pelo título (tão provocativo, aliás, quanto o dessa coluna), o professor Jullier não está interessado em descobrir ou apontar efetivamente o que seria um bom filme, mas sim em debater os critérios que os espectadores (tanto a crítica especializada quanto o público em geral) levam em conta na apreciação de um filme.
Uma dessas categorias é o que ele batiza como “êxito técnico”. Embora aparentemente seja um critério óbvio e palpável, não é de forma alguma indiscutível. Jullier argumenta, por exemplo, que se deve levar em consideração que parte da produção atual (e aqui, novamente, os grandes estúdios hollywoodianos é que ditam o modelo) promove um “exibicionismo técnico”, como se o cineasta dissesse: “faço tudo aquilo que o meio ou a máquina permitem que eu faça”, o que muitas vezes pode até encobrir um filme mal enquadrado, mal iluminado, mal decupado, mal narrado.
Costumo sugerir aos alunos que a reação calcada (ou excessivamente calcada) no critério do êxito técnico corre o risco de cair no olhar tendencioso contra os filmes que não o apresentam, seja por limitação de orçamento, seja por opção estética, seja por ambos (uma boa ilustração seriam os filmes recentes de Domingos de Oliveira, que apostam, propositalmente, na produção barata, e cujos maiores méritos certamente não estarão no aspecto técnico, ou ainda um cinema como o de José Mojica Marins).
Como escreveu certa vez Inácio Araújo, acerca da possibilidade de Central do Brasil ser premiado pela academia de Hollywood: “É bom ter filmes que concorram ao Oscar. É importante também que exista um outro cinema, aquele que nos parece inepto (à luz do cânone letrado).”
Leo Cunha (Jornalista e escritor; Doutor em Artes/Cinema pela UFMG; professor do curso de Jornalismo, do UNI-BH, e da pós-graduação em Produção e Crítica Cultural, da PUC-Minas; colunista da webrevista Filmes Polvo desde 2008)