Paixão e Sombras e a relação cinematográfica entre Khouri e Lemmertz

Dossiê de Aniversário: O Autor e a Musa – Walter Hugo Khouri e Lilian Lemmertz

 

Paixão e Sombras
Direção: Walter Hugo Khouri
Brasil, 1977.

Paixão e Sombras e a relação cinematográfcia entre Khouri e Lemmertz
 
 Por Renato Luiz Pucci Jr. 

Uma das mais notáveis aparições de Lilian Lemmertz no cinema aconteceu em Paixão e Sombras, de Walter Hugo Khouri, lançado em 1977. Filme estranho e fascinante, narra algumas horas dos preparativos de uma filmagem, à espera da personagem interpretada por Lilian: Lena, a atriz principal do filme, que parece não chegará nunca. Ela foi a uma rede de televisão para decidir se assina ou não um contrato para trabalhar na TV. Enquanto isso, o diretor do filme (Fernando Amaral) e sua assistente (Monique Lafond) discutem a situação, o sentido de tudo aquilo, o significado do cinema. 

Na trilha sonora, o inebriante sax de John Coltrane. Tudo acontece nos Estúdios Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, prestes a se transformar em supermercado. O diretor se chama Marcelo, personagem em sua quinta aparição na filmografia khouriana. Ele não se conforma com o perigo de não poder contar com sua grande atriz. A assistente lhe diz: “Você precisa entender o ponto de vista dela. Com a idade que ela tem, se não pega isso agora, nunca mais”. Khouri me declarou certa vez que esse diálogo tinha uma ponta de crueldade com Lilian, que de fato já não era uma mocinha e, assim como sua personagem, era também sondada, no caso, pela Rede Globo, em que viria a filmar telenovelas no início dos anos oitenta. 

Já se percebe que Paixão e Sombras apresenta a situação do próprio Khouri, que, àquela altura da carreira, vinha de uma série de fracassos de bilheteria. Insistindo em fazer cinema de arte, na contramão do cinema nacional, que se voltava para os sucessos populares, como Dona Flor e seus Dois Maridos e Xica da Silva, e continuava seu mergulho na pornochanchada, Khouri vivia a mesma crise pela qual passa o diretor do filme dentro do filme. 

Na espera, Marcelo fala do que pretende filmar. Vemos então o seu filme como se estivesse pronto – é a imaginação de seu diretor que produz as cenas a seguir. Surge Lilian Lemmertz (isto é, Lena) pela primeira vez, a entrar no cenário. Sua figura é elegante, botas, sobretudo, cabelos curtos, um close bem fechado mostra olhos insondáveis. A personagem de Lena procura um local para alugar, encontra aquela casa que parece ter vida própria, irradiando a mulher com uma energia mística, provocando-lhe uma espécie de “ascese”. Por que tem que ser Lena a fazer o papel? O diretor explica: “São tantos os climas que é preciso criar”. A mulher viverá na casa uma experiência ao mesmo tempo espiritual e carnal, algo que somente uma atriz excepcional poderia encarnar. 

A imaginação do diretor é entrecortada pela sua memória, isto é, flashbacks que mostram encontros anteriores  dele e Lena, desde o primeiro, quando ela ainda era uma estreante no cinema. Mostra-se que Marcelo ficou encantado com a jovem atriz, de modo que terminaram por fazer diversos filmes juntos. Num momento de insegurança profissional e artística, ele diz a Lena: “Qual o sentido de tudo isso? Você é a única certeza. Talvez a razão de tudo”. 

De volta ao presente, no camarim do diretor veem-se na parede várias fotos de estrelas do cinema, entre elas, Romy Schneider, Gene Tierney e, com a ênfase de um close, Marlene Dietrich. Ao seu lado, uma fotografia do diretor Josef von Sternberg. A criatura e o seu criador. Os sete filmes que fizeram juntos, a partir de O Anjo Azul (1930), levaram Dietrich ao estrelato internacional e Sternberg para a galeria dos maiores cineastas de todos os tempos. Marcelo evidentemente se espelha naquela dupla. Entretanto, não é essa a única associação possível a ser feita. Cabe aqui um testemunho pessoal: Khouri também tinha uma foto de Sternberg na parede, no caso, em sua biblioteca particular. E, assim como Sternberg e Marcelo, Khouri também tinha a sua estrela: Lilian Lemmertz. A associação entre Khouri e Marcelo é tão forte nesse filme que, entre as fotos que se veem no camarim de Marcelo, estão muitas de Lilian em filmes anteriores de Khouri: O Corpo Ardente, As Amorosas e outros. A distinção entre Lilian Lemmertz e Lena se dilui em Paixão e Sombras, filme repleto de intersecções entre ficção e realidade. 

Não cabe aqui analisar Paixão e Sombras integralmente. Basta dizer que a sua história sofre um desvio quando Marcelo, desesperado com a demora de Lena, decide-se a trocar o filme de arte, que pretendia fazer, por um filme sadomasoquista, aproveitando tudo o que tem à mão: o cenário, a assistente como uma das atrizes, e Buda, o carpinteiro da produção, como o senhor das loucuras sexuais. Estranhamente, quando Marcelo imagina esse novo filme, Lena também nele aparece, com Lilian Lemmertz num visual andrógino, propício a desvarios sexuais. Mas também esse filme não se realizará, por conta da recusa de Buda em dele fazer parte. 

A meros oito minutos do final de Paixão e Sombras, Lena chega ao estúdio. Sobretudo vermelho e ar de esfinge, mais charmosa do que nunca, Lilian Lemmertz mostra o quanto sua personagem daria vida àquele cenário e àquela história. Mas isso não acontecerá, pois, como se previa, Lena assinou o contrato com a televisão. Após o embate verbal entre ela e Marcelo, repudiando-se cheios de ressentimentos, ela vai embora. 

Não foi o último encontro profissional entre Lilian Lemmertz e Khouri, pois ambos ainda fariam Eros, o Deus do Amor (1981). No entanto, pode-se dizer que em Paixão e Sombras o resultado foi inestimável: poucas vezes se viu um filme falar de cinema com tanto poder narrativo e audiovisual. Um entre tantos exemplos memoráveis: Marcelo imagina o seu filme e, ainda a conversar com a assistente, põe-se de frente à figura imaginária de Lena, a não mais do que dois palmos de distância, olhos nos olhos – novamente veem-se criador e criatura, batendo-se num jogo de forças. 

Como diz Marcelo, “sem ela esse filme não tem sentido. É a cara que a gente põe na frente da câmera que é o mais importante”. Estranha declaração de um personagem-diretor, que evidentemente fala por Khouri. Essa fala mostra que a concepção autoral estrita, que coloca o cineasta como um ser divino ou um gênio romântico, muito acima dos mortais, inclusive dos demais participantes de cada filme, não era esposada nem por aquele que foi um dos maiores autores do cinema brasileiro.
 

Renato Luiz Pucci Jr. é autor do livro O Equilíbrio das Estrelas: Filosofia e Imagens no Cinema de Walter Hugo Khouri e professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná, em Curitiba.