O Anjo da Noite

Dossiê O Autor e a Musa – Walter Hugo Khouri e Lilian Lemmertz

 

O Anjo da Noite
Dir. Walter Hugo Khouri
Brasil, 1974. 

Por Eduardo Aguilar 

Cobravam de Khouri um excesso de classicismo, alguns até o achavam acadêmico, entendiam que seu cinema ignorava as questões sociais, seria um cinema burguês focado em dramas existências de uma elite pseudo-intelectual. Pois bem, então Khouri fez  As Amorosas, no qual abordou as questões existenciais de um rapaz classe média baixa. Há, inclusive. a violência social na seqüência com Stênio Garcia, há as ambições que movem essas pessoas, no caso, a personagem de Jacqueline Myrna, mas isso não convenceu a ninguém, pois o “olhar khouriano” era mais largo ainda que parecesse mais estreito, e ele insistia nas questões existenciais se sobrepondo as sociais. Mais adiante, Khouri realizou O Palácio dos Anjos, e, novamente, analisou o viés da ambição das classes mais baixas, confrontando com a manipulação e exploração dos que detêm o poder, mas indo muito além através de uma profunda dissecação das entranhas do poder pelo caminho do sexo. E nada melhor do que narrar essa história dentro de um bordel, mas mostrando a possibilidade da mulher subverter seu clássico papel de submissão e utilizar o jogo de aparências para reverter o processo e confundir os homens dando à eles a falsa noção de que manipulam quando na verdade são manipulados. Mas novamente Khouri não convenceu seus detratores, e tanto em As Amorosas como em O Palácio dos Anjos, a narrativa não é usual, a montagem não é clássica, enfim, a subversão também está presente na forma, mas continuava sendo visto como um cineasta burguês, de valores burgueses. 

No meu modo de entender, Khouri foi, dos cineastas brasileiros, um dos mais felizes na análise das classes menos favorecidas, ele não se compadecia delas, mas ao mesmo tempo tinha respeito e afeto por essas pessoas. A cena dos bolinhos de chuva em Noite Vazia é primorosa sob esse aspecto, o social está presente sem o discurso, sem a manipulação, mas tem a percepção do entorno, reconhece que uma pessoa é feita “também e inclusive” pelo ambiente em que vive. Em Estranho Encontro temos o personagem de Sergio Hingst, o caseiro que na ausência da patroa ocupa a sua posição, se serve de um drinque ao piano. Ou seja, a ambição pelo poder que reside no ser humano é a melhor forma de manipulação que permite perdurar as diferenças de classe em uma sociedade. 

E então, surge o O Anjo da Noite

O prólogo deste texto pode parecer longo, mas acredito que necessário, O Anjo da Noite é, no meu entender, o filme de Khouri que melhor resolve essas questões a respeito de um cinema que busca, acima do social, inventariar a alma humana, mas não sem ignorar a mesquinhez que envolve as disputas de classe. No entanto, Khouri opta por isolar os menos favorecidos, um vigia noturno e uma babá. Ela é uma universitária de origem classe média baixa que busca pagar sua faculdade com bicos, e ele, um homem que em razão de uma doença aceita sua condição de eterno vigia do patrão. Esses dois personagens irão passar uma noite juntos ao lado dos filhos de um casal abastado que vive em um mundo totalmente diverso, em festas, jantares luxuosos, etc. 

A babá é vivida por Selma Egrei na medida certa entre uma sensualidade despojada e uma inteligência que demonstra sua consciência sobre aquele universo asfixiante em que se encontra, eu diria que é a versão feminina do personagem de Paulo José em As Amorosas; e o vigia noturno é interpretado magistralmente por Eliezer Gomes, através de uma atuação que trabalha apenas no campo do inconsciente a percepção da angústia e mediocridade a que está condenado o personagem do vigia, viver “servindo” os outros. Viver a sombra. Neste sentido, fica evidente o contraponto estabelecido com o personagem de Selma Egrei, já que ela busca alargar seus horizontes. 

Num processo lento e gradual, Khouri vai mostrando a crescente loucura do personagem de Eliezer Gomes. Um momento em especial pode certamente figurar entre as maiores cenas do nosso cinema, é quando o vigia brinca com uma das crianças de “bang bang”, o menino com seu revólver de brinquedo e o vigia com sua arma real. Trata-se de um cena extremamente poderosa, que combina com rara felicidade a escolha dos planos somada as atuações e a exploração do ambiente com um resultado atmosférico surpreendente e uma tensão que traduz com perfeição a presença da loucura naquela casa. 

O maior acerto de Khouri neste trabalho é justamente a escolha da casa em questão como locação, uma mansão que tem no teto de sua sala a forma da tampa de um esquife. Dessa forma, os personagens estão enclausurados em um caixão, a loucura toma conta deste ambiente, a casa vira personagem e não poderia haver gênero mais acertado do que o terror para contar esta trama. Por conta destas escolhas, Khouri abusa da liberdade em relação aos recursos de linguagem, a câmera na mão; os enquadramentos com lentes grande-angulares ajudam a enfatizar o clima angustiante ao mesmo tempo em que burlam a narrativa tradicional, e, ainda por cima, resolvem as questões de uma produção de baixo orçamento. Ou seja, tudo muito bem orquestrado: forma X conteúdo X conceito. Resultado: uma obra-prima sobre os sentimentos mais recônditos da alma humana, e como se só fosse possível encontrar essa alma, louca ainda que seja, naqueles que vivem à margem, que vivem a agonia sem ter consciência da mesma, mas quando tomados por ela, tem como resposta o ÓDIO!

 

Eduardo Aguilar é cineasta e professor de audiovisual.