Dossiê de Aniversário: O Autor – Walter Hugo Khouri
Mônica e a sereia do rio
Direção: Maurício de Souza
Direção de cenas ao vivo: Walter Hugo Khouri
Brasil, 1986.
Por Filipe Chamy
O Brasil, em termos de cinema de animação, não engatinha: rasteja.
No decorrer das últimas décadas pudemos ver alguns esforços isolados e louváveis persistências no sentido de fazer desse estilo de arte um cinema um pouco menos “de exceção”, mas sempre caminhamos no sentido contrário ao ideal, insistindo em objetivos errados — como o de fazer a apologia do ufanismo (com Rio e Brasil animado temos dois aparentes exemplares dessa tendência), ao invés de simplesmente procurar fazer um bom trabalho. Nosso país não nega a influência católica, ao provar que não deseja conquistar pela sinceridade do discurso, mas simplesmente catequizar o espectador.
Esse problema, do cinema-panfleto, eu já o discuti muitas vezes neste espaço. É crônico e não parece que nos livraremos cedo de tal entrave à liberdade de criação e veiculação artística.
Mônica e a sereia do rio, por sorte, não sofre nem sombra de um mal parecido. É um média-metragem bastante simpático e que nada tem de ofensivo ou pernóstico. Remete aos bons tempos do descompromisso das revistas de Mauricio de Sousa, pois hoje é sabido que ele se interessa mais por campanhas sociais, de conscientização e inclusão, que pela qualidade e inovação dos produtos que assina. Neste filme não há o “cartilhismo” tão facilmente encontrável em quaisquer de seus gibis atuais, o que é uma felicidade tremenda: aqui temos apenas histórias fantasiosas estreladas por crianças, e é nisso que podemos enxergar a força da narrativa. Ou das narrativas, pois o filme é episódico e possui diversos núcleos narrativos.
A animação, propriamente dita, não é exemplar, mas está longe do aspecto tosco das tristemente célebres criações da Hanna Barbera. As limitações técnicas dos desenhos apresentados em Mônica são claras desde o início, porém contornadas pela singeleza dos movimentos e dos cenários e das expressões faciais das personagens. A dublagem delicada contribui também para um programa agradável. Ou seja: é um desenho limitado, mas nos limites do aceitável (e do satisfatório).
O mais curioso da fita é sua parte live action, dirigida pelo icônico Walter Hugo Khouri. Sim: Khouri foi filmar em Goiás as cenas “reais” do filme, onde Mônica contracena com a então popular Tetê Espíndola. São passagens que propõem uma comunhão intensa com a natureza, com a vida e com as crianças, elementos basilares para uma “mensagem” positiva a ser passada aos jovens que assistirem a este média. Mas sem hipocrisia: Khouri filma com competência pequenos espaços cenográficos, e com isso dá ao filme uma dimensão mais séria e respeitável à encenação, fazendo com que Mônica deixe de ser uma criatura “de papel” e vire uma menina de verdade, interagindo com o cenário e seus intérpretes. Não à toa, a despeito de gags divertidas nas esquetes com os outros personagens, Mônica e a sereia do rio é sempre referenciado como “o filme da Mônica com a Tetê Espíndola”, mostrando que teve êxito a meta de Khouri de tornar a coisa toda mais coesa, dar unidade a uma obra que desejava ser dispersa. Então temos uma equipe animando Mônica, Cebolinha, Cascão, Anjinho etc. e também temos Khouri a comandar um pouco a razão de tudo, que é a entrada de Mônica em um mundo fantástico onde é tudo tridimensional, real. Aí fica mais fácil integrar os relatos contados pela garota, a saber: uma gruta (literalmente) dos diabos, a saga do jacaré “lagartixa”, uma releitura de O corcunda de Notre-Dame e a tal sereia-título, que rivaliza moderadamente com o místico avatar da própria Tetê Espíndola, a todo instante chamada por Mônica de “fadinha”. Mônica e a sereia do rio é um mergulho prazeroso nas águas de uma infância talvez extinta.