Entrevista Afrânio Vital

Dossiê de Aniversário: O Autor – Walter Hugo Khouri

 

Khouri dirige Lilian Lemmertz em O Desejo - negativo exclusivo tirado por Afranio Vital

Entrevista: Afrânio Vital

Por Adilson Marcelino 

 

Nascido em 1948, em Bom Jesus de Itabapoana, Rio de Janeiro, Afrânio Vital é cineasta, professor de filosofia e jornalista. Diretor dos longas Os Noivos (1979), Estranho Jogo do Sexo (1983) e A Longa Noite do Prazer, e de vários curtas, Afrânio foi grande amigo e colaborador de Walter Hugo Khouri.

Nesta entrevista exclusiva para a Zingu!, Afrânio Vital fala sobre a convivência com Khouri, sobre a obra dele e de como ela influenciou sua vida e sua própria obra. Fala também sobre a relação da crítica com o cinema de Khouri e sobre o  livro inacabado que escreveu sobre o mestre.

 

Zingu!: Você tem um livro inacabado sobre o Khouri e sua obra. Por que desistiu de concluí-lo? Pretende retomá-lo?

 

Afrânio Vital

Afrânio Vital: Não desisti de concluí-lo. Ele representa o contexto de uma época. Estávamos nos anos 70. O livro tem o prefácio de Otávio de Faria e a revisão de Rubem Biáfora. É um trabalho extremamente datado. Representa para mim uma fase de minha vida e foi todo escrito nos anos mais férteis de minha amizade com o diretor, exatamente entre 1972 e 1979,  e o ultimo filme analisado no livro foi  O Desejo. Hoje, com o distanciamento, vejo que ele também terminou no exato momento em que eu dirigi Os Noivos. A partir daí  o livro apareceu para mim como o fim de um rito de passagem de crítico a diretor, era como se eu tivesse decifrado o cinema de Khouri e o livro tivesse se tornado num empecilho para mim. Minha admiração por Khouri era mais abrangente do que pelo livro e a partir do momento que constatei isto o livro passou a ser obsoleto, se publicado ou não …. Foi como a solução de um mistério, uma verdadeira viagem pela obra do autor e esgotando esta obra o livro perdeu o sentido pra mim. Penso, às vezes, em retomá-lo, mas teria de ser junto com outra pessoa, com uma visão mais contemporânea. Estou com 62 anos e pra mim, felizmente ou não, as cartas já estão todas sobre a mesa. Não existe mais aquela paixão por decifrar, por olhar nos olhos das personagens de Khouri,  de caminhar com ele nos travellings  nas tomadas de câmera, enfim,  de ser cúmplice de sua câmera no desespero de entender o universo khouriano, é como se eu já o tivesse esgotado. Não teria mais hoje o que dizer a mais do que disse sobre cada filme. Não desisti de concluí-lo, o livro se esgotou por si mesmo, como os anos 70 também se esgotaram para mim. Não existe mais em mim aquele tesão por publicá-lo, é como se um enigma tivesse sido desfeito.

Z: Em entrevista para o blog Estanho Encontro (link para a entrevista), da Andrea Ormond, você conta que conheceu o Khouri em um festival onde exibia o curta em Super-8, “Adivinha quem vem para almoçar” – dirigido por você com Reinaldo Cozer. Como foi passar de admirador apaixonado pelo cinema do Khouri para o convívio com o cineasta?

AV: Falo também na entrevista que conheci Khouri muito antes de o conhecer. Conheci primeiro, e muito, os seus filmes, e seus filmes e sua pessoa são na verdade a mesma coisa. Quando o vi pessoalmente pela primeira vez só pude dizer o óbvio, foi papo reto: “olha eu conheço você, eu conheço todos os seus filmes plano por plano, portanto já é a hora de te dizer isto, tenho muita coisa pra te perguntar. Como é que esta tua obra surgiu? Que loucura é está ? A que Deus você serve?”  No começo de nossa amizade só conversávamos por cenas: Aquela cena do navio em O Palácio dos Anjos – perguntava eu -, como surgiu a ideia de transmitir o clima de transcedência a partir do enorme navio branco? E o olhar patético e enigmático da Geneviéve? …. E a mãe da personagem da Rossana Ghessa enrolando neuroticamente aquela toalha de mesa?,…  Cara, como é que tu teve a ideia de ressaltar isto naquela cena? Porra tu é muito louco…” Eram perguntas,  perguntas e mais perguntas… Era aquele cara que queria dirigir filmes se encontrando com o diretor idolatrado e o inquirindo ferozmente.

A minha sorte, ou azar, é que eu era tão louco quanto ele, que criava as cenas, e ele tão louco quanto eu ( é difícil, hoje em dia, recriar a atmosfera do que foi os anos 70 ). Tu não faz nem ideia de como era, nós respirávamos cinema 24 horas por dia e as cenas …. eu as trazia todas ( todas mesmo, não existia videocassete nem DVD ) guardadas no fundo da memória e isto o assustou. Era, no mínimo, para começar uma amizade. Nem ele e nem eu poderíamos perder esta chance. Me deu o número de seu telefone, do endereço na Rua Martins Fontes, e pegou os meus. O pior de tudo é que eu estava morando na Rua Correia Dutra, no Flamengo, exatamente  no mesmo bairro e rua em que ele morou quando jovem, passando  uma temporada no Rio. De repente, em menos de um mês, Khouri aparece em minha casa e retoma as conversas que tivemos no primeiro encontro.   A partir daí, foi para mim um decifra-me ou te devoro, foi uma coisa sem saída, tipo assim.. cara, agora tu se fud…  tu vai ter que dar conta deste mistério. Eu não tinha outra saída  e entrei direto com o coração e a  minha imensa vontade de saber tudo sobre ele e como é que surgiram aqueles  filmes. Foi ali que na verdade tudo começou,  inclusive o livro.    

Z: Em conversas informais, o Khouri falava sobre os filmes dele, sobre a temática que explorava? Falava sobre o famoso personagem Marcelo? Falava sobre as personagens femininas?

AV: Falávamos muito sobre os filmes. Mas falávamos também sobre os filmes de forma indireta, através da literatura. Sobre  Marcelo raramente, umas duas ou três vezes nos dez anos de amizade. A conversa mais significativa sobre Marcelo foi  uma vez em que ele me pegou na Presidente Vargas, eu estava voltando da faculdade ( estudava no IFCS no Largo São Francisco ). Estava no carro o Fernando Amaral, ele me  apresentou e disse que ele seria o Marcelo no próximo filme. Deixamos o Fernando em Copacabana e quando ele já não estava mais presente, lembro-me que disse pra ele: “o Marcelo está envelhecendo, de Paulo José em As Amorosas para hoje ele caminhou muito”. Khouri me respondeu: “e vai caminhar mais ainda, estou  pensando no Tarcisio Meira para o próximo Marcelo”.

Já em nossa amizade existia a cumplicidade com o alter ego Marcelo. Falar sobre o Khouri era mesmo que falar sobre Marcelo, e, inconscientemente, não se tocava nas conversas em Marcelo, era papo direto, falava-se sobre Khouri, o que era o mesmo. Neste mesmo dia conversamos sobre a atemporalidade do personagem que, redivivo na adolescência em O Último Extase, voltaria velho em Eu na pele de Tarcisio Meira. Esta atemporalidade era também a de Khouri costurando filme por filme,  uma colcha de retalhos (ou um imenso tapete persa – como o queria Pierre Kast ) em que se podia ver o Marcelo jovem, o Marcelo oculto, o Marcelo sofrendo as agruras das decepções de juventude e de adulto jovem  (As Amorosas e O Último Extase), sempre atemporal. Me lembro que falávamos sobre Todos os  Fogos o Fogo, de Julio Cortazar, e dizíamos todos os Marcelos o mesmo Marcelo. Todos los Fuegos el  Fuego  era de 1966 e o furor causado pelo livro só ocorreria nos anos 70. Estávamos nos anos 70, repito sempre isto. A visão que tínhamos do sujeito nos anos 70 era a fenomenológica e existencialista, e somente no fim da década é que um sujeito estruturado pela linguagem se definiria com o estruturalismo; Repito sempre e não  canso, estávamos nos anos 70. Isto é essencial para analisar o Khouri desta época.

Sobre as mulheres conversávamos mais; Eu sempre as  dividia  em personagens: a amante no Rio ( As Cariocas ); as prostitutas ( Noite Vazia e Palácio dos Anjos ); as casadas ( Lilian Lemmertz ),  esposas ( e/ou parceiras ) dos Marcelos ( Anecy Rocha, Jacqueline Myrna, Sandra Bréa ) etc. Khouri tinha plena consciência de que “ a mulher” não existe, que existem mulheres e que as mesmas se degladiavam na fronteira de um naturalismo à la DH Lawrence ou se perdiam no enigmático das personagens de Antonioni. Isto me fascinava,  pois era extremamente moderno para a época. Mostrar que “ a mulher” não existia, mas sim arremedos atemporais de figuras à procura de um autor ( de um homem ou, vá lá, de um Pai que as reconheçam ). Mulheres assim existiam, isto era impressionante e  está bem patente em  O Palácio dos Anjos , As Deusas , O Desejo,  enfim, em todo o universo khouriano.

O aparecimento de Lilian Lemmertz foi um caso especial. Era o que ele  procurou a vida inteira . Uma mulher do sul, branca e transparente, diáfana e que trazia no rosto (à la Dietrich ) um enigma assustador. Os close em Lilian, assim como os de Sternberg em Dietrich, são inassimiláveis (é aquele momento de fusão entre o infra e o supra lingüístico), é metafórico, sintomático, é um mais valia (como diriam os filósofos marxistas); é um plus ou  the top , como diria Cole Porter,   é a produção de um sintoma (como quereriam os freudianos). Enfim, são a mostra de um mistério, de um enigma que é, para o homem, o feminino.

Khouri era um mulherengo bem paulista, com um perfil italiano a la Tony Bennet. Gostava pra caraca de mulher, o que o tornava, obviamente, quase homofóbico (o que eu sabia que no fundo era uma defesa). O fascínio da mulher para ele era um jogo sem fim, não poderia perder a oportunidade de questionar a esfinge. Lilian caiu como uma luva, para mim foi o maior presente que Khouri ganhou, ele não poderia perder esta chance que o destino lhe deu. Entrou de cabeça nos personagens que criou para ela e se abeberou do manancial até o deixar farto.      

 

Z: Khouri filmou grande parte das deusas do cinema brasileiro. Como você vê esse elenco de personagens femininos dentro da obra dele?

AV: Foi como eu falei anteriormente. O pior é que não existe no cinema brasileiro uma obsessão  pelo feminino tão grande quanto a da obra de Khouri (a gente não tem comparação, e isto é que é o ruim). Ele é único nisto, esta originalidade da obra a torna sui generis,  é a marca Khouri.

A melhor maneira de entender as mulheres em Khouri é em Eros. Eros começa na primeira pessoa e na definição de uma cidade e de um local como “um território de caça e de prazer”, vide Marcelo na introdução do filme. A partir daí,  as mulheres desfilam uma a uma. Estão ali todas as principais mulheres da segunda fase de sua obra, desde a Norma Bengell de Noite Vazia até  a filha de Humberto Teixeira – Denise Dumont, a mais recente.Colocados todos os gatos em um só balaio, Marcelo se atormenta onde esperávamos que ele inauguraria um mais gozar. Khouri me disse uma certa vez, e afirmou isto em entrevistas, que os espectadores que buscavam sexo em seus filmes  (que,  na verdade, era uma armadilha criada por ele)  sempre se decepcionavam. Aqui também vemos a modernidade em Khouri. A relação sexual não existe, as relações só existem na linguagem e nos matemas, um homem e uma mulher não fazem um,  só fazem dois e podem no máximo fazer três – um filho. A relação sexual sempre deixa um  resto inassimilável e angustiante. O absoluto de uma relação sexual é uma mentira (que dá lucro pra muita gente – vejam as famigeradas novelas e seu finais felizes ) e isto ninguém mostrou mais para os espectadores do que Khouri. Revejam o final de Noite Vazia, revejam o final de Eros e o recomeçar outra vez de Marcelo.

Recomeçar, recomeçar, recomeçar – é o máximo que podemos fazer. Se isto não basta,  revejam o final de  A Ilha, quando A Aventura termina. Se a mulher não existe  ( pois não pode existir um não todo), a relação sexual também não existe. A epígrafe de O Desejo “Será que o sexo é onde começa a filosofia”,  frase de Norman Mailler, na verdade quer dizer: será que é no sexo que começa a solidão ou o pensar do vivente. Se em Vinicius “ a morte é a angústia de quem vive e a solidão o destino de quem ama”, ninguém no cinema brasileiro mostrou isto com tanta veemência. Os personagens masculinos são, na verdade, angustiados da procura da  mulher em diversas formas que  ela se apresenta pra gente no curto espaço de vida que temos (seja na forma de mãe, de prostituta , de amante etc ), sempre recomeçarão a procura ainda cada vez mais angustiados, pois o bem supremo não existe. Isto assustou aos marxistas de plantão, foi um tapa na cara e fez a crítica massacrar os filmes de Khouri. Dstruir com as utopias era o que Khouri mais gostava de fazer (e pior que o fazia ironicamente ), ele pagou caro por dizer esta verdade.

Nos anos setenta o cinema mundial, com raras exceções, vendia utopias, os americanos e os europeus então eram mestres nisto (e pouco importa que estas utopias tenham sido mais ou menos cristãs ou mais ou menos marxistas – o que dá no mesmo).  Khouri  se recusava a isto. Olha, aqui gente a felicidade não existe, dizia ele nos filmes. Foi na verdade um estraga-festa, uma ducha gelada no espectador e na critica. Pagou caro também por isto, mas foi coerente com seu ideário, embora não servisse a nenhum Deus.

Z: Quais atrizes você acha que são essencialmente “Khourianas”?  Quais atrizes de ontem ou de hoje que você gostaria de ter visto em filmes do Khouri?

AV: Em primeiro lugar a Lilian, depois a Edla Van Steen de  Na Garganta do Diabo , a Barbara Laage de  O Corpo Ardente,  e a Selma Egrei de  O Anjo da Noite. As que eu gostaria de ter visto sendo dirigidas pelo mestre seriam a Maria Della Costa, Cacilda Becker e Cleyde Yáconis.

Z: ainda naquela entrevista, você disse que para a crítica “o refinamento do seu trabalho (de Khouri)  era um osso duro de roer”. O Khouri chegou a falar como lidava com o olhar que a crítica lançava sobre ele e sobre seus filmes? E como você avalia a postura da crítica sobre ele ainda nos dias de hoje?

AV: Kkouri tinha plena consciência do que fazia. Acreditava no seu cinema, e o que mais me impressionava é que ele demonstrava um desprezo absoluto pelas críticas ideológicas ao seu trabalho. Sempre me retrucava dizendo: “lembra  do Jung quando rompeu com Freud? Dê  uma lida nas  Memórias do Jung …” Ou se acredita no que que se faz ou então é melhor não fazer, dizia ele. Continuo a achar a mesma coisa. É um osso duro de roer, é refinado, culto, e acredita naquilo que faz. Não tem meio termo e nem concessões, é seco, direto, frio e cruel. Relembrem da dança macabra do Eliezer em volta do corpo de Selma no Anjo da Noite, vejam só a loucura …Lembrem-se do Luigi Pichi sendo jogado nas cataratas em Na garganta do Diabo; lembrem-se da personagem de Rossana Ghessa  sendo psicoticamente devolvida à mãe depois do fracasso na prostituição; lembrem-se da Lilian matando e afogando a Selma Egrei em  O Desejo. Curto, seco, e cruel. Chega ou querem mais…..?

Z: Através da obra do Khouri, podemos ver sua relação com a cidade de São Paulo, e a abertura de Eros, além de ser uma obra-prima por si só, nos diz muito sobre isso. O Khouri falava muito sobre a cidade?

AV: Só falava. Tinha plena consciência que vivia numa das maiores cidades do mundo, e amava muito o centro de São Paulo. A capa do livro seria uma foto dele no mirante no alto da torre do Banespa olhando a cidade embaixo.  Todas as vezes que estive lá com ele, andávamos muito na noite, jantávamos no Gigeto, bebíamos em sua cobertura olhando parte da cidade, a noite enfim. Ele era enraizado em São Paulo, e como digo na entrevista era um paulistano típico. A abertura de Eros é o depoimento mais lindo que vi em cinema sendo dado por um homem à uma cidade. Mas quando o revejo hoje, com o distanciamento de 30 anos, vejo que a cidade era para ele como uma jaula ou uma gaiola, mais como uma jaula,  e vejo-o como um urso preso, aquele mesmo de  Eros, amarrado num espaço fechado e com uma força e um amor imenso para ser comunicado aos espectadores. Como seus  personagens, também vejo o Khouri angustiado, como o homem moderno sempre foi, principalmente, em cidades como Berlim, New York ou São Paulo, que acentuam mais e de forma expressionista esta angústia e solidão. 

Z: Você conviveu com personalidades importantes da cena paulista como Khouri e o crítico e cineasta Rubem Biáfora. Era uma São Paulo muito diferente da que temos hoje? Não em termos estruturais – pois aí é lógico que sim -, mas em termos de imaginário mesmo?

AV: Era a São Paulo dos anos 70, como havia também o Rio dos anos 70. Você tinha ali a Boca do Lixo,  o Person, o Mojica Marins, o Biáfora, o Reichenbach, o Ozualdo Candeias,  e outros,  mas, em sua maioria e especialmente os que citei, respiravam cinema 24 horas por dia, eram cinéfilos obcecados existiam de e para o cinema. Eram  apaixonados pelo cinema e o  faziam e de uma forma meio louca, esta paixão e desta forma pelo cinema foi a grande marca dos anos 70. As cidades se descaracterizaram muito, e algumas chegaram a perder sua identidade. Nos anos 70,  poderia-se dizer: Khouri é São Paulo, Glauber é Bahia, Nelson Pereira dos Santos é Rio de Janeiro. Isto acabou,  mas alguma coisa do que é a identidade de um artista e sua cidade ainda ficou, as pessoas é que têm, atualmente, medo de se revelar. Ninguém se arrisca, as pessoas se querem cidadãos  antissépticos e cibernéticos, sem identidade (como querem as multinacionais), e, obviamente, sem sinceridade e verdade, pois estes dois valores não combinam com assepsia. Verdade e sinceridade, na maioria das vezes, incomodam e não cheiram muito bem.

Z: Qual a leitura que você faz sobre a obra do Khouri?

AV: É uma obra inacabada. Me lembro sempre de Heiddeger,  O Ser e o Tempo era para ser em vários volumes, somente o primeiro foi escrito. Me lembra também Nietzche, por ser uma obra aberta. É uma obra bela e fascinante.  Khouri foi um esteta de mão cheia e isto já garante sua perenidade. Não é uma obra inacabada e aberta porque o autor esteja perdido dentro dela, mas porque o que Khouri fez foi só encetar o primeiro capítulo, o capítulo  que mostra a impossibilidade  de se procurar, através da sexualidade, uma forma de negar a inutilidade da existência humana. É como o livro de Freud , As Pulsões e seus Destinos,  de 1915; É  muito aparentada também à  Tragédia Burguesa,  de Otávio de Faria, e ao  Inútil de cada Um, de Mario Peixoto. Glauber define muito bem o cinema de Khouri como o de um autor (um dos poucos) que chegou ao cinema depois de ter superado uma tendência literária (Revisão Critica do Cinema Brasileiro). Os outros volumes (filmes) que ficaram de ser feitos, que explicitariam melhor a coisa e apontaria caminhos, ele não teve tempo de terminar, ou, malandramente, os escamoteou,  deixando para nós a cansativa e triste tarefa de criá-los.  

Quando eu estava editando Os Noivos no mesmo estúdio do Bataglin, Glauber supervisionava  o som de A Idade da Terra. Quando Khouri veio me visitar no estúdio e ver os copiões, os dois se encontraram no corredor. Fiquei olhando a forma amigável e gentis com que se comunicaram e conversavam sobre questões técnicas de filmagem, e riam. Até hoje me arrependo de não estar com uma máquina fotográfica e até mesmo com os celulares e as câmeras dos  mesmos, que não ainda não existiam. Fiquei abobalhado de ver os dois no bate-papo. Estavam ali dois homens obcecados e que como loucos  acreditavam naquilo que faziam. Um sonhava em alertar o povo, e, sobretudo  ao proletariado sofrido e atormentado do Brasil sobre a possibilidade de um mundo, em que se alterasse a forma de relação senhor-escravo. O outro se degladiava filme por filme, conseguindo filmar não sabe como e com quanta dificuldade para dizer que a busca a partir da sexualidade era inútil e só faria aumentar o vazio da existência. Ambos acreditavam piamente em suas teses.  E o pior é que hoje eu sei disto, os dois tinham razão. O cinema de hoje, salvo raríssimas e fracas exceções, é uma merda, carece de paixão, de coragem de dizer o que se pensa e age castrado e covardemente amordaçado pelos seus próprios criadores. Isto no Brasil, o país da cobra grande, diante de  um povo analfabeto e inculto governado e educado por medíocres redes de televisão.  

Z: O cinema do Khouri influenciou sua obra cinematográfica? E sobre a sua vida?

AV: O cinema sim, principalmente na coragem de o fazer. Na minha  vida também influenciou de uma certa forma,  ambos fazíamos Filosofia na faculdade , ambos casamos com uma colega de classe, o que,  inconscientemente, me influenciou muito. Khouri chegou até, numa certa fase da minha vida, no começo de meu casamento em que passei muitas dificuldades financeiras, a pagar um aluguel do apartamento que eu devia. Ele se ofereceu e o fez. Nunca me cobrou e quando o lembrava  ele fazia questão de não cobrar, de não receber. Eu não tive pai, de uma forma regular em toda a minha vida. Perdi meu pai aos dez anos, mas tive muitos outros pais na minha vida . Tive o Plinio Muto e o Dr. João Uchoa Cavalcanti, que me deram uma bolsa de estudo na Faculdade Estácio de Sá; tive o João Batista do Nascimento, que me ajudou quando abri a Aleph Filmes e fiz os primeiros curtas e longas. 

Khouri foi um dos mais significativos deles. Hoje, penso muito sobre minha amizade com ele, ela nasceu muito também da solidão dele quando vinha ao Rio. Geralmente me ligava assim que chegava, íamos juntos à Embrafilme, aos Festivais de Cinema como os do Hotel Nacional em São Conrado. Comigo, de uma certa forma, ele encontrava força para circular entre o meio falso e medíocre que o Cinema Novo impunha aos intelectuais cariocas nos anos 60 e 70. Éramos como uma ilha, solitários no meio intelectual carioca. Deviam rir muito da gente e pensarem as coisas mais loucas e sem sentido. Andávamos muito de carro, ele geralmente vinha de carro de São Paulo ao Rio,  por isso andávamos muito pelo Rio de carro, ele adorava dirigir. Gostava muito de conversar com Terezinha, minha esposa, e com minha sogra da. Ana, que era uma pintora e artista. Por vezes ligava perguntando por mim, e quando eu não estava conversava muito tempo com ela ao telefone.

Na verdade foram anos de solidão, e nos dois éramos os únicos interlocutores possíveis no Rio de Janeiro que não pertenciam ao grupo do Cinema Novo e ao pensamento ideológico da época. Me lembro que uma vez fui com ele e o Biáfora ao Hospital  Beneficência Portuguesa, na rua Santo Amaro, no Catete, visitar o Flávio Tambellini        (pai)  pouco antes dele morrer. Khouri e Biáfora saíram do hospital arrasados. Ficamos rodando pelo Rio feito  barata tonta sem saber pra onde ir. Este cerceamento ideológico empurrava a gente para uma solidão às vezes abissal. Se isto impunha esta certa solidão a nós, por outro lado quando a gente se encontrava em São Paulo e quando o Khouri vinha ao Rio mostrar seus trabalhos, ou mesmo filmar como em O Anjo da Noite, os encontros eram férteis e feéricos, os bate papos rendiam muito. Ser seu interlocutor no Rio, fazendo com que ele pudesse suportar o dia a dia de lidar com pessoas como as do Cinema Novo, que já neste momento controlavam a Embrafilme, os jornais, a crítica, tudo enfim, foi tarefa para Hércules, era preciso matar um leão a cada dia.  E sozinho isto era impossível. Esta foi também uma das razões da nossa amizade ter durado muito tempo. Eu era para ele, excetuando críticos corajosos  da época como o Ely Azeredo e o Antonio Moniz Viana, o interlocutor mais confiável e o amigo que ele tinha no Rio que compreendia e amava seus filmes, alguém com quem ele podia conversar sobre tudo. Paradoxalmente, seu melhor amigo no Rio era um negro, logo Khouri que todos  achavam esnobe e racista.Na verdade, ele tinha sim um preconceito que era com relação a burrice, a insinceridade  e ao sectarismo ideológico. Eu tive este privilégio de ser seu amigo e ele foi um dos melhores amigos de minha vida.