Dossiê de Aniversário: O Autor e a Musa – Walter Hugo Khouri e Lilian Lemmertz
As Amorosas
Direção: Walter Hugo Khouri
Brasil, 1968.
Por Daniel Salomão Roque
A cacofonia das interações no espaço público e o silêncio constrangedor do cotidiano privado; a imensidão da metrópole, de suas avenidas pontuadas por semáforos que regulam o tráfego de um enorme contingente humano, e a confortável claustrofobia dos apartamentos de classe média; o laconismo e as digressões. As Amorosas é uma obra pautada por extremos, que transportam para o plano da narrativa todas as instabilidades do protagonista Marcelo – o célebre alterego de Walter Hugo Khouri, que tem nesse filme sua primeira aparição – e estabelecem uma rara (e incômoda) relação de intimidade com o espectador. A posição que nos cabe, aqui, é um tanto quanto mórbida: a contemplação, nos mínimos detalhes, de uma rotina fútil e de agonias vazias.
Para tanto, Khouri nos desarma daqueles confortáveis nexos de causalidade, tão comuns na dramaturgia como um todo. Inexistem os flashbacks; os diálogos não se prestam a explicar as motivações ocultas por trás de cada atitude. O passado é omitido, o futuro não nos reserva nada: apenas o presente, cheio de dor, importa (mas não muito, que fique bem claro). Boa pinta, Marcelo (Paulo José) é o típico universitário abastado. Não obstante, mora de favor na casa de um amigo e é sustentado por sua irmã (Lílian Lemmertz), que divide uma cobertura no centro de São Paulo com uma bela dançarina de TV (Jacqueline Myrna); em suas andanças pelos corredores da faculdade, conhece uma militante do movimento estudantil (Anecy Rocha) empenhada na produção de um documentário sobre os anseios da juventude contemporânea. A teia de estímulos que as tais “amorosas” estabelecem em torno de Marcelo é também a base sobre a qual o filme se constrói.
O título do filme se refere a essas três mulheres, completamente diferentes entre si, mas elas nada mais são que extensões da personalidade de Marcelo, suportes sobre os quais ele projeta seu derrotismo niilista, suas inseguranças, misérias e picuínhas pequeno-burguesas. Egoísta e auto-piedoso, Marcelo vê a si mesmo como um elemento distinto dentro de um corpo social amorfo, e seu sofrimento reside na percepção ilusória da sua pessoa como polarizadora de todas as relações afetivas e amorosas, nas quais ele, invariavelmente, se enxerga como vítima – do viés incestuoso e possessivo que marca sua convivência com a irmã; dos desenfreados impulsos sexuais que a vedete televisiva lhe desperta, sucedidos pela raiva de ter se deixado atrair por ela; das estocadas ideológicas que toma da colega universitária, ou do quer que seja.
A câmera, ao contrário das demais personagens e parte da platéia, não toma por megalômanos os lamentos de Marcelo, cuja angústia é a força motriz de cada uma das cenas que constituem o filme. Potencializadas de forma gritante pelo aparato técnico cinematográfico, as pequenas idiossincrasias do protagonista, tão enfatizadas na narrativa, acabam por inseri-lo num contexto específico, definindo-o, em parte, pelo meio e época em que vive. A repulsa pelo status quo televisivo, pelo mundo das telenovelas e programas de auditório representado pela amiga de sua irmã, não torna menor seu estranhamento em relação ao engajamento político da colega universitária, com quem assiste, a contragosto, a um show dos Mutantes. Quando ambos se deitam, a câmera não desnuda apenas os corpos do casal, mas também o quarto de Marcelo, deslizando pela sua superfície, aproximando-se de suas paredes, enquadrando posters, pichações e objetos: discos de John Coltrane e Ornette Coleman; livros de Camus, Borges, Spinoza, Henry Miller, Clarice Lispector, Céline e Alain Robbe-Grillet; um número da revista Mad (!). E, no ato sexual, a repetição de pequenos gestos é evidenciada por uma série de planos curtos e quase idênticos que se sucedem ao som de um violoncelo fúnebre: o beijo que Marcelo dá nas costas da colega, bem como o momento em que seus lábios encostam nos da garota, repetem-se em três planos cada; o mesmo ocorre com o close no rosto de Anecy Rocha, a leve mordida que sua personagem dá na orelha de Marcelo e seus afagos desesperados nas costas e cabelos do companheiro.
O sexo, então, se transforma num microcosmo da vida do protagonista: um ciclo vicioso permeado pela brevidade, insignificância e total ausência de significados, onde a única saída possível é o mergulho num hedonismo cheio de remorsos. No meio desse caminho, Khouri transforma corpos em paisagens e estabelece seu estilo.