O Amor Está no Ar

Dossiê Ênio Gonçalves

O Amor Está no Ar
Direção: Amylton de Almeida
Brasil, 1997.

Por Donny Correia 

Aquele que tudo sabe, quando o amor está no ar. 

O amor está no ar é o filme póstumo de Amylton de Almeida, autor, teatrólogo e critico capixaba morto prematuramente aos 49 anos em 1995, deixando este seu único longa metragem de ficção inconcluso, sendo que a estréia só aconteceria timidamente em 1997.

Esteticamente, não há o que se esperar muito. Creio que o fato de ter sido realizado num ambiente de produção esparsa, uma vez que o Espírito Santo não ingressou no eixo RJ-SP de  cinema, e também o fato de ser realizado na pré retomada do cinema nacional, prejudicaram de uma forma geral sua realização.

Há no enredo uma mistura de referências que procura estabelecer metáforas da vida de seus personagens, sendo que algumas são interessantes, já outras bastante clichês.

Lora, vivida por Eliane Giardini, no auge de sua beleza, é uma mulher de meia-idade, rica e culta, que ama óperas, mas trabalha como apresentadora de um programa na rádio local dedicado e juntar pessoas solitárias que se correspondem por cartas ou telefone. A promessa é que a alma gêmea pode estar ali entre os pobres coitados que enchem o estúdio a cada edição do tal programa. Lora, que se diz a voz que guia os corações rumo às suas almas gêmeas acaba traída pelo próprio ofício quando se deixa seduzir pela beleza rude e a simplicidade cativante de Carlos Henrique (Marcos Palmeira). Carlos é na verdade um falcatrua problemático que acaba por enganar Lora conseguindo para si presentes, dinheiro, diversão e até uma casa nova para si e para a família, às custas da paixão desenfreada de uma “amiga” radialista.

Algumas coisas não combinam nesta trama melodramática engendrada por Amylton. A começar pela distancia que existe entre a vida luxuosa de Lora e sua profissão. O autor não nos dá as motivações que fazem Lora preferir o dia a dia de um estúdio de quinta categoria em meio a tipos estranhos , podendo ela estar vivendo na Europa ou fazendo algo mais próximo da realidade dela. Ela mesma parece deslocada no meio dos outros personagens que a cercam. Seria mais crível que Lora e Carlos se conhecessem num hospital psiquiátrico em que ela fosse a médica (já que quando Carlos começa a dar sinais de instabilidade emocional, é a própria Lora quem vai tentar salvá-lo).

Outro dado curioso é a mistura de trilhas sonoras. Ao misturar Wagner com Roberto Carlos, Amylton nos dá uma óbvia metáfora da distância cultural entre os dois personagens centrais: ela passa seu tempo apreciando óperas e ele inventa que gosta de uma das musicas bregas tão reprisadas em seu programa para usá-la como trilha de suas chantagens emocionais. A partir daí surge um novo dado que vai engrossar o caldo da falta de verossimilhança: Lora esquece suas óperas e, no auge da abstinência de seu rústico par, tortura suas memórias ouvindo Roberto Carlos para acalmar seu coração angustiado.  Algo pouco provável neste contexto, creio eu.

Já próximo do fim, vemos um outro momento curioso. O mesmo Carlos, que mal sabia falar, e que nos parece até analfabeto (por algumas cenas envolvendo cartas e mensagens escritas), trava com Lora um mono-diálogo extremamente poético e existencialista, com direito a catarse, encorpada por Richard Wagner ao fundo.

O elenco de apoio de O amor está no ar é um tanto quanto peculiar. Temos um Paulo Betty quase figurante, como operador de som na rádio, e uma Rosi Campos que é somente um pretexto para que as cenas de Lora no trabalho movam adiante. Por outro lado, no núcleo de empregados de Lora temos uma carismática domestica e o experiente Ênio Gonçalves, fazendo papel do taxista que dirige para Lora. Aliás, Ênio tem um papel curioso neste filme. Seu personagem é como um conselheiro que tudo sabe e tudo vê. Ele surge já na segunda metade do filme quando Lora descobre a mentira que Carlos é. Pacientemente Ênio a leva a lugares escuros e perigosos por onde ela terá de passar para saber quem é Carlos Henrique de verdade. Sempre advertindo sua patroa sobre o mal elemento com quem ela se metera, parece-nos que Ênio já conhece aquela estória de cor e salteado e de trás para diante. Até mesmo quando adverte Carlos a sair da casa da patroa antes que ele chame a policia, Ênio é a imagem da sabedoria calejada de alguém mais velho e menos provido de facilidades, mas que acumulou muito mais vivência. Um personagem interessante que aparece sempre que Carlos se foi da vida de Lora, e some sempre que os dois reatam. Talvez por isso mesmo, e para a infelicidade da trama, seu personagem não pôde ser melhor desenvolvido., cabendo para si o papel de consciência desta mulher solitária, que se esvai sempre que ela se entrega à cafajestagem do amante.

Muita atenção para um dialogo entre o motorista e Lora, num plano e contra plano feito a partir de um espelho (objeto muito presente no filme). Nesta cena, sempre que um fala, o outro aparece em contra plano refletido pelo espelho da sala, como se Amylton metaforizasse novamente (desta vez de forma mais criativa e sutil) sobre a perda da identidade pela renúncia de si em prol de outrem.

O amor está no ar não é um filme brilhante, mas é muito interessante na medida em que foi realizado por esforços independentes numa época em que o cinema brasileiro já era dado como morto e nem mesmo Carlota Joaquina havia ainda aparecido para salvar a pátria, para o bem ou para o mal.  Trata-se de um filme no mínimo corajoso, e se o espectador optar por fazer vistas grossas para as deficiências (que afinal existem até hoje em nosso cinema) do roteiro e do elenco, certamente terá boa diversão por uma hora e meia, tempo de projeção da fita.

Donny Correia, 1980, é paulista. Poeta e cineasta, publicou O eco do espelho (2005) e Balletmanco (2009). Teve seu curta-metragem Totem (2010) selecionado para a 34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. É graduado em Letras – tradutor e intérprete, e pós-graduando pelo Instituto de Artes da UNESP e pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Atualmente, é gerente geral da Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura.