Por Adilson Marcelino
Todo o pecado de uma Dama
No Brasil costuma-se confundir talk show com programa jornalístico e compositor de música popular com filósofo. No primeiro exemplo estão aí nomes como Jô Soares, e no segundo craques dos versos como Chico Buarque. Jô Soares não é jornalista, e aqui não vai nenhuma defesa de reserva de mercado, assim como Chico Buarque não é filósofo.
Mas temos tantos compositores geniais, de ontem e de hoje, donos de alguns versos parecem mesmo maiores que a vida. Letras de músicas como Último Desejo, de Noel Rosa, e As Rosas Não Falam, de Cartola, parecem mesmo frutos da mais alta filosofia.
Nesse time de craques, Caetano Veloso, que politicamente anda cada vez mais chato, é danado para compor esses versos derradeiros. Alguns exemplos? “De perto ninguém é normal”; “meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer”; “da feia fumaça que sobe apagando as estrelas”; “todo mundo quer saber com quem você se deita, nada pode prosperar”.
O que dizer então de “a gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo”? Nu, é mesmo genial! Além de fazer espelho com o Luis Buñuel de Esse Obscuro Objeto do Desejo – aliás, os títulos do gênio são um assombro, né?: O Anjo Exterminador; A Bela da Tarde; O Discreto Charme da Burguesia -, o verso cai como uma luva para a Solange de Sônia Braga em A Dama do Lotação.
Sim, estou falando de Pecado Original, a canção-tema que apresenta os letreiros de A Dama do Lotação (1978), de Neville D´Almeida, e de cara apresenta a trama em altíssimo estilo. Como se sabe, o filme é uma adaptação de umas das histórias de A Vida Como Ela É, de Nelson Rodrigues. E também como quase todo mundo já sabe, conta as andanças de Solange, que depois de uma noite de núpcias violenta com o maridão Nuno Leal Maia, que não aguentou mais segurar o tesão e praticamente estupra a esposa, passa a rejeitar o moço e sai, em vingança, todos os dias para trepar com quem aparece pela frente – sobretudo motoristas e passageiros, já que com seu vestido vermelho torna-se a tal Dama do Lotação do título.
A Dama do Lotação é ponto alto na carreira do interessante Neville D´Almeida, que quando começou a fazer remakes ou novas adaptações, como gosta de dizer – Matou a Família e Foi ao Cinema (1991) e Navalha na Carne (1997), sucumbiu feio. Dizem que vai refilmar sua Dama, e tremo só de pensar.
Pecado Original é daquelas músicas que grudam como chiclete, mas não como as de refrão fácil que a gente cantarola mesmo sem querer. O chiclete aqui é outro, é no imaginário, pois para quem é fã absoluto do filme como eu sou – muitos não gostam, como nosso redator Gabriel Carneiro – fica quase impossível ouvi-la sem já se lembrar do filme todo.
São muitos os versos e estrofes maravilhosos:
Todo mundo, todos os segundos do minuto/ Vivem a eternidade da maçã /
Tempo da serpente nossa irmã / Sonho de ter uma vida sã.
Todo beijo, todo medo / Todo corpo em movimento / Está cheio de inferno e céu /
Todo santo, todo canto /Todo pranto, todo manto /Está cheio de inferno e céu /
O que fazer com o que DEUS nos deu? /O que foi que nos aconteceu?.
Todo homem, todo lobisomem / Sabe a imensidão da fome / Que tem de viver /
Todo homem sabe que essa fome / É mesmo grande / Até maior que o medo de morrer /
Mas a gente nunca sabe mesmo / Que que quer uma mulher.
Também como se sabe, A Dama do Lotação arrastou uma multidão para os cinemas e confirmou Sônia Braga como um dos maiores sexy simbols que o Brasil já produziu.
E com certeza, Pecado Original foi a trilha perfeita.