Especial Rodolfo Arena
Macunaíma
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Brasil, 1969.
Por Maíra Bueno
Macunaíma (Grande Otelo e Paulo José) é o herói de nossa gente, e tem o título proclamado tanto na primeira linha do romance de Mário de Andrade como nas primeiras sequências do filme de Joaquim Pedro, também de Andrade. O livro tem o intrigante, porém elucidativo, subtítulo de “O herói sem nenhum caráter”, omitido na versão cinematográfica, embora amplamente registrado pela câmera de Andrade. Macunaíma é um evidente anti-herói, irônico retrato do brasileiro: preguiçoso, voluntarioso, mentiroso, mimado, malicioso. Mais sem-caráter do que exatamente um mau-caráter, Macunaíma é construído a partir de lendas de diversas regiões do Brasil. O personagem-título incorpora os mais díspares valores da cultura popular – e acaba permanecendo, portanto, na tênue linha entre ter e não ter uma identidade bem definida.
Nascido em uma tribo amazônica, onde passa sua infância, Macunaíma deixa a terra natal após a morte da mãe (também interpretada por Paulo José). Em companhia dos irmãos, Maanape (Rodolfo Arena) e Jiguê (Milton Gonçalves), o índio, agora branco, vai à cidade, onde se confunde o que é máquina e o que é gente – até concluir que, na cidade, os homens são máquinas e as máquinas fazem as vezes de homens. Apaixona-se por Ci (no livro, uma índia, e no filme uma guerrilheira, interpretada por Dina Sfat), que lhe deixa um amuleto, a pedra muiraquitã. Macunaíma perde a pedra, que passa a ficar em poder de Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piamã (Jardel Filho), e a busca pela pedra pode ser vista, então, como o próprio ideal do herói.
É impossível falar do filme Macunaíma sem considerar o livro (1928), escrito mais de 40 anos antes da filmagem. E a transposição de livro para filme – lembrando que o roteiro é do próprio diretor – é repleta de outras licenças poéticas além da omissão do subtítulo. Não é nosso interesse fazer um quadro comparativo livro-filme, mas um ponto em específico merece destaque. O deslocamento da índia Ci para a ambientação na cidade é especialmente emblemática. O filme, realizado já no pós AI-5, não teme transformar a índia em guerrilheira – aproximando ainda mais o relato de Mário de Andrade ao contexto social do Brasil do final da década de 1960. Ainda assim, mesmo em tempos de não-ditadura, e já próximos à comemoração dos 90 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, Macunaíma – filme e livro – parecem tão atemporais que o absurdo da narrativa, se cômico, é tão irônico e enraizado nos costumes brasileiros que chega a ser até incômodo para o espectador/ leitor mais atento.
Mário de Andrade subverte os valores regionalistas outrora exaltados por grandes nomes de nossa literatura, como José de Alencar, para questionar a figura não apenas do indígena como a figura do brasileiro como um povo uno, formado pela miscigenação étnica. Este é um dos pontos fundamentais para o entendimento da dinâmica de Macunaíma e seus irmãos. Se no livro Maanape é o irmão que continua negro (Macunaíma fica branco e Jiguê adquire “cor de bronze”), no filme ele é, desde o princípio, o irmão branco. Jiguê é e permanece negro, sendo a transformação de Macunaíma a única “radical”.
O filme de Joaquim Pedro de Andrade é bem resolvido na transposição, para o audiovisual, de uma peça literária de tanto valor e peculiaridades narrativas. Andrade abusa de recursos imagéticos para complementar o que é dito pelos personagens e pelo narrador, tornando Macunaíma um bom exemplo de aproveitamento das possibilidades audiovisuais. Embora trechos inteiros do livro possam ser facilmente reconhecidos no filme, outras passagens (como o hábito de Macunaíma de urinar na mãe, que dorme na rede abaixo da sua) se resolvem perfeitamente sem o uso da palavra. O absurdo narrado por Mário de Andrade é mostrado sem esforço por Joaquim Pedro – a utilização de cores berrantes, figurino extravagante e de músicas irônicas dão o tom certo ao filme. Em determinado momento, também a palavra escrita é utilizada como recurso: quando Macunaíma e Ci “brincam”, como a obra trata a relação sexual, aparece uma cartela que mostra a passagem do tempo: “várias vezes depois…”. É o Andrade-diretor percebendo as sutilezas narrativas e inúmeras possibilidades do cinema.
A escolha do elenco não poderia ser mais acertada. Grande Otelo é a estranha figura de Macunaíma criança e Paulo José, primeiramente cômico no papel da mãe de Macunaíma, incorpora com propriedade o herói já adulto. É um herói malandro, caricato, divertido. Também seus irmãos, ainda que não tenham passado pela transformação étnica que Macunaíma passou, adquirem novos tons quando os três passam a viajar juntos. Suas roupas são mais coloridas, e eles parecem ganhar mais autonomia na narrativa, estando Rodolfo Arena e Milton Gonçalves afinadíssimos. Os irmãos de Macunaíma são mais do que coadjuvantes – juntos formam a tríade étnica dos brasileiros. Além disso, são emblemáticos quanto a alguns dos preconceitos até hoje muito presentes no Brasil. Em memorável cena, Maanape declara que “preto quando corre é ladrão”, a que Jiguê responde que lugar de velho não é na rua, mas sim dentro de casa.
A ironia perpassa toda a obra, sendo um fundamental elemento, que chega a conduzir a narrativa. Nos créditos iniciais, ouve-se a música Desfile aos heróis do Brasil, de Heitor Villa-Lobos, e, como fundo, são mostradas imagens em verde e amarelo. A justaposição destes elementos gera a expectativa de um filme nacionalista, ao repetir, à exaustão, o refrão “Glória aos homens-heróis dessa pátria, a terra feliz do Cruzeiro do Sul”. A mesma música é repetida na última sequência do filme, no incorpóreo e antropofágico fim de Macunaíma – e aqui o conceito de herói já adquire outro sentido. Macunaíma é um herói sem nenhum caráter, exposto, à exaustão, em sua amoralidade e na confusão entre o que é realidade e o que é mítico. Um herói de nossa gente.
Maíra Bueno é jornalista e mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG.