Dossiê Ênio Gonçalves
Filme Demência
Direção: Carlos Reichenbach
Brasil, 1985
Por Marcelo Miranda
“O Ênio é um caso bem atípico. Ele é um dos poucos atores brasileiros que fez curso de realização cinematográfica no Centro Experimentale, em Roma. Eu costumo afirmar que ele é um ator europeu em atividade no Brasil. (…) Seria perfeito para Bresson, Ozu e Zurlini”.
Assim o diretor Carlos Reichenbach se refere a Ênio Gonçalves em depoimento reproduzido no livro O Cinema como Razão de Viver, de Marcelo Lyra. No mesmo trecho, Carlão diz ter escrito Filme Demência – seu 9° longa-metragem – pensando em Ênio no papel principal (e enfrentou dificuldades com a Embrafilme, que queria um ator da Globo). Olhando para a expressão de Ênio, sua concisão, a maneira introspectiva como encarna o personagem Fausto, há de se dar razão a Carlão: eis ali o profissional ideal no ambiente perfeito.
Filme Demência figura entre os trabalhos mais complexos da obra de Reichenbach. Seria algo como seu Um Corpo que Cai, para usarmos de exemplo o mais enigmático projeto do mestre Alfred Hitchcock. Em ambos, há um mistério seminal, que invade cada fotograma e insiste em se manter presente até o último instante, jamais sendo necessariamente resolvido. Na verdade, “mistério” seria aqui uma palavra injusta, por definir a omissão de algo que se tem noção do que aconteceu. Em Filme Demência (e em Um Corpo que Cai), o espectador mal sabe o que está sendo, de fato, apresentado na tela. Vemos figuras circulando por determinados espaços e nunca acessamos de verdade o que as leva a estarem ali. Registra-se a busca por algum tipo de respostas a perguntas as quais não nos foram feitas.
Por essas vias, o delírio e a dúvida são caminhos naturais a uma narrativa solta como a de Filme Demência. Fausto caminha pelas ruas da cidade, e seu destino é incerto – dele e de todos com quem esbarra. Raivoso, descontrolado, contemplativo, Fausto é a imagem autêntica de um homem à beira do abismo (ou já dentro do abismo). O fato de atrair uma figura mefistotélica soa natural dentro desse contexto.
Personagem tão cheio de nuances e, ao mesmo tempo, tão sem respostas precisava ser encarnado por um ator que soubesse transmitir, através de um olhar, essa carga brutal de ressentimento, resignação e dúvida. Ênio Gonçalves por vezes mal parece interpretar: ele literalmente vive o drama de Fausto, deixando-se impregnar pela falta de rumos e pela fúria ora contida, ora exacerbada. Reichenbach filma o ator com paixão fervorosa, em quadros belíssimos e travellings de forte expressividade – alguns, inclusive, culminando em planos frontais de Ênio, que precisa sempre estar no tom adequado para a emoção a ser transmitida por cada guinada do enredo.
O que encanta na presença magnética de Ênio Gonçalves em Filme Demência é essa entrega a um universo que certamente nem ele mesmo é capaz de dominar: a mente fervilhante de Reichenbach, que coloca o ator em situações inusitadas e extremas, exigindo que não apenas seu rosto, mas seu corpo sirva de propulsão a uma narrativa de estilhaços e fragmentos impossíveis de serem encaixados. Há algo do Walmor Chagas de São Paulo S.A (longa de Luís Sérgio Person, lançado em 1965 e referência assumida por Carlão em Filme Demência), naquele andar perdido pelas ruas de São Paulo e no encontro com figuras típicas do imaginário urbano mescladas a reminiscências e reflexões de si mesmo. Porém, se em Person o personagem demonstra um misto de passionalidade e ambição a qualquer custo, o Fausto criado por Reichenbach e Ênio Gonçalves é movido pela passividade em encontrar os próprios rumos, pelo enfado com o mundo, pelo desespero com a carne, pela descrença no outro, pelo poder sedutor do diabo e pela utopia de um paraíso.
Marcelo Miranda é jornalista em Belo Horizonte, repórter de cultura no diário “O Tempo” e colaborador da revista eletrônica Filmes Polvo (www.filmespolvo.com.br).