Dossiê Ênio Gonçalves
Quanto vale ou é por quilo?
Direção: Sérgio Bianchi
Brasil, 2005.
Por Sérgio Andrade
Começa com um escravo sendo capturado e levado para uma fazenda. Sua proprietária, uma escrava alforriada que acumulou recursos para ter seus próprios escravos, vai até a casa do senhor de terras para reclamar, chamando-o de branco ladrão. Ela é acusada e considerada culpada por perturbação da ordem.
Esse início se liga ao final, quando a negra grávida tenta convencer o matador de aluguel contratado para matá-la, a se unirem contra empresários corruptos.
Entre uma cena e outra, Sergio Bianchi investe com fúria contra programas televisivos de solidariedade, assistencialismo, ONGs, associações, voluntariado, empreendimentos comunitários, cotas para negros, cursos para captação de recursos para projetos de cunho social a fim de ter acesso aos fundos governamentais, lavagem de dinheiro, serviços terceirizados, desvio de recursos públicos, marketing cultural.
O filme se passa em duas épocas: no século XVIII, durante a escravidão, e nos tempos atuais. O roteiro é uma livre adaptação do conto Pai Contra Mãe, de Machado de Assis e das Crônicas Históricas do Rio Colonial, extraídas do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro por Nireu Cavalcanti.
Do conto de Machado vem a cena com os instrumentos de tortura, como a máscara de folha de flandres e o tronco, e a história de Candinho, que se torna caçador de escravos para poder sustentar a mulher Clara, a tia Mônica e o filho que está para nascer. No presente Candinho, para realizar os sonhos de consumo da esposa grávida, torna-se matador de aluguel.
Das “Crônicas…” vêm os casos que mostram como se davam as relações sociais entre patrões e escravos, sempre mediadas pelo dinheiro. O filme mostra como nossa herança escravocrata influencia ainda hoje as relações humanas, mas com meios bem mais sutis de dominação.
Os mesmos atores se revezam entre os diversos papéis das duas épocas. Por várias vezes agem como se estivessem participando de um comercial institucional, o que é reforçado pela voz de um narrador.
A trama principal, podemos dizer assim, trata da negra Arminda (mesmo nome da escrava fugitiva do conto), que se revolta ao saber que uma grande empresa, que abriu um centro de informática na periferia com o discurso da inclusão digital, superfaturou o orçamento na compra de equipamentos obsoletos, utilizando empresas fantasmas e caixa 2. Ela passa a pressionar o diretor da empresa para que compre computadores novos, caso contrário levará o caso à imprensa. Arminda funciona como uma reserva moral nesse mundo regido pelo dinheiro.
Outro personagem importante é o presidiário, que ao refletir sobre a escravidão chega à conclusão que hoje nós só temos a liberdade de consumir. Ao ser solto, ele planeja o seqüestro do dono da empresa denunciada por Arminda, usando o mesmo discurso empresarial dele ao falar do custo/benefício do seqüestro e sua importância na redistribuição de renda.
Um dos grandes trunfos do filme com certeza é seu elenco, com nomes como Ana Carbatti (Arminda), Claudia Mello (a tia Mônica), Herson Capri (o empresário seqüestrado), Caco Ciocler (diretor da empresa), Ana Lucia Torre (proprietária de uma ONG), Silvio Guindane (Candinho), Lázaro Ramos (o presidiário), Leona Cavalli (Clara), Myriam Pires, Lena Roque, Ariclê Perez e Odelair Rodrigues, entre os que ficam mais tempo em cena. E uma longa lista de atores famosos em rápidas participações: Joana Fomm, Marcélia Cartaxo, Zezé Motta, Antonio Abujamra, Caio Blat, José Rubens Chachá, Umberto Magnani, Danton Mello, Leonardo Medeiros, Emilio de Mello, Petrônio Gontijo, Ney Piacentini, Norival Rizzo, Antonio Petrin, Ângela Dip, Clara Carvalho.
Enio Gonçalves, homenageado desta edição, tem apenas uma cena, com poucas falas, quando os responsáveis pelo comercial da instituição que dirige, Sorriso de Criança, decidem que ao invés de crianças tristes e maltrapilhas, a melhor estratégia é mostrar crianças saudáveis e felizes.
É fácil acusar o diretor Bianchi de cinismo, oportunismo ou demagogia. Mais difícil é perceber como sua indignação com o estado das coisas se estrutura dentro do projeto mesmo, no qual ele próprio se expõe às críticas.