Doce Delírio
Direção: Manoel Paiva
Brasil, 1982.
Por Filipe Chamy
Não tem jeito. Contra certas práticas reiteradas, não bastam apenas mudanças superficiais para desenraizar um padrão de linguagem ou comportamento. Não adianta muito trocar um casaco enlameado por um casaco limpo por fora e coberto de lama por dentro: o cinema brasileiro de gênero (ou subgênero) perdia o pelo mas não perdia o vício, e adotava o sexo como refúgio mesmo quando aparentemente critica sua banalização, caso deste Doce delírio.
À primeira vista, há o consciente e até nobre desejo de valorizar as mulheres, essas criaturas tão ignobilmente tratadas em nossas fitas nacionais populares, desde sempre. Então é um passo para o êxito quando as vemos rebelarem-se ao jugo de seus maridos, amantes, namorados. Para quê? Os realizadores destes doces delírios afirmam sempre, categóricos: a mulher passa de um macho a outro, às vezes até sem escala.
O marido cansa-se da mulher, a esnoba e abandona. A mulher, fêmea do século XX, o que resolve? Ora, o simples e corriqueiro: chuta o balde. Passa a arranjar casinhos, a se julgar a máquina carnal, e nessa história sobra para nosso hoje septuagenário Ênio Gonçalves, justamente o primeiro alvo na nova vida “repaginada” de uma outrora altiva senhora, que depois de ser largada pelo esposo resolve ir à forra com o velho pretexto de se conhecer melhor, se afirmar, se libertar. Clássica história.
Ênio Gonçalves tem o papel inglório de se envolver com a mulher em seu apogeu de fragilidade, e toma na cabeça (literalmente), forçando a mulher e o filme a mudarem de tom. O que nenhum deles faz corretamente, podemos dizer.
Com uma mescla estranhamente arranjada — e bastante ineficaz —, o filme samba entre categorias diferentes, como a pornochanchada, com Claudia Alencar sendo a “modelo de calcinha” da vez, e o drama romântico, pontuado por cenas oníricas, diálogos romanescos e música que mais se aproxima de um ideal burlesco que de qualquer intenção sentimental.
Esforços abortados também no quesito de fazer um paralelo com rimas dentro do próprio filme. A citada Claudia Alencar, por exemplo, é a “juventude inconformada” que já nem sabe mais com quem deita e não se importa mais com qualquer discrição em suas relações. Se ela não se importa, por que deveríamos nos importar? O ponto é outro.
Sente-se que Manoel Paiva, o diretor deste Doce delírio, aponta um pouco o dedo ao espectador, como quem diz: “você é parte dessa geração desequilibrada, esses problemas também são seus e você sabe que nada disso tem solução, não seja hipócrita de cobrá-la”; mas isso não só não reduz a fragilidade narrativa dessa manifestação pueril de panfletarismo (?), como reforça o bizarro desencontro entre os planos (cinematográficos) burocráticos e os planos (morais) inconsistentes. Há em todo o filme um fantasma de denúncia mais cômica que funcional, mas também não é nada engraçado ou digno de observação ou comentário. É puramente um “achismo”, a descrição de uma situação, feita de modo deveras relaxado e amparando-se em arquétipos furados de há muito, como o marido carrasco querendo internar a mulher num sanatório, ela, que havia se perturbado precisamente com esse consorte tão omisso, frio, que não se importa mais com ela do que com o jornal lido toda manhã no café da manhã.
É difícil, portanto, naturalizar essas personalidades tão ocas, tão despidas de vida (e de roupas, evidentemente), torná-las ao espectador mais que simples marionetes encenando um teatrinho bobo, maniqueísta, despótico mesmo em sua uniformidade de interpretação. Doce delírio é como uma relação da sua considerada geração perdida: esquecível, só.