Especial Rodolfo Arena
Crioulo Doido
Direção: Carlos Alberto Prates Correia
Brasil, 1971.
Por Filipe Chamy
Há tempos de invenção e há tempos de tendência.
Crioulo doido não chega exatamente ao nível de experimentalismo fílmico de um Bang Bang, mas digamos que seu samba se aproxima mais da efetiva loucura que de um macaquismo exacerbado no sentido de “notem-me, apenas porque estou aqui”.
Se divago, é porque o filme de Carlos Alberto Prates Correia permite essa interpretação. Não apenas pelo caráter insólito da narrativa, mas pela maneira como ela é filmada, encenada. No início é possível ver um filme mudo, que se alterna para um drama de costumes, uma comédia sobre o malandro, uma fita conjugal, uma ficção científica do terceiro mundo.
Não se pode dizer muita coisa, portanto voltamos ao cinema mudo. E sem cor. Com certas brincadeiras com o sépia. Isso vem a mostrar a brincadeira da coisa, a desnaturação dos truques do cinema, a explicitação da metalinguagem. Até entretítulos (os letreiros dos filmes sem som) dão seu ar da graça. Crioulo doido adora mostrar esse conhecimento das regras do cinema, ao mesmo tempo que não pretende seguir nenhuma.
Personagens que só aparecem uma vez, para servir de escada a determinado efeito dramático ou cômico; discursos cínicos e proclamações histéricas — até as personagens gritam e pedem por silêncio, outro paradoxo — temperadas com a serenidade da despretensão; a subtrama apocalíptica que em verdade é uma velada crônica social; tudo isso acaba aumentando a confusão de Crioulo doido, despersonalizando o cinema de Prates Correia e deixando no espectador aquela famosa questão batendo insistente na cabeça: “sobre que diabos é esse filme?”.
Os filmes não precisam ser sobre nada. Crioulo doido é antes uma fábula que uma notícia, e por isso seu andamento se sujeita ao respeito das regras da narrativa caótica que apresenta em seus minutos de projeção. É um filme onde a câmera se posiciona como personagem, mas uma personagem que não vem para esclarecer ou provar uma tese.
Deve-se entender que o desejo dos experimentalistas não é convencer ou provocar, necessariamente, mas testar diferentes maneiras de fazer o registro da arte. Aí temos filmes como este, perturbando o marasmo das pornochanchadas e dos “filmes de realidade”; porque a realidade de Crioulo doido não é a da exposição, mas da insinuação. Não é só ver, mas perceber.
Que ninguém se engane achando que este é um grande trabalho. Não é desprezível, evidentemente, mas não é esse o ponto. O capital é perceber como o cineasta arranja novas ferramentas para discutir, à sua maneira, esses temas e temáticas fartamente utilizados por filmes “normais”, mas se utilizando de uma maneira heterodoxa.
Talvez a maneira mais eficaz de ilustrar isso esteja na cena onde Rodolfo Arena é interpelado pela bizarra figura-título: a calmaria do cotidiano brejeiro — representada pelo célebre ator de cara pouco amigável e bigodes de imponência — cortada pelo oportunismo arrivista, que se volta contra o próprio inimigo e o ataca com suas próprias armas, neutralizando-o. Parece um princípio complicado, mas não é. Rodolfo Arena vira-se para o crioulo doido e o desarma, o faz voltar atrás, ele gagueja e reconsidera. No fundo, é o que o filme faz a seu público, projetando-o na culpa de querer explicar as coisas, ligar os nós deixados pelo caminho (nós que não existem, talvez).
Filmes não precisam de sentidos extrínsecos, e em consequência a isso precisamos de um Crioulo doido vez por outra para nos lembrar que confundir os sentidos (e mesmo não ter sentido algum) faz todo o sentido do mundo.