Por Andrea Ormond
Lembro que em Jardim de Alah (1989), dirigido por David Neves, há uma cena memorável. O convescote de cocotas, na praça que dá nome ao filme, cheira cocaína desconfiando que se trate de sal de frutas. Pode ser, pode não ser. A mais careta protesta: cafungar em via pública, no meio da zona sul do Rio, vai causar sujeira. O impulso, no entanto, é incontrolável. E como ninguém se importa, afiam o nariz, seguem em frente.
Temos nessa pequena vinheta um oceano de reflexões a respeito do cinema brasileiro atual. Muitas vezes chegamos à conclusão de que não se pode mais dormir sem escovar os dentes. Ou pular em um pé só. Ou quebrar a cara, por esporte. Os hereges sentem a punição (policial, médica, divina), a provar que tudo faz mal à saúde. Cafajestices, sexo sem camisinha, boca suja de palavrões assumiram teor exótico.
Repararam que ninguém mais “experimenta” nos filmes nacionais? A aventura existencial, o barato do prazer, morreu. É tudo pelo social, pela análise do sujeito como agente das causas. Já as causas aparecem como agentes transformadoras do sujeito: a ONG na periferia paulistana, a favela no Rio de Janeiro, o drama ligeiro dos grotões além-túmulo.
O cinema brasileiro existe, tropeçamos nele, falamos dele, co-habita entre nós. Mas onde está o cinema brasileiro? Aquele de Jardim de Alah, em que a patrícia se oferece ao traficante, buscando adrenalina. Em que o pai da patrícia leva a amante morena, peitinhos em flor, para o motel Scort e arranca impressões sobre o sócio gordo.
Vejam que um outro complicador entra na equação. David Neves não era bem um modelo de “cineasta popular”. Era cinemanovista, o Davizinho da Líder, a entidade humana que uniu montes de gentes em torno de si, cheio de afeto. Um guru do movimento que mais tarde se tornou autofágico. Ou seja, quem acha que cinema brasileiro é um esquema fácil, pede para sair.
Digo isso, como sempre, sem qualquer nostalgia. É no repisar da história, na lembrança do ego esquecido, que o paciente se levanta do divã e caminha para a cura. Há algo de errado na cabeça do cinema brasileiro desde que ele rompeu com sua tradição e quis ser outro. Pretendeu ser o sujeito comportado, buscando a aprovação alheia.
Antes que alguém venha citar Bruna Surfistinha como a epítome da transgressão no século XXI, devemos nos questionar o quão brocha é um mundo que elege a história de uma prostituta, que se redimiu, os píncaros da sacanagem. Bruna quer “se livrar das drogas”, arranjar “um amor de verdade”, bem distante das garotas de David, que queriam diversão e cara de pau.
O mais curioso é que as cocotas continuam exatamente ali, sentadas naquela praça, repetindo as loucurinhas que suas mães faziam em 89. Assim como prostitutas em busca de redenção burguesa também já existiam há 22 anos. O que mudou foi a vontade de voltarmos a câmera para umas ou para outras. Aquilo que achamos que vale a pena contar e o que não vale.
O cinema brasileiro encaretou e elege caretas como seu tema monocórdio. Salvam-se exceções mínimas: o ainda não lançado Na Carne e Na Alma, de Alberto Salvá, é um exemplo. Aliás, aposto em certos realizadores “da antiga” para mudarem este cenário. Não se contaminaram por baboseiras como “cinema para o público” ou “padrão de qualidade internacional”.
Fazem arte como deve ser. Para si mesmos, depois para um seleto grupo de admiradores e, por fim, para a massa. Até filmes comerciais deveriam seguir esse singelo mote. Aproveito para abrir um parênteses: quem diminui a pornochanchada ou a Boca do Lixo e o Beco da Fome diante de um “cinema engagé” é burro. Não enxerga o quanto aquelas produções diziam sobre seus autores, suas idéias e o meio em que viviam.
Sempre procuro bater na questão do moralismo – tosco ou sofisticado, escandaloso ou oculto nas entrelinhas – pois me parece, de todas, a neurose mais antinatural que despontou no ideário fílmico brasileiro dos últimos vinte anos. Serve de diagnóstico para uma tendência da sociedade como um todo que, com a desculpa de “civilizar-se”, compra imensos pacotes de puritanismo anglo-saxão. Histerias protestantes, alienígenas no bacanal macumbeiro da América católica. Modismos de linguagem, importados dos moderninhos macambúzios de Nova York.
O Brasil sempre foi selvagem, exuberante e livre. Perceber nas telas esta liberdade, esta alegria inconsequente, nos reafirmaria enquanto povo. Infelizmente, passamos a encarar o país como embaraço, como problema, quando talvez ele seja solução. Talvez os protagonistas queiram apenas fugir. Fazer a cabeça em paz, sem o bando de vigilantes a gritarem, em pleno Jardim de Alah, que na nova ordem mundial é proibido permitir.