O Bandido da Luz Vermelha

Por Filipe Chamy

 

Provavelmente um dos filmes mais “híbridos” da cinematografia brasileira, O bandido da luz vermelha tem uma infinidade de caminhos interpretativos e leituras. 

O filme policial é a primeira e mais imediata delas, pois todos conhecem ou já ouviram falar do tal personagem-título, figura misteriosa e bizarra que fazia de estupros e roubos a ordem do dia. 

Mas não é uma crônica policial rotineira que Rogério Sganzerla apresenta. Seu bandido (Paulo Villaça) possui heroísmo e covardia, existencialismo e futilidade, salvação e ocaso, tudo misturado em uma pessoa que não parece de carne e osso mas é mais verdadeira que se existisse pessoalmente. Esse paradoxo é devido ao aspecto verídico de sua jornada de autodestruição, culminante numa espécie de apologia ao Pierrot le fou godardiano, o que significa dizer que, fundamentalmente, o bandido da luz vermelha é uma criatura cinematográfica. 

Então não é de se espantar a poesia com que se movimenta, a aparente falta de lógica de suas ações e sua filosofia de vida, derramada em seus atos e também em sua narração em off: “Quem estiver de sapato não sobra, não sobra”. É um hino de exclusão, e Sganzerla não é hipócrita por entendê-lo sem justificá-lo. 

No final das contas, a jornada do senhor “Luz” é marcada por qualquer falta de expectativa ou amarra com alguma realidade mais factível: ele se envolve com mulheres, pratica crimes e foge do cerco policial, mas tudo numa epopeia narrada meio que ao sabor do acaso, um “causo”, uma crônica de um tempo que talvez nunca existiu realmente. 

O mesmo se dá com as pessoas com que se depara em seu caminho: da delicada amoralidade da vamp urbana encarnada por Helena Ignez à fantasmagórica desorientação do chefe de polícia, passando evidentemente pela grotesca deformação da demagogia perene da política (na figura de um líder político tão escrachado quanto cada vez mais real), o filme é expressionista ao retratar esses estados de espírito e caracteres insólitos como entes materializados, indivíduos, pessoas. 

Pode-se dizer que o filme não propõe uma estética, mas uma ética; um cinema sem algemas, livre e libertário, sedento de expor suas idiossincrasias por meio de recursos do cinema e da imagem, democratizar o plano e mostrar nele as incertezas, as vias do erro, os dissabores da falha de comunicação e a beleza da narrativa. Esse “terceiro olho”, que marca o espectador enquanto vigilante do filme, permeia toda a estrutura do filme de Sganzerla, considerando que há então várias óticas, pequenos fios condutivos de diferentes resoluções: a voz do rádio que nega a imagem que confirma o erro que dá no plano que o corte desmonta. É brincar com o que se tem, um jogo de esconder/mostrar que em essência é o próprio cinema, divertir-se com a linguagem, com as ferramentas de expressão. 

A imprensa, portanto, é um elemento chave do filme. Porque O bandido da luz vermelha é uma colcha de retalhos de lendas e fragmentos de notícias, percepções, distorções sociais. Desde os créditos é possível vislumbrar essa abordagem de aproximação, não negar ao espectador a possibilidade de que ele se engane, de que as informações apresentadas sejam falsas, de que o filme seja apenas um reflexo de uma ideia. 

Não quer dizer que seja mal ajambrado, tosco, mal resolvido ou inepto. Não se pode falar qualquer coisa assim. O que se pode afirmar, com certa contenção, é que Sganzerla não se esgota no filme. O diretor não se pretende definitivo. É nobre pensar que o cineasta dá ao público a chance de discordar dele, de cogitar algo distinto, de afinal duvidar: “mas o que é isso que estou vendo?”. Não é ofensivo confessar-se pasmado. É preciso perceber a inquietude do filme ao não se prender a gêneros e convenções, o que afinal é isto? É um faroeste sem cavalo, musical sem vedete, telejornal sem âncora? Como praticamente tudo em nosso cotidiano, a rotulação é inútil e enfraquece um pouco a constatação. 

Incidentalmente, esbarra-se na cinebiografia. Que é outra falsa aparência, um disfarce para Sganzerla operar. O bandido da fita nada tem do real e nunca é realmente sentido um esforço para “historificá-lo”. John Ford já havia ensinado que se a lenda é maior que o fato, imprima-se a lenda. Então desde o início presenciamos o desencontro de informações, as vozes mecânicas das rádios se chocando nas frases, complementando ou negando outras vozes, todos esses truques de imprensa que Sganzerla explora com força e ironia, dessacralizando o componente sério, austero e inquestionável que a mídia imagina ter. Também por esse lado O bandido é inteligente, pois sabe que a paródia não se limita à caricatura. 

A tensão faz pensar em certos noirs de baixo orçamento, pela rapidez da solução dos conflitos e interposição de novas áreas dramáticas, mas o tom de todo o filme é não ter tom algum. O erotismo é ridículo, a ação é engraçada, a comédia é patética, o perigo é risível. Não é esculacho ou incompetência, é Sganzerla utilizando o cinema sem comodismo, jogando com as percepções de seu espectador, troçando dos lugares-comuns que ele mesmo fabrica, das fraquezas de suas personagens ou mesmo de sua necessidade de servir-se delas. Elas se tornam amorfas, porque Sganzerla as molda conforme suas conveniências. Assim todo o filme: ele tem planos aproximados, closes, tomadas aéreas e travellings até certo ponto incompreensíveis, pois codificados e não explicados — assim todo o seu cinema, aliás. Mas isso não é uma maldade ou uma estupidez: é simplesmente uma maneira de dizer: “você não precisa saber mais do que o que está na tela”. É um erro que até hoje se comete, quando se nega essa simplicidade em torno de uma “sofisticação” que empobrece a própria obra ao ampará-la em demasiados pontos “fáceis”, de identificação, de referência, que quebram a lógica diegética da trama ao forçar sua decodificação em elementos extradiegéticos, fora do filme. Recentemente pudemos observar isso com clareza no Meia-noite em Paris de Woody Allen, que encharca o filme de citações que só são assimiladas por quem tem a tal famigerada “bagagem cultural”. Sganzerla não cai nesse erro porque não tece julgamentos, apenas reitera: quem está de sapato não vai sobrar. 

Um grande diretor, Sganzerla fez aqui sem dúvidas um grande filme, sem medo do choque, do novo, do inesperado e de todo o estado confuso que assola seu bandido-arquétipo, arquétipo de todas as suas obsessões morais e narrativas, espécie de ímã que atrai comportamentos que ora o corroboram ora o rejeitam. Não é importante frisar um ponto ou provar uma tese, quem tenta fazer isso esbarrará nas palavras de Sganzerla em um famoso depoimento: “quem não entendeu agora, não vai entender nunca”. Tampouco importa analisar racionalmente a disposição de elementos que Sganzerla filma febrilmente, quase como uma síncope, uma alucinação em forma de filme (porque afinal é um cinema experimental), um último disparo da arma do bandido. 

O que interessa talvez é usar o filme de exemplo, sem procurar imitá-lo. A arrogância que se dissolve no medo — as vítimas têm medo do bandido, o bandido tem medo de si mesmo e do que essa confrontação poderia acarretar a ele —, o filme de gênero que não tem gênero algum, o cinema estudado mas não acadêmico, uma nova forma de mostrar, contar, intuir e demonstrar, como se dessa forma pudesse se extinguir a hierarquia de “formas e conteúdos” que Sganzerla dá sua contribuição para destruir. O bandido da luz vermelha não é necessariamente um libelo ou panfleto, mas vem a propósito.