Entrevista Especial: Hernani Heffner – Primeira Parte – Parte 3

Entrevista Especial: Hernani Heffner – Primeira Parte 
Parte 3 – O cinema; os cinemas de rua; a universidade

 

Por Luiz Alberto Benevides
Fotos: William Condé – Transcrição: Tiago Rosas e Adriana Clen

Z: E quando é que o interesse pelo cinema começa a se capilarizar? 

Hernani: Não, eu ia ao cinema para me divertir. Aos 13 anos, eu já ganhava dinheiro suficiente com corrida de cavalo. Eu jogava desde os 7 anos e meu pai jogava em corrida de cavalo e jogo do bicho. E eu gostava muito, eu só jogava corrida de cavalo porque jogo do bicho achava chato. Eu ficava ali sentado na calçada, perto de casa, ouvindo as corridas sábado e domingo. Não sei se você já ouviu uma corrida transmitida pelo rádio, aquilo tem um sabor todo particular e curiosamente o locutor mais popular da época tinha o mesmo nome que eu, que era o Ernani Pires Ferreira. 

Z: A voz mais rápida do turfe… 

Hernani: É, depois ele ganhou alguns concursos de velocidade, mas de fato é uma coisa necessária. Por exemplo, um páreo em mil metros na grama às vezes dura menos de um minuto. O cavalo é um bicho tão veloz, que em menos de um minuto ele percorreu os mil metros, então isso requer toda uma técnica pra conseguir extrair alguma lógica da corrida. E eu acompanhava muito, passei a jogar com 8 anos e passei a ganhar com 9, o que me deu algum capital. Meu pai estabeleceu uma regra, eu só podia jogar a aposta mínima. Então, se a aposta mínima era 1 cruzeiro eu só podia jogar 1 cruzeiro, não podia jogar 9, 10 cruzeiros. Isso a partir dos 8 anos. Então a partir dos 9 anos eu já entendia a mecânica da coisa e comecei a ganhar. Aí eu pegava o dinheiro e comprava quadrinhos. Na infância eu lia muito quadrinho, ia na banca, comprava todos… e ali por volta dos 13 anos eu comecei a ir ao cinema porque tinha dinheiro pra passagem e pro cinema. E como eu morava no Estácio, eu basicamente fui na região da Praça Saens Peña, que começava a rigor aqui na rua Haddock Lobo, na Tijuca… 

Z: Comodoro? 

Hernani: Era, o Comodoro que foi o cinema da minha adolescência. Foi o cinema que eu mais fui, e o que eu mais gostava, apesar de ser um cinema pequeno e sem nada de especial do ponto de vista de decoração… mas era o cinema que tinha programação muito boa, fazia par junto com o Veneza em Botafogo e todos os lançamentos “de arte” do Severiano Ribeiro iam pro Veneza e pro Comodoro, então eu vi filmes muito bacanas no Comodoro e porque era o cinema mais próximo que tinha lá de casa. 

Z: Que filmes você viu no Comodoro? 

Hernani: Vi por exemplo… Annie Hall. Foi um dos primeiros filmes que vi na minha vida, e vi no Comodoro; Woody Allen era considerado sofisticado nos anos 70, e aí “taca lá no Veneza e no Comodoro porque ele não vai dar dinheiro”, né? Então eu via filmes como Annie Hall, Esposamante do Marco Vicario, via às vezes também blockbusters como Aeroporto e coisas do gênero, mas a programação era relativamente sofisticada para a época, e todos os ganhadores de Oscar iam pro Veneza e Comodoro. 

Z: E você tinha preferência pelo Comodoro ou você ia em todos os cinemas da região da Praça? 

Hernani: Não, eu tinha preferência pelo Comodoro por alguns aspectos: eu estudava na Mariz e Barros e no caminho de casa eu passava em frente ao Comodoro, e eu já ficava sabendo o que estava passando e às vezes ia com os colegas. Pra ir na Praça em si era mais complicado. Às vezes não tinha dinheiro pro ônibus e ia a pé, e era um estirão grande ir a pé, mas fui muitas vezes a pé pra Praça. Eu na verdade fui a todos os cinemas entre o Comodoro até o último lá da Praça, o Coper Tijuca, que durou pouco tempo. Na Praça, os cinemas em que eu mais ia eram o América, que hoje é uma farmácia [Drogaria Venâncio], o Rio, que não existe mais, virou uma agência bancária, e o Studio Tijuca, porque passava reprises; passavam às vezes filmes muito antigos no Studio Tijuca e eu via esses filmes, por exemplo, eu vi E o Vento Levou, cópia 70 mm; isso era muito maluco, mas eu cheguei a pegar essas coisas ali, então eu via coisas dos anos 50 e 60 ali naquele cinema. 

Z: Isso na adolescência? 

Hernani: Tudo isso eu vi ali nos anos 70. Por exemplo, eu vi Ben Hur no Rio em 77, vi E o Vento Levou no Studio Tijuca em 78, coisas desse gênero… e os filmes correntes, né? Quando era algo um pouquinho mais sofisticado você tinha que ir pra Zona Sul, Nashville eu vi no Cinema 2, lá no final de Copacabana, em 76. Eu já vi ele quase saindo do circuito. Naquela época você tinha isso, ele era lançado no circuito, depois passava pro circuito de segunda linha, eventualmente ia pra salas isoladas e às vezes ia compor programa, passavam dois filmes ao mesmo tempo nos “poeirinhas” da cidade. Eu vi muito filme em “poeira” no subúrbio. Ali por volta de 76/77 eu resolvi conhecer todas as salas da cidade. 

Z: Então com 14,15 anos você já estava com uma coisa de conhecer todas as salas de cinema? 

Hernani: Em 78 já conhecia todas, porque tinha vezes que eu via 10, 12 filmes em uma semana. Eu pegava o trem, em geral, porque a maior parte dos cinemas ficavam ali próximos às estações da Central, alguns poucos ali na Leopoldina… os da Leopoldina foram os cinemas que acabaram primeiro, os da Central sobreviveram mais tempo. Mas eu ia. Aí, por exemplo, eu vi Operação Dragão + Taxi Driver na mesma sessão em Bangu, um cinema chamado Matilde. Você tinha muito isso. O “poeirinha” que eu mais frequentei era o Riachuelo, que era o antigo cinema Modelo, ali na 24 de Maio, que era um cinema tal e qual, acho praticamente desde o final dos anos 30, cadeira de madeira, não tinha ar condicionado, era ventilador… nos dias muito quentes abriam as portas laterais do cinema (risos), era muito engraçado. E era um cinema basicamente freqüentado por crianças, apesar das “censuras 18 anos” das pornochanchadas, eu vi várias, no subúrbio não tinha essa proibição. Você ia ao cinema ver qualquer coisa, nenhum dono de cinema implicava com a sua idade, você assistia o que você quisesse. E também não tinha nada de mais. Os filmes de sexo explícito só chegaram ao Brasil em 1980, antes eles eram proibidos. Ai eu fui muito ao Riachuelo ver Ana, a Libertina, do Salvá, e Os Últimos Dias de Pompéia, versão italiana de 59. O programa adulto se formava da forma mais estapafúrdia… pra mim era tudo diversão! 

Z: E você ia sempre com uma galera? 

Hernani: Eu rapidamente percebi que ir com galera é não ver o filme (risos). Porque a galera fica zoando o tempo todo, né? No América a criançada ia para o balcão para ficar tacando coisa na platéia de baixo e tal, e em geral a gente escolhia filme da Disney, sei lá, talvez por um sexto sentido a gente soubesse que ia ser ruim (risos). Pra ficar tacando coisas na platéia de baixo, ficar criando tumulto, aquela zoeira, mas rapidamente eu percebi que se eu quisesse ver um filme eu teria que ir sozinho. A grande maioria dos filmes eu já ia ver sozinho, e você percebe muito rápido que… se você quer ver mesmo um filme, não vá em sessão cheia: as pessoas são muito inquietas no cinema, levantam, sentam, comem pipoca no cinema, esse hábito é muito antigo; eu sempre detestei as pessoas comendo pipoca do meu lado porque perturba ver o filme. Então eu percebi, em vez de ir na primeira semana, que é a de lançamento, eu ia na segunda semana pra ver o filme e estava mais vazio… como eu era moleque, eu podia ir na sessão de 14h, 16h, que estava mais vazio porque em geral as pessoas iam na sessão noturna… eu ia durante a semana, porque era mais barato, eu raramente ia ao cinema no final de semana, porque era mais caro… 

Z: Então você ficou um ano só indo com a turma, ou nem isso? 

Hernani: Eu ia de forma esporádica, não era sistemático. Se juntava um grupo, “vamo!”. Mas muito pouco, porque eu percebi logo que eu tinha interesse pelos filmes e não tinha tanto interesse pela zorra que se formava. Então, a partir de um certo momento, eu fui sozinho e por exemplo, essa coisa de conhecer o circuito carioca, eu fui sozinho: eu mesmo pegava o trem e ia lá pros subúrbios, e ia no cinema sozinho… 

Z: Isso com quantos anos? 

Hernani: Ali com 14 anos. E embora não soubesse, foi importante conhecer porque tudo aquilo ia acabar em menos de dez anos, todos os cinemas de subúrbio fecharam até 85. Por volta de 85 já havia muito poucos, então eu conheci a grande maioria deles já muito detonados, decaídos, falta de conservação, às vezes a projeção muito ruim… mas eu conheci, né? Sei exatamente o que era, como era, qual era a freqüência, sei exatamente o quê que era o cinema ser de fato um lazer popular. De você às vezes sair da sua casa e três metros adiante estar dentro do cinema e pronto; isso tudo acabou quando chegou o shopping, a coisa mudou e o circuito cinematográfico se transformou por completo. Só que nessa época eu já tava na faculdade, já era uma outra história e esta memória foi uma memória de fim deste momento, que eu peguei meio que por acaso, porque nasci ali naquela época. 

Z: Você testemunhou o olho do furacão ali, né? 

Hernani: É, eu peguei toda a transformação do circuito cinematográfico, daquele circuito antigo da era de ouro, que vinha lá dos anos 20 e 30, então eu conheci as grandes salas, com exceção do Olinda, que foi derrubado quando eu tinha onze anos; esse eu não conheci, foi o único grande cinema do Rio de Janeiro que eu não conheci, o resto eu conheci todos. 

Z: Rian, Caruso, todos existiam? 

Hernani: Todos ainda existiam, eles foram fechando ali entre 80 e 85. Então eu peguei tudo isso e entendi o que era a sala ter 2000 lugares, 2500 lugares, 3000 lugares. Eu ia muito ao Rex ali na Álvaro Alvim, na Cinelândia, que era um cinema de 3000 lugares, e três balcões, eu cheguei a ver filme do terceiro balcão. 

Z: Do lado do Teatro Rival? 

Hernani: É. Era um cinema colossal, e eu via kung fu ali, todos os filmes de Hong Kong ali dos anos 70 passaram no Brasil e eu vi todos no Rex. 

Z: Eles passavam dublados em inglês, ou em chinês mesmo? 

Hernani: Dependia, tinha filme que vinha em inglês, outros em mandarim, cantonês… aí dependia muito do distribuidor, e de onde vinha a cópia… de qualquer maneira você não prestava muita atenção na língua, eu não sabia inglês nem nada… tinha a legenda, e nesse tipo de filme nem legenda, porque na hora da luta não tem conversa; e eram umas sessões animadíssimas… a plateia vibrava, “bate nele!” e tal, mas era um cinema gigantesco. Então eu tinha ideia do que eram essas salas, e as salas de subúrbio, que eram às vezes muito precárias. Eu lembro muito do Pilar, ali na João Ribeiro, que era um cinema que parecia que ia desabar em cima de você, tava tão arrebentado, mas tão arrebentado… e era muito pequenininho, você ouvia todo o barulho da cabine e do projetor, e nossa, parecia rescaldo da Segunda Guerra Mundial. A primeira vez que eu vi Dona Flor eu vi ali. Era um filme proibido para crianças e tal, mas ali você entrava, via e não havia o menor problema, mas a projeção era muito ruim e o som era péssimo. Essa reclamação de que o som do filme brasileiro era ruim, depois se descobriu que não era o filme, era a projeção que era ruim, de fato existia, você compreendia mal o filme, eu que via muitos filmes brasileiros naquele momento por conta da falta de manutenção dos projetores e da própria sala, e não das cópias. 

Z: Então os problemas eram basicamente dos projetores e não das cópias? 

Hernani: Não, os filmes não tinham problemas de som. As salas tinham problema de som, de manutenção do sistema de som, das caixas, da célula fotoelétrica de leitura do som e etc, e isso prejudicava enormemente a projeção. E o público não sabia nada… achava que o filme que era ruim. Porque no filme americano em geral não se presta atenção no som: você lê a legenda. E no filme brasileiro você tem que entender o que o sujeito tá falando senão você não compreende a história. Então você tinha essas coisas, e logo logo você teve as salas de shopping, a primeira foi do Barrashopping que eu também peguei mas depois desapareceu rápido, eram 3 salas, depois de 3 viraram 5 e depois acabou. 

Z: E o Art Barrashopping? 

Hernani: O Art já era outro; o Barra 1, 2 e 3 eram embaixo, pra fora do shopping; o Art era lá dentro e já foi na primeira extensão que o Barrashopping construiu. Nenhum dos dois existe mais. 

Z: Pensando assim mais na parte afetiva, na sua relação e sua ligação com o cinema… você creditaria algum cineasta específico, ou vários? 

Hernani: Você gosta de cinema porque você vai ao cinema todo dia (risos). Isso é uma pergunta típica para quem faz cinema como artista. Não, a certa altura eu me vi gostando de cinema e assim “ah, por que foi algum cineasta que me motivou”? Tanto que eu tenho uma coisa engraçada, quer dizer, eu tendo a lidar com qualquer tipo de filme e apresentar qualquer tipo de filme. Eu não tendo a ter aquela coisa de só os melhores, só os mais importantes, só os decisivos. Porque eu acredito que as pessoas se divirtam com qualquer tipo de filme, eu me divirto com qualquer tipo de filme: ligou a televisão, ligou o projetor, eu vejo qualquer coisa, pode ser horrível, mas eu vejo e me divirto. Então não houve um cineasta ou um filme ou um cinema mesmo. O que me formou foi o cinema ali no final dos anos 60 e da década de 70. 

Z: Foi uma questão de contemporaneidade? 

Hernani: É, eu era adolescente naquele momento, assisti aquilo tudo e gostei daquela maluquice  e aquilo me atraiu. Inclusive aquele foi o último momento de um cinema com características populares, depois o cinema se tornou numa expressão de classe média, com outro universo, com uma percepção muito diferente da que eu tive na adolescência, mas continuo gostando até hoje. 

Z: E como é que entrou a Uff nessa história? 

Hernani: A Uff entrou, quando completei o antigo segundo grau em 79 e tinha que fazer vestibular. Eu gostava de cinema, mas não tinha nenhuma vontade de fazer isso, e eu ia fazer vestibular de economia. Achava interessante. Era Cesgranrio, você tinha aquele caderno, peguei e fui ler por curiosidade, ai vi que quando chegou em comunicação social, tinha habilitação em cinema. Aí eu pensei ”vou fazer pra isso”. 

Z: 79? 

Hernani: O vestibular foi em 1980. Ai  pensei “Ah, tem cinema? Então não vou fazer economia não, vou fazer cinema, negócio divertido”. Ai fiz e acabei entrando pra Uff. No meio do curso já fiquei muito chateado. Naquela época tinha o ciclo básico e o ciclo profissional; e o curso da Uff era muito precário, naquela época tinha uma dificuldade de professor muito grande, várias matérias não tinham professor. E aí eu fui me chateando, tranquei o curso e fui fazer letras na Uerj. Fiz 3 anos de Uerj mas também me aborreci porque era licenciatura e eu achava a cabeça dos professores da área de pedagogia e educação um desastre. Era português-francês, licenciatura. Eu gostei muito da coisa de lingüística, literatura, latim, tinha literatura portuguesa , literatura africana, brasileira, tudo isso eu achei ótimo. 

Z: Até que…? 

Hernani: Didática, estrutura de ensino do primeiro e segundo grau, tudo isso eu achava um horror, um desastre. 

Z: Por sorte isso veio depois.(risos) 

Hernani: Discordava frontalmente da cabeça daquelas pessoas, ai eu larguei letras faltando um período, em 84. Eu não me formei. Aí em 85 voltei pra Uff porque tinha que ter um diploma qualquer, e terminei de uma forma meio mequetrefe, porque às vezes eu nem fazia o curso e era aprovado lá de algum jeito. Já tinha feito o ciclo básico e algumas matérias do profissional, mas ai eu me inscrevia e eventualmente não ia… e no meio desse processo eu tinha me decidido a não trabalhar com produção e a trabalhar com pesquisa. 

Z: E aí em um ano você se formou? 

Hernani: O curso não era muito grande naquela época, e certas matérias como realização de filmes, a rigor eu nunca fiz isso; tinha meu nome lá e eu não tinha condição de fazer, então era aprovado… na época a gente pegou a crise econômica, era tudo em película, tudo muito caro pra, fazer, a escola tinha muita dificuldade… várias matérias… por exemplo, quando eu fui fazer fotografia, o professor, que era o José Joffily, disse: “Não tô mais a fim de ensinar fotografia, vamos fazer um curso de roteiro”. E eu disse: “Não tô interessado em fazer um curso de roteiro, tchau” (risos) e não fiz o curso. Então eu não tive fotografia, não tive som, não tive montagem. 

Z:  Como era, o que tinha de parte técnica? 

Hernani: Tinha uma câmera 16 mm Arri, dois ou três refletores, dois gravadores, um Nagra e um UHER. Mas todo mundo usava o Nagra. Eu só fiz um filme na Uff, que era um filme de cadeira chamado A Cartomante, que eu fiz a direção de arte… uma experiência pra ver o que era, se eu ia dar mesmo pra aquele negócio e descobri que não ia dar de jeito nenhum. 

Z: Você não gostou do seu resultado? 

Hernani: O filme é legal, mas é legal por causa do Alexander Vancelotte, que é o diretor. Uma coisa bem interessante, uma montagem bacana. Era um filme de época que se passava no século XIX. Levantei tudo do século XIX e duas semanas antes de se iniciar a filmagem, mudou pro século XX, década de 50, então a improvisação foi grande, mas o resultado é bem legal, bem interessante. E naquele momento, em 1983, eu já tinha muito interesse em cinema brasileiro, eu via filmes brasileiros correntes no cinema, mas filmes brasileiros antigos eu tinha uma curiosidade enorme mas nem sabia se existia porque não passava de jeito nenhum. O primeiro filme brasileiro antigo que eu fui ver, eu fui ver na Cinemateca do Mam, foi a primeira vez que eu fui ao Mam, em 1980. Depois eu soube que a Cinemateca esteve fechada por causa do incêndio de 78. Aí teve uma sessão isolada em 1980 numa sala improvisada onde hoje é o Restaurante Laguiole e passou o Argila, do Humberto Mauro. E eu achei aquilo bem legal, bem interessante, tipo de cinema diferente, bonito em algum momento… e eu quis saber mais. Aí eu tinha a matéria de cinema brasileiro na Uff com o José Marinho – que faz o “Povo” no Terra em Transe – e que na verdade era professor de interpretação, mas como não tinha professor de cinema brasileiro, ele acabou dando essa matéria e a gente acabou lendo Paulo Emílio: Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. 

Z: Isso em 80? 

Hernani: 83, por aí… Paulo Emílio morreu em 77, e o livro foi publicado em 74. E que é um livro genial, o melhor livro que tinha sido publicado de cinema no Brasil até o momento. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte é a tese de doutorado dele. Que é um livro que abriu as portas deste passado obscuro, é um livro super bem escrito, cativante… que te leva a gostar daquilo que você nem conhece. Aí eu fiquei muito interessado por tudo aquilo e incentivado por um professor da Uff, que era o João Luiz Vieira, que estava tentando motivar alguns alunos a não serem só cineastas e fotógrafos etc., e eventualmente trabalharem com pesquisa histórica. Na minha turma entraram 50 pessoas, no semestre que eu entrei, e dessas 50 só 4 queriam cursar cinema. 

Z: Só 4? 

Só 4. Na época comunicação social não era dividida como é hoje, você fazia uma opção ali no terceiro ano. Só quatro queriam cursar cinema e, dessas quatro, um que a gente se aproximou muito que é o Lécio Augusto Ramos, também quis trabalhar com pesquisa histórica e a gente apresentou dois projetos pra um concurso aberto pela Embrafilme chamado Cine Tema 2. Eu apresentei um projeto pra fazer uma biografia de um fotógrafo, que era o Edgar Brasil, e o Lécio apresentou um projeto para indexar uma revista chamada Cinearte e que tinha muito a ver com o livro do Paulo Emílio. A gente tinha trabalhado nos dois projetos juntos… éramos colegas de turma, e aí a gente ganhou as bolsas do Cine Tema e começamos pela Cinearte, indexamos a revista inteira e depois fomos trabalhar na vida do Edgar, na biografia do Edgar. 

Z: Vocês pegaram a coleção da revista? 

Hernani: Lá no Mam, a gente pegou a coleção no Mam e indexou a coleção toda, 561 números mais 7 álbuns. O conteúdo inteiro das revistas. A revista não tinha índice, a gente que fez o índice das revistas. O outro trabalho era a biografia do Edgar Brasil. A gente deu o nome de Ensaio Biográfico. E aí, por conta desses trabalhos, eu me tornei uma pessoa ligada à Cinemateca, e além de fazer a indexação da Cinearte lá, eu passei a freqüentar, depois me tornei voluntário, até que fui trabalhar lá e me tornei funcionário em 86. E por conta do Edgar Brasil acabei indo à Cinédia, porque ele tinha trabalhado lá… fiz uma pesquisa lá, no início de 86 e em abril de 86 a Dona Alice [Gonzaga] me convidou para entrar na Companhia. Como pesquisador. Então, os dois lugares que na verdade se transformaram nos lugares de trabalho a vida inteira, me foram abertas através deste concurso: a indexação da Cinearte me levou pra Cinemateca, onde estou até hoje, e a biografia do Edgar Brasil me levou pra Cinédia, onde estou até hoje. Então minha vida se define ali, em meados dos anos 80, com todo aquele contexto de crise econômica, de estagnação do país, de fim da ditadura. Não nasci na ditadura, mas cresci ao longo da ditadura. Então, quando ela caiu em 85, era um momento em que eu estava definindo minha vida profissional, e essa definição foi em meio a um momento da história do Brasil de uma enorme estagnação. Nesse sentido a minha geração foi uma geração que perdeu muito, perdeu a década de 80, que foi a década em que nada aconteceu, e em termos de formação nessa área específica, eu tive que na verdade ser autodidata. 

Z: Você não teve uma série de cadeiras básicas, né? 

Hernani: É, eu fui aprender por conta própria, tanto uma coisa quanto outra, porque você não tinha cursos dedicados a isso, ou porque você tinha deficiências grandes na universidade naquele momento sobretudo porque era um período de formação, de crise econômica. 

Z: E em 83 foi o ano do concurso? 

Hernani: Foi o ano do concurso, o resultado saiu em novembro de 83 e a gente começou a trabalhar em 84. Na Cinearte a gente ficou um ano e meio, e no Edgar a gente ficou até 88.

 

… Entrevista continua na edição de agosto – Zingu! 48

* Luiz Alberto Benevides é publicitário de formação, entrevistador por opção e diletante por aspiração.

 

Parte 1