Entrevista Especial: Hernani Heffner – Primeira Parte
Parte 1 – A infância; o Estácio; o Rio de Janeiro da época
Por Luiz Alberto Benevides
Fotos: William Condé – Transcrição: Tiago Rosas e Adriana Clen
Zingu! – Hernani, como sempre, vamos começar falando das origens. Onde você nasceu, quando você nasceu?
Hernani Heffner: Eu nasci aqui no Rio, no Estácio, em 23 de fevereiro de 1962. Nasci numa família pobre, que vivia onde hoje é o Sambódromo, ficando ali até os meus 17 anos, quando aí se decidiu construir o Sambódromo. A desapropriação foi ainda no governo do Marcos Tamoio, a construção já se deu no primeiro governo do Leonel Brizola.
Z: A construção já tinha começado antes?
Hernani: Não, não. Tinha a idéia. Desapropriaram, ou seja, destruíram as casas desde lá do Túnel Santa Bárbara até lá na Av. Presidente Vargas e por isso, enfim, nós morávamos onde hoje é mais ou menos do lado do Setor 4, do lado onde ficava a Brahma, e ficou aquele “chove não molha”, não se decidiu construir imediatamente. Houve um ano em que construíram de forma improvisada uma arquibancada de madeira, mas desarmaram logo em seguida. E aí o Brizola chegou e havia essa reivindicação do pessoal do samba para se ter um local fixo para se desfilar, aí construíram o Sambódromo.
É uma área de casas antigas, construídas no final do séc XIX. Ali, eu morava na Rua Senhor do Matosinho; do lado, a paralela é a Rua Salvador de Sá, que é uma antiga vila operária, inclusive. Hoje é um conjunto tombado, remanescente de um momento em que a cidade começava minimamente a se organizar de forma industrial e aí começou a construção das vilas operárias na cidade, que e eram três originalmente: aquela perto da fábrica Confiança, ali em Vila Isabel, que não existe mais, a que era perto da fábrica Corcovado no Jardim Botânico e essa ali no Centro que na verdade servia às fábricas de cerveja instaladas pela região.
Z: Além da Brahma?
Hernani: A Brahma foi pra lá depois. Havia fábricas menores. A Brahma foi pra ali porque ali era, digamos assim, uma área onde você tinha uma mão-de-obra, de alguma maneira educada ou formada para trabalhar com isso. Então a Brahma se instalou ali depois dos anos 40 e está até hoje. O prédio ainda existe, embora a fabricação não seja mais feita.
Z: A Brahma era uma presença importante?
Hernani: Era uma presença pontual. Não, ninguém ligava pra Brahma. Não, primeiro porque a Brahma era um muro de concreto de, sei lá, 50 metros de altura. Ninguém nunca entrou, ninguém nunca conheceu, etc. Você tinha uma empresa, na verdade, já muito rica em um bairro muito pobre e isso fazia com que a população do lugar a ignorasse completamente. Havia uma tradição do Catumbi, do Estácio, eu morava na divisa entre uma coisa e outra. A Rua Senhor do Matosinho fica entre a Salvador de Sá e a Frei Caneca e a Frei Caneca é onde começa de fato o Catumbi. Eram bairros formados por imigrantes, em geral, sírios, turcos, enfim, você tinha uma comunidade árabe relativamente significativa no Catumbi e já mais para o Estácio você tinha um daqueles núcleos originais de constituição de favelas, próximo ao morro de São Carlos. Então você tinha um enclave entre um bairro que outrora tinha sido aristocrático, que é Tijuca, que naquele momento já estava decadente, e tinha se transformado em um bairro de classe média, classe média baixa; e você tinha uma área popular até o túnel Santa Bárbara; depois do túnel você já tinha de novo uma área de uma nova classe média que é a Zona Sul: Catete, Flamengo, Botafogo. Então eu morava a rigor no Centro, que estava muito próximo da Presidente Vargas, da Praça da Bandeira, lá muito próximo da região da Praça da Cruz Vermelha, do Catumbi, do Rio Comprido, mas a rigor é uma região que fica entre duas áreas de classe média. Eu morava na rua da delegacia, que era a 8ª DP.
Z: Ainda existe essa rua, dos Matosinhos?
Hernani: Parte só, né? Porque a parte onde um morava… é a arquibancada. Onde eu morava é a arquibancada. Ainda tem um pedacinho, mas não muito grande. Era a rua da delegacia, depois a delegacia mudou dali para perto do Morro de São Carlos. Do lado, era a rua Frei Caneca, do presídio Lemos de Brito, que foi implodido em 2010 e que vai virar conjuntos habitacionais. A infância é povoada de histórias engraçadas, do tipo fugas da delegacia, fugas do presídio, enfim, aquelas coisas de resgates de presos. Não cheguei a ver o do Escadinha, mas vi muitos presos passando pela minha porta saindo correndo e pra criançada era tudo uma festa, não era problema.
Z: Não tinha aquela história dos tamancos, do português de tamanco?
Hernani: (risos) Como ali você tinha uma área popular, você tinha hábitos que ainda vinham da década de 60, que era a minha infância, que ainda vinha na verdade do final do século XIX. Tinha velhos comércios como, por exemplo, o armarinho, a padaria de forno de lenha, a carvoaria, a funilaria, o turco que vende toalha, lençol e colchão; colchão não, colcha, de porta em porta. Me lembro de um que vendia relógios, que era o Seu Adolfo, que ia de porta em porta. E você tinha ainda uma presença forte, pelo tipo físico, pelas roupas, pelo calçado, pelo sotaque, de portugueses. Você ainda tinha portugueses, sei lá, de 50/60/70 anos, que na verdade nasceram no início do século e que ainda tinham os hábitos portugueses de uma forma muito arraigada, que costumavam se vestir completamente de preto e ainda tinham um sotaque carregadíssimo e etc. Então você tinha ali ainda a presença de um Brasil do final do século XIX e início do século XX. Aquele momento em que você ainda tinha uma distinção muito grande entre os que formaram o Brasil, os imigrantes que formaram o Brasil, ou seja, os portugueses, os sírios, os europeus e etc., e seus hábitos arraigados, né? Você via portugueses andando de tamanco de madeira praticamente todo dia e isso não era um problema, pois via pessoas vendendo os tamancos de madeira. Eu via isso, você tinha o vassoureiro que vendia lá as vassouras de piaçava etc., e tinha o cara que vendia sapatos; e entre eles, os tamancos de madeira como item regular. O autêntico camelô, que é aquele que fica andando. Porque o camelô de hoje em dia fica parado, ele só corre quando vê o rapa, mas antigamente não, ele andava bastante. Camelô, ele anda pelo meio da rua oferecendo produto, né?
Z: Era o ambulante. Hernani: Era o ambulante e isso era absolutamente comum na minha infância. Tinha aqueles que vendiam doces pra criançada, aquela chupeta, que é aquele doce caramelado, ultra-melado, que as crianças adoravam e tudo isso fazia parte da infância ali àquela altura; e você tinha, digamos assim, uma convivência, que era uma convivência típica de um pequeno bairro de Portugal. Todos se conheciam, todos tinham laços maiores ou menores, você tinha questões internas, havia preconceito contra os mais pobres ou contra aqueles que, de alguma maneira, te colocavam à margem dali, mas no fundo, no fundo, todo mundo convivia e isso representava um sentido de vizinhança muito forte, que depois desapareceu no Brasil inteiro. Não existe mais isso. Nem mesmo no subúrbio mais. Era o tempo de você viver de porta aberta, das crianças serem largadas no meio da rua e formarem aqueles bandos de cinquenta, sessenta, setenta crianças correndo de um lado para o outro, fazendo todo tipo de estripulia, etc. Pra você ter uma ideia, você tinha a Brahma, do outro lado eram terrenos baldios. Praticamente aqui da Salvador de Sá, onde ficava a Estácio de Sá (a escola de samba, que na época se chamava São Carlos, depois é que mudou de nome para Estácio de Sá), dali da quadra até a Avenida Presidente Vargas era terreno baldio. E aí você tinha a criançada espalhada por aquilo tudo, ou jogando bola ou caçando passarinho ou soltando pipa, etc. e tal. Enfim, era praticamente a criançada da região inteira. E aí, você tinha esse sentido de vizinhança que depois obviamente se perdeu.
Z: Durante a sua adolescência até acontecer a Derrubada, você ainda teve contato com essas pessoas que moravam no mesmo lugar?
Hernani: Com todas, eu vivi ali quinze anos. Só mudei dali em 77, que aí, enfim, veio a ordem de desapropriação, veio muito em cima, e aí eu fui mudar para Santa Teresa, onde você não tem sentido de comunidade nenhum, né?