Especial Boca Pornô – 30 anos
Viagem ao Céu da Boca
Direção: Roberto Mauro
Brasil, 1981.
Por Adilson Marcelino
Dirigido por Roberto Mauro, Viagem ao Céu da Boca é filme brasileiro explícito pioneiro da mesma época de Coisas Eróticas (1981), de Rafffaele Rossi, e que contém alguns nomes notáveis na ficha técnica, como Clóvis Bueno no cenário e figurinos – além de ser adaptação livre de conto de José Loureiro.
Como o filme de Rossi estreou antes, acabou passando à história como o primeiro título brasileiro de sexo explícito, Viagem ao Céu da Boca amealhou outros méritos, ainda que involuntários. Se Coisas Eróticas lotou as salas, e realmente era uma novidade desconcertante e altamente erótica na época ver, já na primeira cena, um cara se masturbando no banheiro e falando português que nem a gente, público na platéia, coube a esse Viagem a pecha instantânea de maldito, carimbo que resiste até os dias de hoje.
Realmente, mesmo 30 anos depois não se deglute facilmente o mostrado. Imaginem então naqueles tempos onde apenas o tatibitate já ouriçava os pelos de ponta a ponta? O foco de Viagem ao Céu da Boca não é mesmo brinquedo não, pois reúne toda uma fauna marginal por demais para a platéia ávida do nascente cinema pornô. Nesta fauna, que reúne bandido, uma dondoca ninfomaníaca, uma travesti e uma menina, o sexo e a violência imperam
A travesti Paula – Ângela Lecrely – é o grande destaque do filme e também a vítima maior de Nilo Barrão das Quebradas – Eduardo Black – um assaltante que invade a casa onde ela divide o espaço e também o marido de Mara – Bianca Blond. Entediado, Barrão circula para lá e para cá com seu jeans apertado revelando o documento volumoso entre as pernas. Depois de cismar pela cidade, passar os olhos nas manchetes dos jornais pregados nas bancas, ele inicia sua jornada de crimes: rouba um carro da companhia telefônica, exige que o dono do veículo se atire dele em movimento, e por fim bate à porta da casa de Mara para uma estadia de práticas violentas e sádicas.
Surpreendente e safadamente, a dondoca não aceita apenas ser assaltada, quer também ser currada pelo negão. Já ele, parece mais interessado é nos badulaques da casa kitch e modernosa, com janelas redondas, luminárias de todos os tipos e elementos fálicos presentes na decoração. Mas quando passa o deslumbre inicial, ele resolve mesmo é barbarizar, estendendo suas garras e intenções para a outra moradora do pedaço, a travesti Paula. É ela que será transformada no principal objeto do garanhão, sobretudo para humilhá-la, já que o desejo indesviável não pode ser assumido tão facilmente. Daí toma penetração com cano de revólver, alfinetada na bunda e roça a roça com Mara para deleite do voyeur sádico.
O circo já está mais que armado, mas aí novas surpresas surgem, como a aparição de uma menina de patins e em uniforme de escola, que será mais uma presa para satisfação sexual banhada em sangue de Barrão – como se vê, qualquer idéia de estatuto de criança e adolescente pareceria idéia de lunático sem o que fazer. Há ainda uma pomba-gira e por fim o algoz se transformando em vítima, inclusive de tortura oficial.
O cenário kitsch de Bueno é palco perfeito para as atrocidades do assaltante, que quase sempre escambam para o mau-gosto. Mas ainda assim tem algum humor involuntário, sobretudo na compulsão boqueteira de Mara e nas falas espirituosas de Paula – “No Brasil até bandido é moralista”.
Há também uma certa inquietação: se gays e lésbicas queremos ser vistos fazendo sexo com naturalidade, e é assim mesmo que tem que ser, com que direito nos empunhamos de certo asco quando essas cenas de sexo envolvem travestis? E mais, é assombrosa a construção fílmica em cima de um personagem que, torturado diariamente, também sonha com garbo com a tortura, não?
Viagem ao Céu da Boca é contra-indicado para a forma como se vê normalmente filme pornô, avançando as sequências. Isso porque em cada avanço, podemos esbarrar com paus em sangue sendo lambidos ou cano de revólver tomando o lugar do cujo, e aí se enfastiar de cara. Desconcertante até a medula, Viagem ao Céu da Boca precisa ser visto em seu tempo real, com começo, meio e fim, pois daí pode sair leituras possíveis – e a tortura particular e do Estado é uma delas – que sobrevivam em meio a esse desconforto.