Por William Alves
Cidade Baixa
Direção: Sérgio Machado
Brasil, 2005.
Nunca entendi muito bem esse negócio de “retomada”. Afinal, como é que uma bomba gigante como Carlota Joaquina pode ser incluído no mesmo balaio que o estupendo Lavoura Arcaica? No entanto, no esteio da tal retomada, voluntariamente ou não, veio o cearense Karim Aïnouz. Gostei de Madame Satã, apreciei ainda mais O Céu de Suely, o que viabilizou uma curiosidade crescente sobre o que mais o sujeito tinha produzido. E foi assim que cheguei em Cidade Baixa, com roteiro de Aïnouz e direção de Sérgio Machado – e nem saber que era uma produção de Walter Salles me desencorajou, devo afirmar.
Em 2005, Lázaro Ramos e Wagner Moura não eram as unanimidades e exemplos de astros infalíveis que são hoje. Eram atores promissores, mas ainda figuravam longe do status messiânico de um Selton Mello. Alice Braga, então, era só mais um ponto genealógico em comum com a tia Sônia, dama do lotação. Talvez essa mesma ausência de desgaste tenha contribuído para tornar Cidade Baixa naquilo que Machado e Aïnouz planejaram para Cidade Baixa: uma disputa suja e sem glamour, protagonizada por dois sujeitos frustrados e combalidos.
Ou talvez seja Deco, personagem de Ramos, pilotando o barco de pesca e informando a Naldinho (Moura), que o jogo “ta 1 a 0 pro Vitória, gol do Obina”. Tudo em Cidade Baixa remete ao homem convencional brasileiro, que não dispensa uma cerveja barata e não dá a mínima para o aumento da taxa Selic. Esse fator “igualitário”, essa destreza em antagonizar dois indivíduos sem vantagens – materiais ou emocionais – sobre o outro, foi a força motriz do grande fascínio que o filme exerceu sobre mim, ampliado pela recente revisão do longa.
A trama é minimalista: Karinna, uma prostituta em início de carreira, pega uma carona no barco dos rapazes, em troca de uma transa com ambos. Deco e Naldinho, que são mais carentes do que admitem ser, se afeiçoam instantaneamente à moça. Rusgas mínimas, que foram sendo absorvidas pela fortificação da amizade, emergem em Salvador.
As cenas mais intensas são a meia-luz. Uma boate modesta ou um quarto de hotel sujo são os principais cenários para a hostilidade mortífera que se desenvolve. Durante o dia, Deco e Naldinho sorriem amarelo e falam de negócios. À noite, os becos enegrecidos do cais sediam a disputa, que ameaça estourar a muralha de boa vontade.
Com Cidade Baixa, me tornei mais receptivo a tudo que vinha carimbado com o selo “retomada”. Descobri algumas jóias tardias, como os filmes de Beto Brant, e retomadas de coisa nenhuma, como A Concepção. E o mais importante: retomei o anseio pelo cinema nativo.