Parte 5: Casa de Meninas, Casa de Imagens e o mundo de hoje
Fotos: Pedro Ribaneto
Z – Mas o Casa de Meninas você tentou fazer dentro da Boca?
IA – Nem sei se tentei fazer. Porque aí entrou o sexo explícito e ficou uma coisa muito complicada. A nossa ação lá era uma ação de pirata, de contrabandista, quer dizer, você dava uma coisa que os caras queriam, que era botar mulher pelada, e puxava o filme para o outro lado. Fiquei muito feliz de ver a reação ao meu episódio. Eu ia meio disfarçado para o Marabá e ouvia as pessoas comentando que iam continuar na sala para ver de novo o meu episódio. Fiquei muito feliz, era a primeira vez que fazia um filme e tal. Mas depois começa a ser complicado porque aparece o sexo explícito e muda toda a configuração de produção.
Z – Você não pensou em fazer pela Embrafilme, como muita gente começou a fazer?
IA – Ah, acho que apresentei uma ou outra vez e não ganhei. A última vez foi já com a Casa de Imagens, já em 89, e também não deu certo. Há não muito tempo, o Galante queria fazer, mas era mais um sonho dele, sabia que, se desse certo, ia colocar o roteiro de cabeça para baixo, porque aquela historia não fazia sentido hoje em dia, as pessoas estão diferentes, é uma história de 84 a 89, no limite.
Z – Por que transformou em romance?
IA –Transformei em romance porque era um filme de um momento, filme de toda uma geração, de 68, que se achava salvadora da pátria, e era um questionamento disso, então tinha um momento específico, meninas que tinham 18 a 20 anos e não cresciam, não havia tempo adulto, era uma coisa da época você ficar estudando pela vida afora durante 10 anos de mestrado, 10 anos de doutorado. Hoje em dia não tem mais isso. Hoje em dia, o cara vai para vida, tem que ganhar tempo, produzir, o mundo é outro. Então decidi escrever um livro a partir disso.
Z – Por que você transformou o Ponce de Leon em narrador da história?
IA – Aí já é uma questão de praticidade. Você tem que ter um narrador.
Z – Mas por que ele?
IA – Não me lembro por quê. Gosto de narração em primeira pessoa. Gosto de ouvir uma outra voz. Não gosto de como se fosse eu mesmo falando, de um falar meio impessoal – o filme tem. Passava de um roteiro, que é algo sem narração, para um romance, que tem de ter uma narração, e gostava do Ponce de Leon, era uma figura.
Z – Ele aparece pouco, em momentos chave no roteiro, mas foi transformado no romance.
IA – Sim. Mas ele é uma figura importante no roteiro.
Z – Pode falar um pouco da Casa de Imagens, como surgiu a proposta?
IA – O Carlão é que sabe completamente essa história. Ele me convidou. Foi uma coisa que não deu certo por uma série de razões, mas a idéia era muito interessante. As pessoas pensam que era uma cooperativa, mas não era. Cada um seria o diretor de um filme e produtor executivo de outro filme, ou seja, zelaria por um outro filme. No mais, seria absolutamente profissional. Seria um grupo de filmes feitos muito rapidamente, à maneira que eu fazia, e também o Carlão, o Guilherme [de Almeida Prado], e feitos dentro de um orçamento. Como seriam feitos seis, você conseguia laboratório mais barato, negativo mais barato, você tinha uma série de economias, podia até ter pacotes com atores, enfim era um Roger Corman mesmo, a idéia do Roger Corman estava sempre na cabeça do Carlão. A idéia era muito interessante. O problema foi que foi bem em 89, que foi quando o Brasil destrambelhou completamente, tinha inflações absurdas. Tinha uma possibilidade que era a Conversão da Dívida, que nem sei direito o que é, mas houve uma possibilidade concreta de a gente receber, entrar em acordo com banco holandês, não sei exatamente o que era mas ia sobrar uma grana para nós, e o fato é que, de repente, fechou tudo, não tinha mais isso. No ano seguinte, acabou a Embrafilme, que era quem tinha financiado todo o desenvolvimento de projeto, e aí acabou.
Z – A Casa de Imagens tinha uma proposta de fazer um cinema mais comercial ou não?
IA – Olha, na minha cabeça, na do Carlão e em algumas outras, tenho certeza de que sim, mas você acha que o [Andrea] Tonacci ia fazer um filme comercial? Mas nem a pau! Então você tinha contradições ali dentro que mais cedo ou mais tarde estourariam. Imagina: o Tonacci é um cara que filma sozinho, vai lá com índios, leva anos. Ele se adaptaria? Acho difícil. Ele tinha um roteiro espetacular que até hoje não foi rodado. Mas ele não conseguia dar um fim para aquilo, um fecho tal como ele queria. O André Luiz Oliveira tinha um roteiro bem interessante, daria para fazer. Não sei o que você chama de filme comercial, mas era um filme que qualquer pessoa poderia ver, era um pouco a idéia mais de um cinema popular, digamos assim. E acho que daí saiu, por exemplo, o que acho o melhor filme do Guilherme [Perfume de Gardênia], aquele filme em que a Christiane Torloni é uma atriz da Boca. Talvez ele já tenha feito em outro esquema e já tenha tido de rebolar para ter a Christiane Torloni. Mas o que era fundamental naquele momento era o fato de que o Guilherme sabia perfeitamente do que a gente estava falando. Ele era um cara que tinha se formado lá. Ele foi assistente do Ody Fraga. E aquele filme é o mais vital dele. Guilherme tem uns filmes muito bonitos, mas que não sei porque ele está fazendo. Mas aquele filme não, porque era uma personagem de que ele gostava, aquelas atrizes que ele admirava, então saiu uma coisa viva, gosto muito daquele filme. Enfim, o projeto do André Luiz, que também saiu, era diferente. O do Carlão acho que nunca saiu. E foi isso. Foi o rescaldo de um projeto que acabou não dando certo.
Z – E só para falar rapidamente de sua entrada na crítica, como foi sua entrada na Folha, como surgiu o convite?
IA – Acho que foi a mesma coisa, quando eu voltei da Europa escrevi um livrinho sobre Hitchcock [Hitchcock – O Mestre do Medo], escrevi um artigo para eles, que até está no livro que o Juliano fez, e se chamava 16 notas por um cinema sem crédito, foi para o Folhetim, que era o Rodrigo Naves naquele tempo, e um dia me convidaram para escrever lá, não sobre cinema, mas sobre crítica de televisão e filmes na TV. Eu via que estava tudo indo para o buraco mesmo, não havia mais filme, só aquela coisa de pornô, muito chato, não tinha o menor interesse nisso. Até então dava para ir toreando, ir toreando é legal, mas aí não tem uma conversa, não há diálogo possível, vira baixaria mesmo. Então falei: “Vam’bora. Vam’bora ver. Talvez um dia melhore isso.” E aí virei crítico.
Z – Você acha que sua bagagem trabalhando na área de cinema foi importante para você como crítico?
IA –Acho que sim. Foi. Toda bagagem é importante. Os filmes que vi, os livros que li, e também trabalhar lá, mas não acho que seja indispensável. Há bons críticos que nunca chegaram perto de um set, ou nunca chegaram com o tipo de responsabilidade que tive, mas que escrevem perfeitamente, não há nenhum impedimento nisso.
Z –Você vê grande diferença entre a crítica que se começou a fazer nos anos 80 e a que se faz hoje?
IA – Você tem como diferença importante a internet. Acho que a internet foi um difusor do pensamento crítico muito interessante, sobretudo nos anos 90, porque, quando você chega nos anos 90, o cinema foi destruído no Brasil, não tem mais nada. E, nesse primeiro momento, curiosamente aparece a primeira geração Contracampo e daí começa a acontecer isso, porque você tem um cara que está no Rio, outro em São Paulo, outro em Pernambuco, ou em Goiás, na internet as pessoas podem estar em qualquer lugar, não existe essa questão. Acho muito interessante o jornal ainda como lugar de fixação das coisas. Nesse momento que você não esperava nada, as coisas começam a acontecer. Mesmo porque hoje o acesso aos filmes é muito mais fácil, na internet tem quase tudo. Mas o cinema em si teve uma mudança. Antes era uma arte popular, hoje não e ainda é mais cara. Antes, se você tivesse um tempinho, você ia numa sessão, nem assistia inteira, ou ia, e assistia quatro vezes seguida. Hoje não dá para entrar mais atrasado e ainda querem enfiar esse negócio de lugar marcado. É um caos. Às vezes você vai lá no Reserva Cultural e tem uma puta fila. Você logo pensa: deve estar bombando. Mas não, é a velhinha que não sabe decidir o lugar. Até eu faço isso. Essa mudança na natureza é muito chata, apesar de coisas bacanas, como a internet. Isso supre, porque a Cinemateca não desata. A gente lê que a Cinemateca vai restaurar. Ela agrega coisa, mas não bota para fora. Você olha a programação da Cinemateca de Portugal e fica babando, aqui… Hoje as produções são muito caras. Você tem a borda, que o cara filma, bem ou mal, com R$ 40 mil, absolutamente sem condições mínimas, ou o cara que faz com não sei tantos milhões. Tem um cenógrafo e quatro assistentes sem fazer nada. Do que resulta que o cenário fica meio artificial, tem muita gente neles. Você precisa ter mais suor. Fui numa filmagem do Carlão recente e não achei legal: o diretor dirigindo longe do set, por meio do vídeo-assist, o ator sente, ele quer o diretor perto. Você pode ter mais noção de som e imagem, mas perde. Quando você vê um travelling do Samuel Fuller, você sente que ele está com aquela câmera Mitchum, que é super pesada, uma complicação, há uma tensão que atinge todos os envolvidos no filme. Quando fazíamos, havia essa percepção, apesar de todos os problemas. Hoje a câmera é muito leve, muito simples, muito maleável. Hoje me seduz muito menos, por que é fácil fazer. Sente-se uma hipertecnização. Se me perguntam qual filme eu mais gostei nos últimos 20 anos é O Viajante, do Paulo Cezar Saraceni, que tem tudo isso, você percebe. Só no Brasil você vê aquilo e ninguém dá importância. A gente sempre tem reclamação sobre o tempo presente. Em 1928, você vai ler, estão dizendo que o cinema está decadente, em 1950, a mesma coisa, em 1970, então… (risos). As coisas mudam, mas acho que precisa sempre ter uma paixão envolvida. O único problema que vejo nessa nova crítica é que não está conseguindo modos de ser remunerada. Chega um ponto e ele tem que viver. O Ruy [Gardnier], que é o melhor crítico dessa geração – e olha que tem críticos muito bons -, não escreve mais sobre cinema, isso é uma perda absurda. Primeiro, porque ele deveria fazer filme. A crítica só se prova fazendo filme. Tem que ter essa passagem. A sua hipótese virando resultado. Legal, o Eduardo Valente fez isso. O problema é que depois tem que polir o superego. Problema agora do Felipe Bragança. Você fica achando que tem que fazer uma coisa do outro mundo. O primeiro filme era legal, esse agora é uma fórmula, porque acha que vai agradar não sei quem, não sei onde. Agora já tem outra geração, como a Zingu!, que faz um trabalho maluco, fantástico, tem o pessoal de outras revistas. Nesse aspecto acho que está bom. Falta conectar com o fazer. Vejo o Valente e o Bragança sozinhos nessa coisa. Tem que fazer, sei lá como, num esquema de guerrilha. Mas também não pode ser filme muito miúra. Você vai ver o filme do Tiago Mata Machado [Os Residentes], é ok, mas é um puta de um miuraço. Ou ele vai para Cannes e ganha e aí entra nesse star system de autor. O cinema hoje é muito comercial. De um lado você tem o cinema “comercial” e de outro o “artístico”. Esse cinema que vai para o Espaço Unibanco, para o Reserva, que constitui um espaço comercial também. Aí se inventa os Irmãos Dardenne, que sumiram. Agora é o Apichatpong Weerasethakul. Outro dia era o Jia-Zhang Ke. Alguns até se confirmam, outros vão desaparecer. Não é diferente do que fazem os americanos. Ou o Tiago entra nisso, nessa moda, ou não vai acontecer nada com o filme. Esse é o problema. Acho perfeitamente factível – e isso vale para o Felipe também – fazer filmes de que as pessoas gostem, porra. Você não precisa lamber a bunda de ninguém. Tenho a impressão de que você tem que ter a dimensão de que está falando com o espectador, que deve ser tratado com o maior respeito do mundo, mas também pode buscar maneiras de um falar. Todo mundo quer começar e fazer Godard. O cara preciso limpar um pouco esse superego e refletir sobre o que viveu, o que sentiu, sobre o que determinada coisa te faz falar. Não vou dizer que não tenham nesses filmes. São pessoas talentosas, e justamente por isso gostaria que pudessem ser mais vistos – vistos, a rigor, porque se não passa em Brasília, Tiradentes e boas festas. Ninguém vê. O cara que exibe o filme, claro, quer um retorno.