Dossiê Inácio Araújo
Entrevista com Inácio Araújo
Parte 4: Estreia na direção: Uma Aula de Sanfona
Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto
Zingu! – Em 82, você fez seu único filme como diretor, que é Uma Aula de Sanfona, um episódio do filme As Safadas. Como surgiu o convite para você dirigir esse filme?
IA – Isso é muito interessante. Tínhamos uma inflação muito grande. Filme de episódio era uma coisa que se fazia naquele tempo. Se fazia o primeiro, depois o segundo e depois o terceiro. O Galante falou que ia fazer os três ao mesmo tempo, ia sair com três equipes diferentes filmando. Então ele saiu com o Toninho Meliande, que era uma garantia comercial, para fazer um filme como ele queria, o Carlão que era aquele porra-louca que dava certo, e acho que quis pôr um cara novo, sei lá, acho que foi isso que passou na cabeça dele. E aí ele me convidou para fazer e acho que deu uma sorte muito grande, porque, para os padrões de produção que a gente tinha, o filme saiu-se milagrosamente bem. Não sei como, porque a atriz [Sandra Graffi] quase não conhecia, e ela, fisicamente, não era nada do que eu tinha pensado, do que queria.
Z – Ela foi uma imposição do Galante?
IA – Ao contrário, o Galante queria qualquer uma menos ela, o Galante a detestava, porque era noiva do Roberto [Galante, seu filho]. Mas a Sandra era um fenômeno de dedicação, de vontade, o que ela melhora do começo para o fim do filme é uma coisa impressionante. Então deu muita sorte. O rapaz, o Armando Tirabosqui, foi um conselho do Alfredinho Sternheim, eu não conhecia, nunca tinha visto nada dele.
Z – E o Mamberti?
IA – O Mamberti era o Mamberti. A primeira escolha era um ator de teatro, que era um ator do Antunes Filho, que eu e o Carlão tínhamos visto e nos apaixonado por ele na Odil Fono Brasil, porque compunha a imagem desse gordo melancólico. Então foi essa a imagem que a gente pensou. A gente até escreveu um roteiro que nunca foi filmado – porque tem isso também: roteiros que a gente fazia e que não eram filmados por uma razão ou outra. Mas aí não encontrei esse cara. Mas aí o Mamberti, que era outra coisa, porque ele não tem esse jeito, mas é um ator tecnicamente ótimo, foi a primeira alternativa e foi espetacular. Tinha também uma menina, a Isa Kopelman, que depois desapareceu, que tinha ganho prêmio Molière, era uma puta atriz de teatro, mas não deu certo no filme, foi quem mais me trouxe dificuldade para trabalhar.
Z –É um filme que, para a época, comparando-se com a pornochanchada, e não com os filmes de sexo explícito que já começavam a circular, traz bastante nudez, inclusive nudez frontal. Isso era uma imposição do Galante?
IA – Tem uma cena de que eu gosto muito que é da Sandra tirando a roupa para o gordo. Para mim era uma coisa totalmente estética, os filmes tinham que ter, não sei se era muito ou se era pouco, mas era o que vinha ao caso ali, no meu entender, e que eu achava muito bonito.
Z – Tem também uma cena da Isa tomando banho…
IA – Essa da Isa foi porque a Isa todo o tempo sabia que ela faria a menina feia, não a bonita. Lá, na hora, ela não queria ser a feia, porque conversara com sua terapeuta, o caralho a quatro. Então disse para ela fazer a cena do banheiro, tanto que depois fiz outra cópia e tirei essa cena, não gosto dela, mas as pessoas até gostam. É um filme que tem muita nudez, mas a nudez é só a menina que vai tomar banho, que sai do banho, tem uma cena na cozinha em que, aliás, a Isa está nua porque saiu do banho, mas claro porque são duas meninas, duas amigas que estão lá. Sua observação me pegou de surpresa porque jamais pensei num filme em que houvesse muito sexo, porque, para mim, o que era importante eram outras coisas, exceto pelo momento em que a Sandra Graffi se despe, essa eu queria que saísse bacana.
Z – E você se divertiu fazendo esse filme?
IA – Muito, muito. Teria me divertido mais se tivesse tido um pouco mais de tempo. Tinha seis dias para filmar sendo que o sexto dia era sem elenco e tinha cinco rolos. Ou seja, não podia errar. Se errava um plano do meio para o fim, tinha que continuar de outro ângulo, tinha de me virar, não tinha essa história de ficar filmando até dar certo. A gente tinha grande dificuldade de encontrar lugar para filmar. Porque você conseguir um apartamento emprestado para filmar é complicado, mas você conseguir um aqui e outro em cima é dez vezes mais, e estava enfrentando esse problema quando o diretor de produção disse: “E se a gente fosse filmar num bordel?” Eu respondi: “Vamos ver, né? Para mim tudo bem, eu quero ver a cara que e a coisa tem”. Então foi muito bom porque era um bordel na Av. São João que tinha muito papel de parede, o que facilitava muito. Vendo os filmes dessa época, você pode reparar que eles têm aquela decoração horrorosa, porque foram feitos num apartamento de um ricaço cafona ou numa casa de campo horrorosa, com aqueles quadros que parecem saídos do inferno, as paredes todas brancas, sem nada. E o papel de parede do bordel já resolvia esse problema, deixando o filme com cara de filme europeu, e aí o resto da decoração levei de casa. Como no Amor, Palavra Prostituta. E era amplo, além do mais. Tinha a cozinha passando para a sala por uma porta, e se podia passar num movimento, o que dava certa dinâmica. O filme inteiro quase é num ambiente só e os ambientes eram amplos, era até importante dar a impressão de que eram menores do que efetivamente eram. O problema era o tempo: eu tinha de filmar das 7h da manhã às 4h da tarde porque, depois, o puteiro continuava funcionando normalmente (risos). Era uma complicação, não tinha parada, a equipe era muito reduzida, mas as pessoas eram muito boas, o Concórdio foi ótimo, o Vavá, que era o maquiador. No primeiro dia, apareceu com a atriz toda maquiada à moda da Boca (risos). Eu falei: “Vavá, quero que pareça que ela não está usando nada, tá?”, e ele disse: “Tá, deixa comigo.”, mas achou que assim parecia que não tinha maquiagem, claro porque não precisa parecer que tem às sete ou oito horas da manhã, a mulher saindo da cama, só na Boca os caras faziam isso, era um absurdo. Então foi muito legal, só tinha o problema da correria, tinha de colocar a cama redonda, tirar a cama redonda, tirar o quadro de Jesus Cristo, botar as coisas profanas, tinha esses problemas normais de bordel. A casa estava meio caindo, faltava azulejo, então dava para compor muito bem. Tinha poucas pessoas, mas era bacana, não tinha lugar lá nem para colocar uma cadeira de rodas, era preciso restringir o movimento ao máximo. Quando tinha movimento, o eletricista e o maquinista puxavam um tapete com o Concórdio em cima com a câmera na mão. (risos) E deu bons movimentos. Essa parte foi legal, divertida, muito gostosa. Dentro do que era possível fazer, acho que minha experiência de montador contribuiu muito porque ter cinco rolos para tirar três é difícil, muito difícil. Não podia errar, mas toda a angulação estava na minha cabeça, decupava na madrugada, não dormia. O único ataque de sonambulismo que tive na vida foi aí, dormi no quarto e acordei na sala, não sei como. Dormia três horas, quatro por noite, repassava a decupagem para dar dentro do tempo senão ferrava tudo.
Z – E depois desse filme?
IA – Houve um projeto que, por alguma razão, não deu certo, do Roberto com a Sandra, mas acho que o Galante não quis. Acho que o Galante foi muito infeliz nessa história de interferir muito em vida de filho. Só deu errado na vida dele isso. Não lembro mais se o Filme Demência foi escrito antes ou depois. Nessa época também houve o Casa de Meninas que também não deu certo e apareceu o jornal na minha vida e o resto está no livro do Juliano [Tosi, Críticas de Inácio Araujo: Cinema de Boca em Boca – Escritos sobre Cinema].