Entrevista: Inácio Araújo – Parte 2

Dossiê Inácio Araújo
Entrevista com Inácio Araújo
Parte 2: Indo para o cinema e aprendendo o ofício de montador
 
Inacio3A1Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Zingu! – Como você foi parar no cinema?

Inácio Araujo – O Rubens Ewald Filho era meu colega lá no jornal e já era crítico de cinema, estava sempre conversando com o Biáfora. Lá era um lugar engraçado, de muita conversa. Os Mesquista em geral tinham uma relação muito esquisita com o comunismo. Eles detestavam o comunismo e gostavam dos comunistas, especialmente os que trabalhavam lá. O Miguel Urbano Rodrigues era um baita comunista que trabalhava lá, quando teve a Revolução dos Cravos foi para Portugal ser redator do jornal comunista de lá – e Portugal tem o pior comunismo da Europa, stalinista. E o Miguel Urbano escrevia os editoriais para o Julio Mesquita, que era um reaça total. (risos) Era uma coisa esquizofrênica. Ele ficava discutindo na redação sobre luta de classes e essas coisas, aí ligava o Mesquita e perguntava o título. O Miguel respondia algo como ‘As sujas manobras dos soviéticos’. (risos) O Rubinho, ao invés de trabalhar, ficava batendo papo com o Biáfora. E não era culpa do Rubens, o Biáfora falava que nem um louco. Na época, como qualquer garoto meio estudado, tinha uma relação com o cinema muito forte. Havia muita vontade de conhecimento. O cinema era muito diferente do que é hoje. Você queria ver um Godard, estava em 6, 7, 10 cinemas. Era inacreditável. O centro mudou muito, claro, era de bacana, havia um circuito espetacular, cinema era uma coisa corrente: Cinema Novo, Nouvelle Vague e afins. Antes do cursinho, a gente passava por uma espécie de curso do cinema, ia muito, ver filmes tchecos – geralmente chatos -, mas tinha coisa muito boa, do Wajda, Monicelli – aquele filme muito bom que saiu agora em DVD, Um Burguês Muito Pequeno. Um dia, por mero acaso, passei em frente a um cinema que passava o primeiro filme do Candeias, A Margem, achei as fotos interessantes, tinha um tempo livre, entrei para ver. Adorei o filme. Quando teve o segundo filme do Candeias, Meu Nome é Tonho, o Rubens escreveu e não gostou, achou decepcionante. Encontrei com ele no dia que publicou a crítica, e perguntei: “O outro filme dele era tão bom, como esse pode ser ruim?” Ele disse que não gostou, mas me recomendou ver, achou que eu iria gostar. Achei muito bom, filme fantástico. Falei para ele. Ele me chamou para ir na Boca do Lixo conhecer o Candeias. Ele me apresentou ao Candeias, disse que eu tinha gostado dos filmes. E, de novo, aquela coisa por acaso: “Quer trabalhar num filme?” Topei. Tirei férias e fui trabalhar. Acabaram as férias e pedi para ser demitido – naquele tempo tinha isso. O regime do Jornal da Tarde era muito puxado. Entrava às 22h, depois passei a entrar às 20h, para fazer um fechamento que não tinha fim. 3h, 4h, 7h, aconteceu de eu sair de lá às 9h. Como já tinha dificuldade para dormir, estava dormindo às 12h. No domingo, você imagina, como não tinha Estado e o jornal circulava de manhã, o fechamento era mais cedo, às 24h. Saía esse horário e ia fazer o quê? Não tinha nada para fazer. Hoje tem um monte de coisa que você pode fazer para alimentar sua insônia: TV a cabo, internet, DVD. Naquela época não tinha nada, só podia ler. Tava todo mundo já dormindo. E era um jornal que pagava bem. Foi o que serviu para me financiar, quando fui trabalhar com cinema, mesmo como assistente de montagem, ganhava condução e alguma coisa e tchau. (risos) Foi meu dinheiro de reserva.

Z – Por que aceitou o convite?

IA – Na época, me perguntava como iria ganhar a vida. Cinema parecia legal. O jornal era para mim terrível, tão terrível. Era na época em que estavam institucionalizando a profissão, começando a precisar de diploma. Quem trabalhava no jornal, precisava ir só no Ministério do Trabalho para regularizar a situação. Mas minha saída foi tão traumática que levei meu pedido e nunca fui buscar. Fui buscar em 1983, quando entrei na Folha e eles pediram o registro. Fui sem esperança e estava lá, assinado. Naquela época, o cinema me interessava. Entre meus amigos estava o Alfredinho Sternheim, que já era crítico do Estado e já começava a filmar. O Maurício Ritner, que era crítico do JT. O cinema era muito fascinante naquela época. No Brasil, estava se abrindo, ganhando reconhecimento. E gostei muito do Candeias.

Z – Como foi trabalhar com ele?

IA – Aí já foi mais terrível. Em A Herança, assino como assistente de direção, mas não fazia nada, assistia mesmo, batia a claquete. Era como um estagiário. Não fazia nada de relevante. O Candeias fazia tudo: era diretor, roteirista, fotógrafo. Ele sentava de manhã num canto com o Hamlet e filmava. Não tinha nada escrito, decidia tudo na hora.

Z – Como foi filmar sem fala?

IA – Ah, isso era bom. O Candeias tinha um sentido da imagem muito forte e dentro disso, uma grande capacidade de trabalhar com atores que eram, geralmente, fracos. Como ele próprio fazia a câmera, sabia explorar as figuras como lhe convinha. Ele gostava das figuras com quem trabalhava. Bárbara Fazio, o próprio David Cardoso, mas tinha também o Agnaldo Rayol e aí era páreo duro. Mas era ele quem dava dinheiro para o filme, tinha que tê-lo. O Candeias tinha um senso da imagem muito bom e era um excelente fotógrafo. Tirava da pessoa, para a paisagem, da paisagem para o animal e tinha uma capacidade muito grande do cinema como linguagem, ou como língua, ou como expressão. Ele nunca se apoiou na fala.

Z – Quanto tempo de filmagem?

IA – Acho que foram 45 dias, se não me engano. Porque tirei 30 dias de férias e me confundi e voltei com 15 dias de atraso. AcabavaInacio1-300x225 o dia, o Candeias ia trabalhar com o Luzinho [Luiz Elias], que era montador. Não participei.

Z – Onde foi filmado?

IA – Era perto da represa Guarapiranga, não sei bem aonde. Todo dia a gente pegava uma Kombi, na altura do Estadão. Era interessante porque o Candeias não esperava ninguém. Marcava às 7h. Se você não estivesse lá, ele ia embora e te deixava. Lembro que tinha um ator, o Clemente Viscaíno, que um dia atrasou, e o Candeias deu um jeito. Na segunda vez, ele matou o personagem (risos). Não matou, fez desaparecer. Era um daqueles dois emissários, ele e o João Batista de Andrade. Se você rever o filme, vai ver que simplesmente não aprece mais. E fez muito bem. Não acho um grande filme não, acho os dois primeiros fantásticos. Foi muito interessante ver, apreciar a maneira como trabalhava. Aprendi muito com o que ele dizia. Uma vez fui me meter a besta e fazer uma sugestão, em que achava que em determinada cena ele poderia fazer alguma coisa. Ele virou para mim: “Falar é fácil”. (risos) “Fazer é difícil”. Isso foi super importante para efeito de trabalho crítico, porque você pode falar qualquer coisa. Ter uma percepção dos problemas, das dificuldades, é super importante.

Z – Você chegou a recber outros convites para trabalhar com o Candeias?

IA – Não. Em geral, o cara trabalhava só uma vez com o Candeias, porque não ganhava nada. Mas em seguida, virei montador e ele montava os próprios filmes. Ele trabalhava muito com o Gaúcho [Virgílio Roveda], que era assistente de câmera, e o resto era ele. Ele ia de motorista – o motorista da Kombi era ele. Ele quebrava qualquer galho, era impressionante.

Z – Como você foi para a área de montagem?

IA – O Márcio Souza, que mais tarde ficou como escritor, fazia cinema, foi roteirista de um daqueles filmes sertanejos do Osvaldo de Oliveira. Ele que me disse que o Sylvio Renoldi estava precisando de um assistente de montagem. Não o conhecia, mas quis, porque esse negócio de montagem me atraía muito. Esse cara que ninguém sabe o que faz. Até hoje você não sabe o que o montador fez, se não contar. Foi logo depois de A Herança.

Z – Você já frequentava a Boca?

IA – Já, mas passo a frequentar efetivamente quando vou trabalhar com o Sylvio.

Z – Como era a dinâmica?

IA – Trabalhei com ele por dois anos, mas não sei te dizer qual era a dinâmica. (risos) Às vezes, odiava o Sylvio, queria bater nele. Hoje me pergunto como aquele cara me agüentava. Eu tinha um cabelo enorme, ficava fumando dentro da sala de montagem – não só eu, todo mundo. Era uma maluquice. Era uma sala super pequena, fechada, puta absurdo. Eu ficava basicamente olhando. Às vezes ele se cansava de mim e me mandava colar o magnético, ou comprar bilhete de loteria – imagina, eu odiava. Foi muito interessante tudo isso. Depois de certo momento, nos demos muito bem. O Sylvio foi um cara muito importante para mim. Ele era um pouco como o Candeias, altamente intuitivo, não era um intelectual, longe disso. Tinha uma sensibilidade montagem extraordinária.

Z – Encontrei registros que você foi assistente de montagem em Os Garotos Virgens de Ipanema e A Infelicidade ao Alcance de Todos. É isso mesmo?

A – A Infelicidade Ao Alcance de Todos nem sei qual é.

Z – É um filme de dois episódios, um do [Aníbal ]Massaini e o outro do [Olivier] Perroy.

IA – Não tenho conhecimento disso. O Sylvio foi montador desse?

Z – Foi.

IA – Então talvez seja isso. Como era assistente dele, deve ter colocado. Posso ter passado na Cinedistri. Nem lembro desse filme. Os Garotos Virgens de Ipanema é diferente, fui montador dele. O Sylvio montou o primeiro rolo, em três, quatro dias, e teve uma briga com o Galante e me pôs para montar. Ele passava de vez em quando só para checar, mas nesse não fui assistente não, fui montador. Foi minha primeira montagem. Se não me engano, no filme assino como montador [de fato, Inácio assina no filme Edição e Montagem]. No registro de INC, como é enviado antes, aparece o Sylvio.

Z – Você chegou a acompanhar as filmagens de algum desses longas?

IA – Não, nunca acompanhei filmagem. Essa era uma das ideias do Sylvio, de que montador nunca deveria acompanhar filmagens. Tinha montador, como o Mauro Alice, que tinha mais proximidade, que pedia refilmagem, se fosse o caso. A mim, nunca ocorreu uma coisa dessa. Era escola Sylvio: o que dá, dá. Que era mais ou menos a realidade de nossa profissão. O cara já acabava o filme com corda no pescoço, tinha que fazer conforme fosse possível.

Z – Como era o Carcaça [Osvaldo de Oliveira]?

IA – Ele era uma boa pessoa. Não sei te dizer. Às vezes, falam-se de diretores como se fossem monstros, como o Sylvio Back. Eu nunca tive problema com ninguém. O Carcaça falava daquele jeito, xingava, mas era ótimo. Não tive problema nenhum com ele. Gostava muito dele.

Z – Você já tinha feito algum outro filme antes na área de montagem?

IA – Montei antes o filme do Márcio Souza, A Selva. O filme é uma calamidade. Fui o único da equipe que sobreviveu. O Galante ainda veio me dizer que não tinha culpa. (risos). O Márcio era um cara muito legal, mas o ator, que era um português sem vergonha, vinha me dizer que o filme tava lento. Lento? Tinha 73 minutos; em Portugal, não podia passar, porque o longa tinha que ter 90. Se tirasse mais 3, não ia ser longa também no Brasil. Até acho que por inexperiência fiz um letreiro longuíssimo, que podia ser mais curto. Fiz também a montagem final do filme do Fauzi [Mansur], com a Vera Fischer [Sinal Vermelho – As Fêmeas (1972)], em que ele ganhou muito dinheiro. E ele era um canalha, um sem vergonha completo. Dei um acabamento na montagem.

Z – Você depois voltou a trabalhar com o Fauzi. Fez A Noite do Desejo e A Noite das Fêmeas.

IA – A Noite das Fêmeas larguei no meio. O Fauzi é um filho-da-puta, né? A Noite do Desejo era um filme que tinha muitas virtudes, porém, o Fauzi, sei lá por que razão, não trabalhava com continuista. Nos filmes do Fauzi, é sempre um plano geral, corta para um primeiro plano, e vem um zoom que abre, para não ter problema de continuidade. E eram planos longos. Vinham os rolos, e não tinham timecode nenhum. Eram duas histórias paralelas, não lembro como era. Eram dois casais, com o Roberto Bolant e o Ney Latorraca. Cada um ia com uma mulher. Resolvi cortar essas sequências no meio e trocar os diálogos. O cara que tava na rua de cima dizia: “o que vou fazer?”. O outro, que estava com a mulher na de baixo, que respondia. Isso deu uma dinâmica muito interessante. Achei que estava inovando a linguagem cinematográfica, aí fui ver que o Fritz Lang faz muito isso num filme lá de 1942 (risos). Ele faz num rolo só, fiz no filme inteiro – comecei, não podia parar. E meu assistente era o Jairo [Ferreira], que era ótimo nesse sentido. Ele dava o maior apoio para fazer uma coisas assim. O filme deu problema de censura e o Fauzi foi filmar uma história paralela, que é a do Ewerton de Castro, nas coxas, meteu o nome dele como montador e quando o filme recebeu o prêmio de montagem, foi lá receber o prêmio [da APCA]. Vá à merda, né? Eu tinha pastado, ficado horas montando. O filme ia ficar uma merda se fosse outra montagem. Claro, havia um potencial muito bom. Mas foi uma esculhambação a parte que filmou depois. Claro, se o Fauzi tiver o mínimo de senso, vai perceber que o prêmio não foi pela parte que ele montou, foi pela que montei. Quando teve o outro filme, ele ficou em cima de mim na montagem e ficou me torrando o saco. Ou seja, não se conformava de ter mexido no filme e de tê-lo tornado bom.Fficou torrando o saco e queria que fizesse umas coisas absurdas. Era também escrito pelo Marcos Rey, só que com quatro história paralelas. Ele queria que usasse o mesmo conceito de A Noite do Desejo. Disse que ia ficar maluco, ninguém ia entender nada. Aí teve o filme do Mazzaropi, o Mauro [Alice] não podia montar, e me chamaram. “Quer saber de uma coisa, vou montar o filme do Mazzaropi, não enche mais o meu saco.”

Z – Como foi fazer O Jeca Macumbeiro?

IA – Foi muito diferente de qualquer coisa que fiz. Nunca tinha visto Mazzaropi. Quando falo que minha família era elitista, era elitista mesmo. Mas achava uma encheção de saco, claro. Mas foi muito curioso ver, porque achava que só caipira ia ver o filme. E era muito estranho, porque ficava todo mundo conversando, aí aparecia o Mazzaropi e todo mundo parava de conversar e começava a rir. Tinha um aspecto muito interessante, desde o som direto, porque não conseguia dublar. Primeira vez que fiz um filme com som direto. E também uma espécie de ética que tinha com os cantores, porque teve uma sequência… Sei lá o que deu na cabeça dos caras, mas fizeram uma sequência de cantoria de uns 3 minutos e não puseram claquete. Então não sabia o que estavam cantando no plano 1, plano 2, não tinha isso. Eu me matei para montar, para encontrar um sincronismo nos primeiros planos, pus alguns gerais, que não fazia tanta diferença, já que ninguém via. Levei três dias montando, com o Pio Zamuner do meu lado – o Mazzaropi não acompanhava -, e um dia o Mazza aparece lá e pede para ver a sequência. Ele diz: “precisa mexer, porque está aparecendo um caipira mais do que o outro.” (risos) Devo ter olhado para ele de um jeito, porque tinha pego o que dava, para sincronizar. Olhei assim: “caipira do caramba, o que você pensa?” (risos) E o Pio do lado tentando acalmar, “depois te explico, tem que ser assim”. E assim ficou. O filme tinha que ter 90 minutos, consegui fechar com 87. E o filme foi bem, isso que é importante, fez sucesso.

Z – Como era trabalhar com o Pio?

IA – O Pio era ótimo. Não tive diretor complicado. É óbvio que a montagem é complicada. De certo forma, o montador é o primeiro crítico do filme, tem que ter um olhar… Crítico no sentido ruim, não no que entende o filme, mas que diz ‘isso não serve’. Claro que é, então, um lugar de choque, de confronto.

Z – Foi muito diferente montar um filme do Mazzaropi?

IA – Não, era a mesma coisa. Uma vez perguntei para o Sylvio como era montar um filme bom e um filme ruim. Ele me deu uma resposta muito sensata: “Você tem que fazer sempre o que pode, o seu melhor.” Hoje, a publicidade tem fundo patriótico, faz aumentar vendas, o PIB, na época não achávamos nada disso. Ele falava: “filme publicitário te coloca o mesmo problema em 30 segundos que o longa coloca”. É verdade. Para montagem, é muito interessante o filme publicitário, para a direção, não diria o mesmo, porque filma muito. Para tirar 30 segundo, filma 600 metros, 800 metros.

Z – Você também trabalhou com o Roberto Mauro.

IA – Fiz um filme [O Poderoso Machão], que era muito ruim. Nem me lembro. Montei muito filme ruim. Puta filme fuleiro, tá louco. O Claudio Cunha que ficava mais na montagem, acho que o Roberto Mauro quase não apareceu.

Z – Você também montou o curta do Jairo O Guru e os Guris, único em 35mm. Era um filme dele com mais dinheiro?

IA – Montei. Era uma produção do Carlão. Mais dinheiro?! Pouquíssimo dinheiro. Usava umas películas vencidas, conseguia desconto para revelação. Foi montado na Jota Filmes, do Carlão, onde trabalhava desde que o Carlão comprou.

Z – Nessa época, aparece no IMDb um crédito em que você aparece como ator em Rogo a Deus e Mando Bala.

IA – Não, não, não. São esses créditos malucos, fui assistente de montagem.

Inacio21-300x225Z – Como foi trabalhar com o Cláudio Cunha? Você primeiro montou um filme dele, O Dia em que o Santo Pecou.

IA – É, é um filme equivocado. Ele era muito amigo do Benedito Ruy Barbosa, e eles acreditavam estar fazendo um verdadeiro filme hollywoodiano. Eu olhava aquilo e (risos) que ilusão! Não deu nada, nada do que pensavam que ia dar. Filme hollywoodiano com o Canarinho não dá pé.

Z – Você gosta dele como diretor?

IA – Gosto muito de um filme dele em que fui apenas espectador, que é o Snuff – Vítimas do Prazer. Estava na Europa e quando voltei havia toda aquela animação em torno do cinema brasileiro, com aumento das bilheterias, a Embrafilme eufórica. Pensei: isso aqui não vai longe. Porque era tudo muito fraco. Aí vejo o filme do Claúdio, com roteiro do Carlão e fotografado pelo [José Roberto] Buzzini, que tinha sido fotógrafo da Jota. É um filme muito bom. Tenho a impressão de que ele era muito bom para fazer filme de porrada, policial. Porque depois escrevi um roteiro, o meu primeiro, para ele, O Gosto do Pecado, um roteiro muito bom, gostava muito dele, mas tem aquelas coisas. Melodrama é mais sutil, mas ele não conseguiu fazer bem, pelo menos não como eu o imaginava. Ele chegou para Mim: quero um filme assim. Era meio que uma encomenda temática. Acho que era um roteiro meio ousado, começamos a ter um problema. Foi também meu primeiro trabalho com o Jean Garrett, que entra meio que para evitar uma ruptura já no estágio do roteiro. O Claudio não engolia certas coisas. Tinha umas coisas meio malucas. O cara é advogado. Aí a sala do cara não tinha nenhum livro. Tinha outra coisa. Era um cara separado. O Cláudio teimou que tinha que ter dois carros. Perguntei: para quê dois carros? O cara é um só. Um para São Paulo e outro para descer no litoral? (risos) E o Cláudio: “é produção, produção”. Tinha filme que você olhava e se perguntava porque tinha essas coisas esquisitas: era para mostrar que tinha produção. (risos) Mas isso era contornável, o Jean contornou muita coisa. Mas o Cláudio é uma pessoa de que gosto muito, muito direito.

Z – Como conheceu o Carlão?

IA – O Carlão é uma coisa meio particular na minha vida, uma amizade muito importante. Vejo muito cinema graças ao Carlão, aprendi muito com ele. Não sei se foi o primeiro encontro, mas o Carlão estava bêbado e com ódio do Rubens Ewald Filho. No começo, queria dar um soco nele, depois uma facada, no fim da conversa já queria dar um tiro de canhão. E eu só ouvia, porque o Rubinho era meu amigo. O Carlão dizia que não podia beber porque ficava violento. Ele era muito forte, tinha sido lutador de boxe, essas coisas. Hoje ele está magro, mas antes era enorme. Foi a partir dele que adquiri meu gosto pelo cinema americano. Depois na França tive chance de conhecer tudo isso. Hoje é fácil, tem DVD, você baixa tudo, naquela época não tinha nada disso. Morando três anos e meio na França, era a minha demanda, é o que fui atrás. Conheço mal o cinema francês dessa época. Me preocupava em ir atrás do cinema americano que conhecia mal e passar a entender. Isso foi importante na parte da crítica. Eu via um filme e não gostava e me perguntava como um cara, sei lá, Bazin, Truffaut, Douchet, gostou. Então vou ler, quero entender. Hoje em dia se você não gostou, o cara que gostou é um idiota.

Z – Como você foi parar na Jota Filmes?

IA – Eu tinha montado Os Garotos Virgens de Ipanema, no Galante. Nessa época, o Carlão comprou a Jota, principalmente porque adorava a moviola, e estava formando equipe. Me perguntou se não queria ser montador. Aceitei. E o projeto da Jota não era ficar só em publicidade, era ser uma produtora tipo Roger Corman. Nunca foi possível fazer isso, infelizmente. Só deu para fazer o Lilian M. Era uma coisa fascinante, trabalhar com um cara espetacular como ele. Fiz muita publicidade lá. Fiz nesse período a montagem de vários filmes que, com exceção do do Mazzaropi, foram montados lá na Jota, como os do Fauzi. Acho até que o Carlão não cobrava nada, emprestava. Um caos nos negócios (risos). Tudo era afetivo, esse era o problema da Jota. Quando você faz um negócio dele, você precisa ser um negociante. Aí emendei o Lilian, que era um filme fascinante, muito particular, em que demorei seis meses montando. Era um filme feito de segunda a sexta, com uma câmera muito boa, a Arriflex, que dava estabilidade de imagem muito grande. Foi um trabalho muito difícil. Hoje o Carlão tem uma facilidade muito grande para passar do registro da comédia para o drama, naquele tempo não. Ttentei amenizar as passagens, mas o cara tá num puta dum drama e de repente vira comédia. As pessoas não entendiam muito bem essas passagens, isso atrapalhava bastante. Foi muito difícil, porque tinha vários gêneros, a cada vinte minutos mudava e era atrevido o tempo todo. Era uma montagem que exigia muita aplicação, o trabalho de som também levou muito tempo, porque tinha que ser muito. Às vezes a imagem tinha que seguir a música, porque em determinados momentos era musical. Tem coisas que até hoje lamento, porque as condições de som daquela época eram bem ruins. Por exemplo, na segunda seqüência, tem a parte que ela foge com o caixeiro-viajante, e tem essa parte muito divertida que é a fuga. Termina aquilo e dá uma porrada no carro e a gente pensou em colocar um barulho absurdo. Quando ouvíamos na mixagem, o som era ótimo. Quando foi para o negativo, o som sumiu, estourou, e não registrava. Você vê a porrada e não tem nada. Talvez seja o melhor filme que montei, junto com o do Sylvio Back. São bem diferentes. São muito bons.

Z – Como surgiu o convite para fazer Aleluia, Gretchen, do Sylvio Back, que era do Paraná?

IA – Já conhecia o Sylvio, ele trabalhava aqui. Ele vivia num hotel que até aparece num filme do Belmonte [Meu Mundo em Perigo], tinha conta naquele hotel. Ele só filmava e levantava o dinheiro no Paraná, porque o resto estava tudo aqui. Depois fiz muito curta-metragem com ele, documentais. Não me lembro se foi antes, depois ou durante. Era disso que ele vivia. E fazia um documentários interessantes sobre Paraná, Curitiba, sobre o fim da Foz do Iguaçu. Aleluia, Gretchen foi um filme difícil, ao contrário do que possa parecer. Tem pouco planos, mas foi muito difícil de ritmar, e acho que ficou bem legal, gostei do trabalho, que foi tranquilo.

Z – Como era o ambiente da Boca?

IA- Era normal. O que acho muito legal na Boca era o fato de ser muito democrática. Tinha a gente, que era meio universitário, mas você convivia super bem com outros, com outras formações, como o próprio Sylvio ou o Osvaldo, que tinha praticamente nascido em cena, ainda criança freqüentando a Maristela. Tinha pessoas de várias origens. Tinha o Galante, que era um cara muito intuitivo, que entendia para caramba de cinema, trabalhando com o Palácios, que era um advogado, com traquejo de outro tipo. Era muito bacana ver a diversidade. Era uma preciosidade que tinha lá. Fora isso, era legal trabalhar lá, a gente se encontrava todo final de tarde, ou mesmo na hora do almoço, tinha os que tomavam um aperitivo – o Osvaldo tinha religiosamente um rabo de galo esperando por ele, na mesma hora. Isso era no Soberano. Às vezes, a gente tinha mais dinheiro e mais disponibilidade e ia no do chopp, que era espetacular, mas era um lugar muito cheio, na Aurora, o Bar Léo. Tinha que ter uma certa paciência, porque demorava horas até conseguir um lugar. Era um contato muito bacana, tinha também o pessoal do Rio, porque a Embrafilme era lá perto, o Roberto Santos, enfim. Quanto a você trabalhar na zona mesmo, era muito interessante, porque era muito seguro. O episódio mais característico é quando roubaram o contador do Dr. Cassiano [Esteves], da Marte Filmes, que arranjou um diploma de advogado e se fazia chamar de doutor. Era muito engraçado, ótima pessoa. O Cassiano foi no chefe dos bandidos e disse que haviam lhe roubado. O dinheiro voltou em pouquíssimo tempo. O pessoal do comércio ali não era roubado, era um lugar bem legal naquele tempo. Mas esse negócio de drogas não havia se instalado lá ainda. Passei ali há algum tempo e dava medo. Não era esses zumbis do crack ainda, era negócio de cocaína. Bem barra pesada.

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