Dossiê Alfredo Sternheim
Entrevista com Alfredo Sternheim
Parte 3: Vida de diretor
Por Gabriel Carneiro
Fotos: Dênis Arrepol
Z – Como surgiu o Noturno? Como conseguiu verba para fazê-lo?
AS – A verba foi do Instituto Nacional de Cinema Educativo, que havia sido criado pelo Tambellini. Eles haviam aberto um concurso para curtas-metragens. Havia sido criada uma lei em que os cinemas eram obrigados a exibirem complementos nacionais, para acabar um pouco com aquele jornalismo chapa branca do Primo Carbonari. Lá consegui uma verba pequena, da área cultural, para fazer Noturno. Trabalhei com uma equipe pequena: o Icsey, o Claudio Portiolli era eletricista e o Máximo montou. Queria, com Noturno, fazer uma coisa diferente, sem aquela locução oficial. Depois quis fazer um documentário sobre a Tarsila do Amaral. Não consegui, ninguém quis produzir, ninguém quis ajudar. Falei com a Tarsila, ela me deu um documento autorizando as filmagens. Essa foi uma das grandes frustrações que tenho em cinema. Fui fazer então o Flávio de Carvalho. Comecei mas não conseguia continuar. Isso foi em julho. Em outubro, ele ganhou o grande prêmio da Bienal. Em questão de horas, apareceram três produtores. Fiz com o primeiro.
Z – Você gostava de fazer documentários de curta-metragem?
AS – Gostava, gostava muito. Gostaria até de fazer mais. Mas é aquela coisa. A maioria das pessoas que vai para o longa-metragem raramente volta pro curta. Até voltam, mas são casos muito específicos. E não dão chance. Teve uma época que quis voltar, e os militares no poder não permitiam a inscrição de diretor que já tinham feito longa. Gostava de fazer documentário. Gostei muito da fase que fiz o Telecurso, que era uma mistura de documentário com ficção. Até hoje, adoro.
Z – Noturno é de 1967 e você só começou a rodar Paixão na Praia em 1970. Como foi essa transição? Foi seu primeiro roteiro de longa?
AS – Não lembro qual foi o primeiro roteiro que escrevi. Depois fiz o roteiro de Paixão na Praia e apresentei para o Palácios e o Galante. Tinha uma verba muito pequena da Comissão Estadual de São Paulo, e eles aprovaram o projeto. O resto levantaram com uma distribuidora. Tinha que fazer em 18 dias e com 18 latas. Era pouquíssimo, principalmente para um diretor estreante, para um filme de 80, 90 minutos. Dá 2 [tentativas] por 1 [acerto]. Fui, morrendo de medo, inseguro, mas fui. O problema foi fazer o elenco. A Eva Wilma, que já era minha amiga, não pode aceitar. O meu produtor queria a Maysa, a cantora, e fui atrás dela. Nossa, o marido dela foi tão mal-criado que não deu. Depois, fui atrás da Norma Bengell, com quem já havia trabalhado em Noite Vazia – e havia dado muito trabalho no filme. Ela estava completamente diferente, morando com uma fotógrafa. Ela exigiu que a Gilda fosse a fotógrafa e não teve jeito, e ela gostou do roteiro, fez um preço camarada. Filmei no Rio, com o Adriano Reys e o Ewerton de Castro, que descobri em São Paulo. Fiquei deslumbrado com a atuação dele na peça A Cozinha. Fiz o filme, e foi muito difícil – cometi muitos equívocos.
Z – Paixão na Praia é o primeiro filme do Meliande como fotógrafo. Como chegou a ele?
AS – Ele já havia sido auxiliar de câmera em vários filmes da Servicine, e o Palácios/Galante o recomendou. O engraçado foi que o primeiro take que rodei foi com o Ewerton, praticamente um estreante, eu e o Toninho Meliande. Até o Toninho falou: “Três estreantes, todos trêmulos, vamos lá, você tem que gritar ‘câmera, ação’” (risos). E gritei. Ele era uma pessoa bacana. Era uma delícia trabalhar com ele. Dá palpites no bom sentido. Tive um entrosamento com ele maravilhoso. Ele mora no Rio. Soube, há pouco tempo, que ele teve um AVC, mas não houve grandes seqüelas. Por muito tempo, trabalhou na Globo. Depois não vi mais o nome dele.
Z – Você já frequentava a Boca? Desde quando?
AS – Já, desde 1961, por causa de A Ilha, que foi uma coprodução com a Cinedistri, do Massaini, que já estava filmando O Pagador de Promessas. Ia duas, três vezes por semana lá no escritório.
Z – Você sentiu muitas mudanças entre esse período até o final dos anos 1980?
AS – Houve mudanças. Na maneira de se fazer os filmes. Estruturalmente, não houve. Não tinha crack, nem nada disso. Prostitutas tinham, mas elas eram muito simpáticas. Eram moças de recado, algumas faziam bico em alguns escritórios, era engraçado. Era uma convivência pacífica. Não tinha bandidagem, não tinha cracolândia, era um ambiente saudável. Depois de 1990, parei de ir à Boca, não tenho mais vontade de ir. Houve mudanças no modo de fazer filme, caso da Embrafilme, que surgiu do dia pra noite e assustou o pessoal da Boca, que não tinha idéia de que o projeto estava em andamento.
Z – Nos anos 1970, com o aumento das produções, houve um aumento de pessoas no local, atrás de emprego?
AS – Sim. Muitas atrizes e atores, gente até de televisão, da TV Tupi principalmente. Já equipe era mais difícil. Às vezes não conseguíamos montar uma equipe porque ela estava fazendo outro filme. Muitas vezes tinha que esperar. Equipamento também começou a ficar mais escasso. A Boca estava sempre cheia, foi realmente uma fase fantástica do nosso cinema, em termos quantitativos. Eram pixados pela imprensa.
Z – Era um ambiente acolhedor?
AS – Era. Sinto saudade. Era acolhedor, fraterno – de vez em quando saía alguma briga, mas não lembro de ter tido nenhuma.
Z – Nunca sofreu preconceito?
AS – Não, nunca, de jeito algum. Era impressionante, não havia o menor preconceito. Todo mundo sabia de mim, da minha vida, me respeitavam. Era super saudável. Claro, tinham diretores exibicionistas, que faziam questão de dar a entender que estavam transando com determinada atriz. Não vou citar nomes. Mas teve um dia que cheguei para um diretor: “Fulano, você conhece tal atriz, ela é boa para trabalhar?” No plano profissional, pois é diferente, claro, conhecê-la do café, falar oi e ver na tela. Ele respondeu: “Conheço, já comi ela várias vezes”. (risos) Não era nesse sentido que estava perguntando. Frequentava muito os bares, o Soberano e o Ferreira. Teve um incidente uma vez. Fui tomar café no Soberano, mas o quarteirão estava interditado, então parei o carro mais para trás. O Bruno Barreto estava fazendo um filme [Além da Paixão] com a Regina Duarte e o Paulo Castelli, num clima hollywoodiano, com cadeira escrita ‘diretor’, garçom servindo bebida. Isso não é clima de filme de Boca. Entrei no Soberano, pedi meu café, encontrei o Jean Garrett. O Paulo Castelli, que era meu amigo, apresentou a Regina Duarte, que estava sentada num canto, esperando a vez de filmar. Chamaram os dois para filmar, olhei um pouco e fui embora. Estava o Edmar Pereira, já falecido, do Jornal da Tarde. Depois saiu uma página inteira sobre as filmagens no Jornal da Tarde, dizendo que Bruno Barreto transforma a Boca do Lixo em Hollywood e que diretores como Jean Garrett e Alfredo Sternheim passaram lá para aprender como se faz cinema. Fiquei uma arara. Tinha meus contatos no Estadão ainda. Mandei uma carta e pedi encarecidamente que fosse publicada, pois feria minha honra. Não havia passado lá para aprender a fazer cinema. Se fosse John Huston ou Billy Wilder, mas não com Bruno Barreto. Passei por lá, como passo todas as tardes. Coloquei tudo isso na carta, que foi publicada com um puta destaque. O Edmar deu uma resposta mal-criada, eu dei a tréplica, dizendo que lugar de fazer fofocas inverídicas sobre os filmes da Embrafilme, da qual a família Barreto era protegida. Soube que o Bruno ficou histérico. Falei que ele foi lá na Boca fazer uma seqüência que ele podia fazer em qualquer lugar só para esnobar. Com que dinheiro? Com o nosso dinheiro, dinheiro do povo brasileiro. Imagina, aprender com Bruno Barreto… Ah, vai tomar…
Z – Quando você começou a fazer cinema, qual era sua pretensão? Queria fazer aquilo que chamam de autoral?
AS – Não, não. Queria contar histórias, emocionar. Não tinha preferência temática. Claro que quando você escreve um roteiro, você se projeta, mas, claro, se surgisse o roteiro de outra pessoa, faria, desde que me agradasse. Por questão de economia, os produtores não queriam outros roteiristas. Veja o caso de Lucíola, por exemplo. O Palácios queria porque queria um projeto de uma obra literária. Ele queria dar respeitabilidade à Servicine e à Boca. Ele havia sugerido Éramos Seis, da Maria José Dupré, que achava meio ultrapassado. Peguei o livro para ler e o fiz em uma noite. Ao término, chorava, muito emocionado. “Que livro!” É Rocco e seus Irmãos. “Vou fazer”. Fiquei histérico para fazer. Fiz uma adaptação, meio correndo. Fomos falar com ela, que foi muito simpática. O filme já havia sido feito na Argentina – que nunca vi. Ela me mostrava fotos enquanto o Galante e o Palácios conversavam com o advogado dela. Infelizmente não houve acordo. Fiquei frustrado para caralho, porque aquele livro é uma obra-prima. Mas o Palácios não desistiu da idéia e sugeriu Lucíola, do José de Alencar. Engraçado que havia lido tudo do José de Alencar, menos Lucíola. Também fiquei meio reticente. É meio A Dama das Camélias, mas sei lá. Me apaixonei pelo livro também. Achei que dava um belíssimo filme. Falei com o Palácios das despesas de produção – carruagem, roupa de época, etc. O Palácios era mais culto e sensível, o Galante mais pé no chão. Ele disse que se arranjava com o Galante e me pediu o roteiro em 15 dias. Perguntei se não podia pedir ajuda a alguém, talvez o Marcos Rey, que era conhecido, só que para isso precisava de um cachê. Ele negou – mesmo assim levei para o Marcos Rey, que era um anjo e me deu palpites maravilhosos. Saiu. 35 dias de filmagens, a duras penas. Tinha muita locação, muito objeto. Para a cena da valsa, tivemos que contratar cinco cabeleireiros para fazerem os penteados de época nas figurantes. Para filmar no Municipal, por exemplo, me deram como prazo às 20h, depois precisava sair. Terminei em cima da hora. E o palco não podia usar porque havia um negócio da Globo, então tive que fazer as cenas de palco no Paiol, que me emprestaram de graça. Havia muita colaboração. O bacana da Boca é que havia muito isso. Lucíola teve uma filmagem mágica, porque tudo que parecia que não ia dar certo, deu. Fui no Largo do Boticário, no Rio de Janeiro, que é um condomínio particular tombado, e pedi para a produção executiva licença para filmar. Chegamos lá, não tinha porra nenhuma. Não queria ir falar com o zelador, porque afinal era diretor e não produtor. Dei um piti. O velhinho, afinal, foi se aproximando. Era o Augusto Rodrigues, pai de uma jornalista maravilhosa que havia feito uma entrevista com o Von Sternberg, da qual participei de bicão. Perguntei a ele se era pai da Teca. Aí foi uma maravilha, abriu tudo. (risos) Ficou uma seqüência linda. A benção final do filme foi ter ido para o Festival de Teerã por engano. Enviaram as latas erradas e o pessoal gostou. E não sei o que era para ter sido enviado. (risos) Eu nem sabia que iria haver Festival de Teerã e mais ainda que estavam escolhendo filmes. Tenho minhas suspeitas, não sei dizer. O filme foi para a mostra Hors Concours, de cinema latino-americano, que passaria no cinema principal. E davam passagem para o diretor. Lá fui eu para o Irã, conheci a Imperatriz – essa foi uma celebridade que me emocionou. Conheci a Lina Wertmüller, que hoje está meio esquecida, mas na época era uma diretora genial. Na minha filmografia, você vê muitos milagres. Flávio Carvalho, Lucíola. A infra-estrutura de produção que tínhamos não funcionava, mas dava certo.
Z – Anjo Loiro é baseado no livro que deu origem a O Anjo Azul, do Sternberg. Você também se inspirou no filme?
AS – Não. Amo esse filme, mas achei que não tinha nada a ver com a nossa realidade. Li a novelinha do Heinrich Mann e notei que tinha muito a ver com o erotismo que começava a aparecer nas produções da Boca. Escrevi o filme pensando na Adriana Prieto e ela topou. O Elias Cury, o produtor, queria um ator famoso de TV, para ser o protagonista. O Francisco Cuoco topou. Depois de dois dias, a mulher dele mandou ‘destopar’. (risos) O Carlos Alberto não podia. Olha de novo a Maysa na minha vida – a mulher dele não queria que ele saísse do Rio de Janeiro, e era ela. De novo essa maldita na minha vida, me atrapalhando. (risos) Fiquei com o Mário Benvenutti, ele incorporou um patético que ficou bacana. Acabei com a Vera Fischer, que foi divina.
Z – Ela não deu trabalho?
AS – Nenhum. Uma doçura de pessoa para trabalhar, uma profissional de mão cheia. A única coisa que deu trabalho foi na hora de dublar, coisa que ela nunca havia feito. E o Perry Salles – estavam para casar – não queria que ela fosse. Tivemos uma briga de tapas, literalmente, porque queria que ela fosse e ele não. Ele veio com aquele discurso: “Para de fazer de minha mulher um objeto”. Retruquei que esse discurso já haviam feito com a Marylin Monroe há 500 anos. Falei para ele: “Vê se muda.” O Perry ficou puto, avançou em mim, me jogou contra a parede. Ela separou a briga e foi dublar – e o fez muito bem.
Z – Mas depois a Vera Fischer assumiu esse discurso de exploração.
AS – É, não gostei, fiquei chateado. Nós fomos vizinhos numa época, inclusive, depois. Foi o Perry que colocou na cabeça dela que tinha que fazer teatro, para dar uma certa nobreza. Ela devia ver os filmes de novo. Claro, foi explorada comercialmente, a imagem dela ficava gigantesca na Av. São João, mas foi assim que ela surgiu, como mito erótico.
Z – Seu roteiro seguinte foi o Pureza Proibida, baseado no argumento da Monah Delacy. Você entrou como coroteirista do filme.
AS – É. (risos) O Carlos Fonseca, meu grande amigo que era da Filme Cultura, falou que a Rossana Ghessa ia produzir um filme com argumento da Monah Delacy, chamado A Freira e o Pescador, e me convidaram. Eu, que adoro história de repressão, quis ler. Quem ia dirigir era o Nelson Pereira dos Santos, que aceitou e pulou fora não sei por quê. Quando li, adorei. Só queria fazer algumas alterações. Conversei com a Monah, que é uma mulher inteligentíssima, e concordou com o que queria mudar. Ela disse para fazer o roteiro como quisesse. Ela não tinha feito em forma de roteiro definitivo. Fomos à procura do galã e escolhi o Zózimo Bulbul. Aí que descobri no Festival de Gramado o preconceito racial entre críticos. Me perguntaram porque não desenvolvi a questão do preconceito racial. “Mas quem falou que era para desenvolver?” Contei uma história de amor entre um pescador e uma freira. “E por que o Zózimo?” “Por que não o Zózimo?” “Todos os galãs precisam ser brancos? Escolhi o Zózimo porque é bonito, bom ator”.
Z – Você sabe se houve alguma pesquisa em relação aos cultos religiosos, tanto do candomblé quando do catolicismo?
AS – Da Monah, houve uma ajuda. Mas quem colaborou mesmo foi o cenógrafo José Monleason e lá mesmo em Arraial do Cabo conversamos com pessoas, para afinar a parte do candomblé. Da parte católica, a Monah já havia trazido mais mastigado. O grosso conseguimos na cidade. Gravamos em Arraial e em Cabo Frio.
Z – Como funcionava o processo de criação das trilhas sonoras de seus filmes?
AS – Eu dava um direcionamento, dizia o tempo das composições de acordo com a cena. Essa parte de medição foi complicada. Quem compôs para Pureza Proibida foi o Edino Krieger, medalhão, famoso, da Orquestra Municipal do Rio de Janeiro. Foi complicada a gravação. A Rossana estava histérica porque estava custando uma nota. A música é muito bonita, mas deu trabalho para editar. Acho que fui muito feliz, por exemplo, na escolha do Mário Edson em Lucíola, Paixão na Praia e Anjo Loiro. Depois fiquei proibido de contratar compositores, por questão de miséria, da Boca.
Z – Tanto Pureza Proibida quanto Lucíola tem apoio da Embrafilme.
As – Tinham, mas era um apoio diferente, é bom frisar. No Pureza Proibida, era dinheiro emprestado pela Embrafilme com juros mínimos, desde que tivesse um avalista – que foi um conhecido da Rossana, um construtor que era podre de rico. Acho que sou o único diretor do Brasil que chegou no set num lindo Continental conversível. (risos) O dinheiro não era dado, como hoje, na Lei da Renúncia Fiscal – dá e não volta [dependendo do mecanismo de incentivo]. Mesmo posteriormente na Embrafilme. Quando fiz, não, tinha que devolver, havia promissórias assinadas. Em Lucíola, quando o filme já estava quase pronto, a Embrafilme entrou como distribuidora e deu um avanço sobre a receita. Não foi coprodução. A Embrafilme também deu o subtítulo de , que não gosto.
Z – Nesses primeiros filmes que fez, você tinha mais recursos financeiros, não? Isso era porque haviam menos filmes sendo produzidos na época ou dependia dos produtores?
AS – Sim, tinha mais dinheiro. Era uma questão dos produtores, a inflação não era tão galopante, fator que atrapalhou muito o cinema nacional. A partir de 1978, as coisas começaram a piorar. Antes, já era meio apertado. Depois ficou ainda mais. Para todo mundo, não só para mim.
Z – Como era trabalhar com a Rossana Ghessa?
AS – Foi legal. Como produtora, não era legal não. Tínhamos muitas divergências. Mas como atriz, no Lucíola principalmente, ela rendeu muito. Ela entendeu a alma da personagem, se entregou ao papel. Nunca mais trabalhei com ela. Ela produziu mais um filme, mas não me chamou. Acho que a idéia que tenho dela como produtora, ela deve ter de mim como diretor. (risos) Queria trabalhar com muitas atrizes, não só com Rossana. Para Mulher Desejada, pensei primeiro na Vera [Fischer], mas ela só trabalhava se o Perry trabalhasse. Nós éramos vizinhos inclusive, na Frei Caneca. Eu não queria o Perry, achava-o um péssimo ator. Pensei na Kate Hansen, que no Festival de Teerã ficou muito amiga minha, e fizemos Mulher Desejada. Depois fiz Corpo Devasso, que foi escrito para o David Cardoso, e o elenco feminino formamos em conjunto – a Neide (Ribeiro), a Meiry (Vieira), a Patrícia (Scalvi), acho as três atrizes maravilhosas. O David foi um produtor que não foi impositivo no elenco – claro, vetou um ou outro nome para o elenco de apoio, porque ele já havia tido um problema profissional no passado -, não interferiu durante as filmagens, apenas no estrito cumprimento do que foi acordado, como prazo, negativo. O David foi um ótimo produtor.
Z – Depois de Lucíola, você foi trabalhar mais com TV. Na sua autobiografia, você diz que ter largado a TV, para ficar com o cinema, causa-lhe um certo arrependimento, porque na TV estaria trabalhando até hoje.
AS – Tinha filmado Mulher Desejada, estava na fase de montagem final, quando o Silvio de Abreu ligou, pois ele tinha sido chamado para dirigir de novo o Telecurso de Educação Moral e Cívico e OSPB, e ele não podia, porque ia fazer uma novela na Globo. Como a gente batia papo no Soberano, bebia café, havia falado a ele que a televisão era algo que me fascinava. Quando me ligou, disse para passar no dia seguinte lá e falar com o Eduardo Sidney e acertar os detalhes. Na época, montava o Mulher Desejada e estava na Folha da Tarde. Pensei: Que horas vou fazer isso? Ele me deu um ultimato e fui. Deu certo. Falei com o Eduardo Sydney, que havia sido marido da Kate Hansen. O que não gostei do Telecurso foi o lado humano que tinha na TV Cultura, e deve ter até hoje, de gente predatória querendo te puxar o tapete. Vinha do cinema, que tinha clima harmonioso, festivo, criativo, de interação. As pessoas te respeitavam e se respeitavam. Trabalhava com confiança cega, não desconfiava de ninguém na filmagem, nem do eletricista, nem do ator. Na TV, fui esperando a mesma coisa, e não é. Ééé bem diferente. O cara que era meu diretor de TV estava fazendo relatórios contra mim e todo dia me recebia de braços abertos. Continuei, cumpri meu contrato de sete meses. Podia continuar a fazer TV, mas achei que no cinema seria melhor.
Z – Você se arrepende de ter saído da TV?
AS – Me arrependo, porque tinha jeito para TV. E achei que o cinema ia acontecer, ia evoluir. Aconteceu o contrário, foi se deteriorando mais, materialmente, tudo. Me arrependo de não ter investido na carreira da TV também, não ter ido à Manchete, recém-criada. A Sonia Mamede, que filmou comigo Brisas do Amor, insistiu, quase me bateu: “Vai na TV Manchete, que estão precisando de diretor”. Cheguei a pegar ônibus para ir, no Rio, e desisti. Falei: “Vou ficar com o cinema”. Me arrependo. O momento de decisão foi uma indecisão.
Z – Você conta que Mulher Desejada foi lançado em vídeo com o epílogo cortado. Qual é?
AS – O vídeo termina com a Elisabeth Hartmann indo para o canto e dando um tiro, e acaba. Originalmente, a Kate Hansen, a vítima, acorda e tudo aquilo havia sido um sonho. Ela levanta e fala com a Marlene França que quer lhe apresentar o caseiro. O cara está de costas, ele si vira e é o [Eduardo] Tornaghi. Ou seja, ela sonhou com algo que poderia eventualmente acontecer. No cinema passou. A fita foi vendida para a Argentina, pro produtor de Herança dos Devassos, que tinha uma distribuidora lá. Havia sido Secretário da Cultura da Isabelita Perón e tudo. Ele, para exibição, mandou cortar essa parte e o fizeram no negativo. Quando foram fazer a cópia em vídeo, essa cena não tinha, e se perdeu. A Paris Filmes fez essa burrada.
Z – Em Corpo Devasso, o que acha da atuação do David Cardoso? Ele não deu problema para fazer as cenas gays?
AS – Estava excepcional. Não deu problema, fez com o maior profissionalismo. Todos as cenas ele fazia havia em um clima de bom humor, de alegria, de piada. Essa filmagem acarretou uma briga de anos com o Biáfora. A cena gay entre o David e o Arlindo Barreto eu filmei na casa do falecido Carlos Motta, que tinha um pôster lindo da Greta Garbo. Fiz um plano em que o David está falando e andando e termina com ele e Greta Garbo juntos. A gente até brincou: “Quem diria, David, Greta Garbo e David Cardoso juntos num filme?” Ele retrucou: “Não, David Cardoso e Greta Garbo juntos.” Ficou um clima de brincadeira. O Motta disse. “Se fosse você, não fazia isso. O Biáfora não vai gostar”. Não tinha nada demais, era uma marcação, uma homenagem à divina. Quando o filme passou no cinema, o Biáfora me ligou, me xingou, e eu revidei, mãe, avó, etc. Ficamos anos sem nos falar. Ele achou uma ofensa à Greta Garbo colocar o David Cardoso no mesmo quadro.
Z – Para fazer As Prostitutas do Dr. Alberto, que era um WIP, você chegou a ver filmes desse subgênero?
AS – Não. Foi estranho. O Galante tinha um pequeno estúdio, em que ele havia construído uma prisão para um filme do Carcaça. Queria um filme rápido, aproveitando bastante aquele cenário – 50% da filmagem tinha que ser lá. Escrevi Prisão de Mãe Solteira, sobre um cara que rapta moças aparentemente virgens, jovens, que geram bebês que são vendidos para nazistas paraguaios para serem clonados por Hitler. Foi levemente inspirado por aquele livro Meninos do Brasil, tanto que tem uma cena em que uma personagem lê o livro. Peguei como elenco o Serafim Gonzalez, que era o cientista maluco, o Armando Tirabosqui, que fez seis filmes comigo, a Meiry Vieira, que era ótima, a Vick Militello, que fazia uma carcereira lésbica e pesava 100 kilos na época. Foi um filme divertido de se fazer, gostei, pena que foi todo cortado pela censura.